terça-feira, 16 de dezembro de 2008

[...]

Era apenas por querer que a noite sempre se aproximava mais lenta. Desejava que viesse rápida, logo ao fim da manhã. Depois da primeira parte do trabalho já poderia ter aqueles olhos imensos a guardar-me toda a dor dos dias antes sozinhos, esquecendo-se de meus incômodos durante alguns momentos. Era apenas por que isso era impossível que mais o desejava. Como as verdades que ficam escondidas nas coisas brutas que saem das bocas durante as brigas de amor. Dizer que se não acontecer assim ou assado “vamos embora para sempre” é a pior desfeita que se pode pronunciar. Era por ter certeza de que isso um dia viria a ser verdade, que sumi. Mas deixei a porta entreaberta. Sempre há esperanças nas frestas das portas e nos espaços desconhecidos. Um dia ela chegou em casa e me disse que estava cansada. Resolvi que era comigo e mudei, de desejo para esquecimento. Hoje não há améns e nem as mentiras bonitas que me faziam tão feliz. Cansada de quê? Eu pensava. De mim, de nós? Deixei a porta aberta e muitos quereres não ditos e foi por isso que a noite entrou para sempre em nossa casa, porque não soubemos descortinar os dias pouco a pouco.

Habitado

Novamente habitado de estranhamentos e luzes. Como deixar a rota dos amores dantes caminhados em pensamentos, apenas? Como voltar? Um capítulo que seja, uma frase apenas, escreve-a, faz a sorte te revelar multidões. Com ternura assoberbada segue andando, pedindo mais e mais da vida. Faz como eu estou finalmente fazendo. É agora em mim. Estendendo-se pelas nesgas de minha saudade, inscreve-se um tratado de virtudes. As que nunca tive nem nunca quis ter. Ouço somente meus roucos sons de sono a bambolear freneticamente pela vigília desocupada de um amor recém desperto. Intocado ainda. O destino impreciso arqueia as vozes que me ditam mouras histórias do exílio. Um louco de rua, a estátua prostrada sem nada a dizer. Sou eu quem retorna das sombras do dia esperando ser novo, dizendo velharias. E como não fosse mistério, a voz que trago é ainda mais antiga, mais forte e veloz que meus anos vividos. Dobram-se nos compassos da minha história, as inocências concebidas entre beijos e sinceridades duvidosas. Novamente instado, ancorado em meu centro de pensa e desejo, o amor distribui as falas e as canções. Não preciso de pernas ou braços, não preciso de estradas ou sacrifícios. Instigado pela chama, minha alma se encarrega do caminho.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Excertos Terapêuticos VII

“Quase entendo a razão da minha falta de ar.
Ao escolher palavras com que narrar minhas angústias,
eu já respiro melhor.
A uns Deus os quer doentes,
a outros quer escrevendo.”

Ex-voto – Oráculos de Maio (Adélia Prado)

domingo, 30 de novembro de 2008

Desconserto

Naquele meio-dia e alguma coisa, diante da tua imagem que desapareceu atrás de uma árvore reaparecendo depois de dois longos segundos, eu pensei na palavra saudade, mas ela não me pareceu mais parte de mim que a fome que eu sentia àquela hora. Sei que a minha existência naquele momento e naquele lugar te afetava, assim como a tua também me afetava; os gestos confirmavam: passastes os dedos por trás das orelhas como se tivesses cabelos que ajeitar; eu te abracei de lado pra que não notasses o galope do meu coração.

Foi desconserto, senhora, eu confesso, e pela segunda vez alguém me cantarolou a música do Chico. Não que eu ainda te ame ou pense em ti – em nós – mais que quando sinto ciúmes de alguém ou pense no quanto devemos a Portugal, mas é como reencontrar uma parte de si que se perdeu, depois de já ter aceitado a incompletude. Não que eu busque de novo esse amor inapelável e sem abrigo que começou com um recusa minha e terminou assim, com um teu fastio.

Tudo não passou de ciladas e enlevos. De tesouros buscados e achados e, depois de achados, abandonados, pois precisamos estar permanentemente à cata de horizontes e abismos. No nosso caso, mais de abismos que de horizontes. Naquela manhã, quando confessastes que o teu amor esgotara-se e pedistes pra eu não vir mais à tua casa, pareceu-me que eu recebia um golpe de misericórdia, como se minhas costas recebessem o restinho de força de uma mão que apressava a minha queda. E eu me abandonei por inteiro ao desabamento, como um condenado por um crime de paixão se entrega à forca. O negrume insondável de treze noites apoderou-se de mim por meses a fio. Eu esperava o baque surdo, a última nota que meu corpo produziria, mas ele não vinha. Os abismos não têm fim, e esse era o meu único consolo.

Sem inspiração suficiente para pássaro, aprendi a planar sem me valer das cartas geográficas. Informo-lhe que ando fazendo o de costume: defendendo o salário que eu tanto reclamo; amando a esmo; colecionando coisas e sentimentos. Não, não é amor que nutro pela senhora. Talvez apreço, pelas lições de anatomia e pelos poucos sentidos que ficaram insatisfeitos. E também por essa dor que me destes, esse rasgo no peito que me divide e me faz maior.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Velando a ida, esperando a volta

Quando o barco se foi, pesou-me a triste ladainha da semana anterior. Mil terços não resolverão este adensar de confinamentos em minha alma. Ao longe um farol meio apagado, o peito demasiado fundo. Lá para as bandas de ontem, onde estes ingratos suspiros condensam, a festa é apenas pela lembrança – algo que foi, não é mais e continua doendo. Lembro de quando éramos jovens, alinhando as vidas com linhas de paixão. Espero que este barco volte trazendo as trouxas da ida. Num retorno perpétuo e esperado, amarras no porto norte, donde nunca deveria ter partido. Hei de esperar por ela, de pé, com o olho irrestrito pensando que nunca se foi. Haverá de voltar o barco negro com velas baixas e poucas almas. Sem histórias nem naufrágios, apenas repleto de sal e saudade.

Histórias para depois do sono VI

É como viver do avesso. A cada beijo, o rumor da vida escolhida por ti, bem longe dos nossos, bem longe de mim. Ah! as escolhas terríveis. Quereres e mais traços. Além dos olhares, adereços, poucos horizontes interessados em nós. Não quero saber das coisas eternas em ti. Caso não tenhas percebido esta noite não cobre meus sonhos. E quando acordo almejando teus lábios? Só o canto e o rádio-relógio me impedem de estar morto. E mesmo que esteja errado, não se esqueça do apreço, dos vícios de te querer, que são a mesma coisa que a morte. E acordo, de repente, nas bocas unidas em beijos, nas ruas vazias de luz, atrasado na promessa de te dar simplesmente tudo. Eu que vivo de amores espessos me encontro sem ti, atrás de um gole de água, ou de um pedaço de sombra debaixo deste sol infernal.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Anistia

Algumas vezes escutamos histórias ou passamos por situações que nem imaginávamos. Seguido a isso as reações são as mais variadas. Alguns choram, outros morrem um pouco, outros como meu grande amigo aqui homenageado, simplesmente escolhem viver e contar suas histórias. Este texto é para ele... meu amigo distante a quem carinhosamente chamo de "Grande Homem".

Enfim avistaram Calle La Salette. Havia mudado pouco. Os bangalôs erguidos sobre o asfalto ainda muito negro. As pessoas curiosas vendo chegarem juntos aqueles rostos atônitos. Ninguém pôde reconhece ninguém logo que se viram. E como um encontro combinado às escuras, aqueles que chegavam – ou voltavam – continuaram em passos lentos, apreensivos. Aqueles que estavam às janelas, de pacíficos foram ficando inquietos depois espantados e finalmente exaltados. O choro foi quase integrado. Uma orquestra de reconhecimento mútuo, de espanto, de esperanças justificadas. Um a um, os rostos antes pobres de expressões foram mudando. Angústia, medo, procura, mas, sobretudo, felicidade. Como havia muito não se sentia na cidade. Os abraços no meio da rua sucederam-se, criando um bolo de corpos que já se procuravam fazia tempo. Uns incrédulos, outros certos de que haviam deixado os pertences de seus entes nos lugares de sempre, pois haveria de chegar o dia do reencontro. Mães, filhos, irmãos, vizinhos apenas. Um mar de reencontros, mas também de notícias ruins. Talvez já não seja importante falar desses momentos, contar essas histórias. Ainda resiste o odor daquele dia e as paredes ainda guardam as tramas sigilosas. Nas ruelas tristes, nas peles cansadas, nos olhos desenfreados a consumir infinitos, existe tempo, existe vida. Voltaram de longe e com dores secretas. Os corpos não eram os mesmos. Voltaram sedentos pelo sono abundante, pelo pão das manhãs e as mornas toalhas de preparar as mãos para as refeições. Um dia haverão de contar seus estados, de dizer suas ruínas, apedrejados que foram por um regime absurdo. Um dia haverão de acordar e dormir como antes, remotas crianças da cidade a contar a história dos acontecimentos com a sabedoria dos antigos. Mas até lá, o forte cheiro do regresso é que fica e as tardes escuras anteriores ao reencontro, são apenas sanha e pólvora recém usada. Um borrão na saudade evidente.

Os sinos

O que eu ouço são sinos. Dobrando-se longe dos olhos que procuram. Porque soares de sinos têm de ser invisíveis. Ouço-os, pois sinto presenças. E também porque admiro. Os sinos soam em limites de dor e palavras que sangram. Como eu, algumas vezes. Tenho os sons dos sinos embutidos. Aliciando meus tímpanos, como se fossem conversas de amor. Não existem campanários para os sinos das minhas breves alucinações matutinas. Não estão eles em igrejas. Eles vêm de distâncias não sabidas. Ecoam porque limpos, banhados em orvalhos ou lágrimas, mas silenciam às claques absurdas, como quando ditadores se impõem às multidões. Meus sinos são sacros. Meus sentimentos inundam. Meus sinos, enfim, existem e dobram porque estás em mim.

[...]

Antes eu tinha mania de ser escuro. De andar de preto e versar sobre autores impossíveis. Criava os livros que eu desejava que ninguém conhecesse e também os labirintos nas falas e artimanhas de esconder minhas paixões. Vivi nisso até que ela me deteve. No dia cinco de Setembro de um ano qualquer. Ela derrubou meus muros com uma frase certeira: - tu és tão teatral! E foi assim que se instalou no meu palco. Como se nada mais lhe pudesse mexer ou desviar, ficou me olhando. Bem para dentro e cada vez mais. Até hoje. Escrevo estas linhas com ela fazendo alimentos para nossa fome de gente, enfiada nos trajes estampados que a fazem tão íntima. Ela se sente pequena e eu, demasiado teatral para fazê-la desacreditar em mim. Também já não posso. – Vou já amor, acabo de gritar. Tenho um presente para ela. Sei que vai amar. Depois da cozinha me fará cessar outras fomes e eu poderei lhe contar as histórias que invento apenas para poder ver em seu rosto, o sorriso de que tanto gosto.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Coisas de alma

Tenho tantas almas que agora dei de enumera-las. Faço de conta que têm privilégios os primeiros lugares e lhes dou a primazia das respostas, como se fosse um sistema de rodízio interno. Mas isso se limita às dez primeiras. Ando em confusão. Sobretudo em relação às sinceridades. Eduardo, minha alma de número nove, contou a mentira desmedida de que eu andava com saudades da Clementina, que prontamente se arrumou em seus vestidos de mau gosto e se plantou na porta do meu apartamento. Antes de eu a poder convencer de que tinha sido uma mentirinha boba de Eduardo, ela me estapeou e correu pelas escadas do meu prédio me chamando de louco. Pobre Clemê, ainda acredita em almas.

Depois disso foi a vez de Xenóbias, minha alma de número dois. Não pagou o aluguel e eu agora tenho que correr a cidade atrás de um teto levando apenas as sobras das roupas que peguei na lavanderia e uma cumbuca de porcelana que nunca usei, mas me pareceu muito sozinha quando estive pela última vez na cozinha e Vanda Flores, minha alma número sete, pediu-lhe emprestada a beleza esquecida com os rabiscos chineses que bem poderiam ser de Caldas Novas. Seu Roberval, o síndico, enquanto isso, lacrou o apê até eu pagar a renda. Ando atrás das almas estudadas para dar um jeito nisso.

E tem aqueles que não são ouvidos há muito tempo, os que fugiram às regras ou que as redefiniram e não conseguiram se incorporar, desistindo das lutas titânicas com a razão ou a criatividade. Sérgio, por exemplo, minha trigégima alma, anda aos murros com a Carminha, a número cinco que se disparatou e pediu por favor para entrar no banheiro das mulheres do shopping apenas para ver como ficava a calcinha recém comprada de uma dona que deu toda a pinta de que entraria no banheiro para experimentar a tal calçola.

Mas o pior de tudo, foi Antônio, o último da fila do meu dentro. Gritou, manhã dessas, que estava morrendo. Se eu não fizesse o que ele pedia, estaria condenando uma alma esverdeada e de bons costumes, como se definiu. Nem lembrava dele. Aliás, nem dele, nem de muitos destes pobres espectros que se me habitam. Mas fiz a vontade de Antônio, que afinal, não sou tão mal assim com as tais minhas almas.

Ele queria ver o mar.

Fui com Antônio e todos os outros para uma praia deserta e ficamos lá o dia inteiro. Ele acalmou. Fez até verso. Antônio tem disso. É dramático, mas boa gente e sabe bem a poesia reconfortante que se faz às pressas, para criar bonitezas de urgência quando o mundo não anda muito agradável. Antes de voltar para seu lugar, Antônio me perguntou se eu não me cansava de estar distante, no que eu disse: estar longe é para quem pode, Antônio, estou perto, mas já não conto que as distâncias são assim, distantes. - Olha, Antônio, tenho que me lembrar mais vezes de ti, disse afinal. Antônio riu baixinho e foi dormir em paz.

Atrás do espelho

Quando a cama parece maior. Quando o olho se reflete sozinho. Quando os quadros e músicas se eternizam e as coisas a dois se igualam ao respirar. É nesse momento que a solidão ganha sentido e tantas noites mal dormidas amanhecem. Tantos claustros desnecessários se tornam pátios e eu, com o riso dantes preso e agora público, aprendo a dizer - que saudade!

Solidão, enfim, é estar só, com uma vida inteira por detrás do espelho.

Farwell

Recuso-me a acreditar que não aconteceu. Que a palavra saudade é apenas um folguedo das minhas noites em claro. Escreveste que estarias aqui, todas as vezes que eu virasse as páginas do livro. De fato estás. Mas destas últimas doze vezes, imóvel. Em que esquina desencontramo-nos. Deixamos coisas demais por lá? Pelas estreitas vias de um passado recente? Não sou Drummond. Não és Cecília. Mas tenho os dois em um mesmo rascunho. Num pergaminho sacro que guardo com tanto carinho. Somos Forrest e Amèlie, andando depois do cinema, falando mal dos amigos. Criando questões sem resposta. Talvez não lembres dos ditos. Talvez não recordes do cheiro. Mas há sempre um registro esquecido. Um retrato roubado (e no nosso caso tenho muitos retratos doados). Não há como falar em retorno. Não se retorna nunca. Afinal as coisas acontecem a despeito de nossos quereres e, às vezes, de nossos atos mais desesperados. Continuo existindo em pedaços. Tem um enorme guardado nos confins do Mondego amado, esperando a urgência da fuga ou das ciências para subir à tona. Grandioso e melancólico como um sonho de amor. E sempre cheio de saudade - aquela dor que por vezes é a única que faz bem ao espírito. J.M.N

domingo, 26 de outubro de 2008

Cenas da Fé

Cenas da Fé

Enternecedor é o livro com poemas de Emanuel Matos e fotos de Miguel Chikaoka. O livro me foi dado de presente pelo Neto, com carinhosa dedicatória do Emanuel. Presente bom é aquele que nos leva a outros mundos, outros tempos, aqueles de bem antes de anterdontem, como eu dizia quando moleque.

Esmagamentos e um sol de lascar, a mão firme de minha mãe segurando a minha e dizendo que já ia terminar – mais que respostas pra perguntas não ditas, lições para lidar com a ansiedade. Calças e camisas novas e sapatos lavados. Todo o exotismo do banquete paraense esperando na casa de algum parente. Um pouco de medo de ter que enfrentar os tios que sempre reclamavam do meu silêncio. Os dois pesadelos com aquelas bolonas do arraial: primeiro pesadelo: eu e meu irmão sendo engolidos por uma daquelas dentro do nosso quartinho da casa no Guamá; segundo pesadelo: minha mãe comprando uma daquelas e eu tendo que levar dentro de um Guamá Conselheiro atulhado de romeiros. Toda mobilização de nossos universos por causa da santinha que eu nunca via.

O Miguel enfocou bem algo que, em infância, eu nunca participei: a trasladação. Mostrou como são bonitos os fogos à noite, como a festa de explosões e luz pode compensar o barulho ensurdecedor. As imagens mostram ainda como a mãe de Jesus está entranhada nas vidas das pessoas em Belém (como na foto do que parece ser um açougue que eu coloquei no início do texto).

“A proposta do livro não foi fazer dos poemas legendas das fotos, e nem das fotos ilustrações do poema”, daí a liberdade com que Emanuel Matos espalhou seus poemas deliciosos pelas páginas de Cenas da Fé, polinizou mesmo, lançou os versos com mãos de lavrador. Sem pedantismos nem fanatismos, o poeta mostra como Belém se vê, pelos olhos da santa, em reflexos suavizados pelos ares de outubro. Como Belém construiu-se mais feminina que outras cidades por ter adotado como bordejamento para o desamparo uma rainha. O achado de Plácido parece ter sido mais que um milagre, foi o batismo de uma cidade da qual o livro me fez ter saudade.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Depois do abraço

19:30. Início de uma hora breve na qual acreditamos a casualidade do encontro. Hora das desventuras mútuas. De escutar o que o outro tem pra falar sobre os perigos da beleza e as lições da dor. Hora das gargalhadas rasgando o começo da noite e o disfarce dos sentimentos. Hora de estar de verdade com alguém, assim inteiriço, sabe? e, mesmo com o ar rareando no pulmão, tentar acompanhar a velocidade dos teus passos e frases. Aprender contigo: que quando se trata de vida, a aposta tem que ser sem reservas; que sofre aquele que tenta entender o feminino ao invés de simplesmente abandonar-se a ele; que sentir que o chão se foi é o primeiro passo pra estar nas nuvens. Depois disso logo deixas o meu ombro e procuras o colo da tua filha (ou vice-versa, dependendo de qual mulher estiver mais forte àquela hora). De longe, vejo que fizeste algo no cabelo que eu esqueci de comentar. Reparo ainda como sempre falta um abraço teu ou uma frase qualquer que expresse essa minha sensação de pilhas recarregadas e de coração azeitado após a tua ida.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O guardador de águas

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Sempre que estou obscuro, procuro Manoel de Barros. Este seu pequeno guardador de água é especialmente recomendado para aqueles dias em que estamos mais "atraídos pelas doenças das coisas que por suas belezas". Aqueles dias em que cabe benzinho dizer para o espelho: É homem proposto ao escárnio.

Manoel de Barros coisifica sentimentos ermos e sentimentaliza coisas inúteis como pregos e latas fazendo-nos crer que a língua na qual escreve não é a mesma nossa língua-mãe. Tão essenciais como o vento e o canto dos passarinhos, suas palavras atestam seu destempero com o mundo.

Mas este destempero não é desgosto, como no popular mexerico, não! É coisa santa de segredos de relva, casas que que falam de suas assombrações e Bernardo... Ah! Bernardo, o tolo da estrada.

Guardando águas, falando sobre as grandezas do ínfimo ou tratando do nada, Manoel nos inspira a reconhecer a tez primitiva de nossa história pessoal e a nos atar às coisas da terra e do ar como sendo as peles necessárias à proteção dos sonhos e ao entardecer de nossas angústias mais infantis.

Ainda bem que Manoel existe e nos diz clara e corajosamente sobre o seu guardador de águas: Um livro o ensinou a não saber nada - agora já sabe. J.M.N

Sem sentido

O pior de tudo é a espera, esse acúmulo de tempo sem sentido. Um silêncio desconcertante em que as mariposas não surgem e o telefone jamais toca. Como noutra parte escrito: só resta a prisão do corpo e a eternidade das fugas impossíveis. Enquanto tudo volta num turbilhão feroz de anotações e convites não feitos, no peito insinua-se uma velha lição - mais coração, mais cicratrizes. Houvesse paz nesses dias de espera incerta, o ritmo de nosso centro de existir descompassaria, diminuiria seu trabalho e as razões de pulsar extinguiríam-se. Mas o silêncio que fica é impressionante, executa a beleza das sinfonias, isola o sentimento de partilha e quanto mais prolongado fica deixa menos sentido para a saudade. J.M.N

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Fogos na noite

Apoxima-se o primeiro e único aniversário daquela noite. Nosso templo de renascimento, onde até o céu aquilatou suas cores e pendeu sobre nosso abraço satisfeito, transformado em sucessivas explosões.

Os fogos do Círio anunciaram nossa chegada como os primeiros amantes da fantasia de fé que se encerrara para os demais, mas que se firmava entre nossos beijos e as cantilenas de adoração e encontro. E naquele preciso momento, também os fogos inauguraram a nossa existência paralela.

Naquela noite houve lágrimas e êxtase, e a entrega ofegante de um encontro por ambos desejado. Naquela noite em que findamos nossa entrega na mesma hora em que o céu inaugurou suas cores fictícias, a sensatez deu um passo atrás e a esperança pela eternidade declarada se instalou como uma promessa inquebrável.

Inquebrável?

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Excertos terapêuticos VI

"Era apenas por querer que a noite sempre se aproximava mais lenta. Digo, sempre desejava que viesse rápida, logo ao fim da manhã. Depois da primeira parte do trabalho já poderia ter aqueles olhos imensos a guardar-me toda a dor dos dias antes sozinhos. Era apenas porque isso era impossível que mais o desejava. Como as verdades que ficam escondidas nas coisas brutas que saem das bocas durante as brigas de amor. Dizer que se não acontecer assim ou assado “vamos embora para sempre” é a pior desfeita que se pode pronunciar. Era por ter certeza de que isso um dia viria a ser verdade, que sumi. Mas deixei a porta entreaberta. Sempre há esperanças nas frestas das portas e nos espaços desconhecidos. Um dia ela chegou em casa e me disse que estava cansada. Resolvi que era comigo e mudei de desejo para esquecimento. Hoje não há améns e nem as mentiras bonitas que me faziam tão feliz. Cansada de quê? Eu pensava. De mim, de nós? Deixei a porta aberta e muitos quereres não ditos e foi por isso que a noite entrou para sempre em nossa casa, porque não soube descortinar os dias pouco a pouco."

O livro dos artefatos do nada - Cantídio, p. 78

Histórias para depois do sono V

Lembrete: parar além de Ceuta com seus dois céus mediterrâneos. Não ir a lugar nenhum enquanto dure um abraço. Os olhos impertigados de desventuras. Barcarolas ao longe me lembram o velho Francisco. Saudades dos portos conhecidos. Se vou adiante atrevo-me num mundo que nunca me quis e se ficar, posso até esquecer de onde vim. Qualquer vento por favor! É um pedido justo já que estou no limite. Ela voltou com água e docinhos estranhos. Deu-me um beijo e segurou a minha mão. – Vamos? Disse-me lenta. Eu fui. Ao longe, no outro lado, Gibraltar e a pungente existência dos amores e medos. Há terras que ainda ficarão desconhecidas e coisas em mim que nunca mais deixarão de existir. Como ela.

O que era para se dizer em abril

Te vejo fim de maio, em meio às sujeiras do deserto do Novo México, para onde vou afogar minhas mágoas. Aquela desculpa de estar cheia da insensatez que te causo não foi lá muito boa, mas acredito. Fica chato mesmo ser bom o tempo inteiro. Esqueci-me de como ser mau, perverso. Ontem fez um dia daqueles em que estaríamos sentados de pantufas trocadas, comendo Corn Flakes murchos com iogurte vencido, só por preguiça de ir ao mercado. Li o Neruda que roubei de ti e, a despeito do Chico Buarque, nunca mais te devolverei. Fico, agora, horas e horas escrevendo versos, mesmo detestando poesia. Escrevendo coisas infames tipo: roubei os traços ao mágico/interpelei minhas sensações/e estavas lá/ dormida num sono meu/tranquailidade nunca mais. Vou dar essas coisas para alguma banda local. Quem sabe pega. Os meninos de hoje tem um limite muito maior do que o meu para as coisas bobocas que se escreve. Filosofar nem pensar. Nem sequer um diazinho de raiva das coisas ridículas da TV e a aflição de se ler uma Sábato ou um Lautreamont. Foi disso que escapaste? Da chatice? Do surpreendente descobrimento de finitude? Do gosto pelas coisas que não são o gosto dos outros? Onde estás que não me respondes? Fico aqui a escrever estas barbaridades, esperando que um dia aconteça novamente aquele estado eufórico de te encontrar pela primeira vez. Protegido em meio à arrogância dos que julgam que nada existiu antes deste vazio. Eu sei quem foste. Sei que estiveste cá. Já não estás, mas ficaste de algum modo. Te vejo no fim de maio. Cheio do pó e da solidão do deserto. Mais seco e suave na pele e na boca. Com bom gosto para águas. Te vejo num fim qualquer. Desses meus dias no internato ou nos pontos finais que ainda surgirão na minha interminável busca por novamentes, retomadas e mais adiante, por uma vida inteira.

Aos leitores do Blog

Caros leitores,

Queremos agradecer os comentários e e-mails sobre os posts aqui publicados. Nossa intenção é estar sempre acompanhando a evolução de nossas visitas, bem como dar a melhor atenção possível àqueles que escrevem comentários.

Apesar das atribulações pessoais desses últimos meses, estamos tentando não deixar o blog muito tempo sem alimentação e instalamos um contador de visitas, cujo numerário nos enche de alegria sempre que constatamos o aumento das visitas, através do registro de novos IPs.

Tivemos que ativar o moderador de comentários, pois, infelizmente, nem todos os visitantes utilizam do espaço de comentários da melhor maneira e esperamos que isso não tenha desencorajado os costumases comentadores.

Estaremos sempre prontos a responder seus carinhosos e-mails e manter contato direto sempre que possível.

Um grande abraço,

Palavras de Ontem

domingo, 28 de setembro de 2008

Excertos terapêuticos V

"Este sonhar acordado, este cismar poético diante dos sublimes espetáculos da natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu às almas de certa têmpera. Doce é gozar assim... mas em que doçuras da vida não predomina sempre o ácido poderoso que estimula! Tirai-lho fica insipidez; deixai-lho, ulcera por fim os órgãos: o gozo é mais vivo porque a acção do estímulo é mais sentida... mas a ulceração cresce, o coração está em carne viva... agora o prazer é martírio".

Viagens na minha terra, cap. XXIX - Almeida Garrett, p. 183

Caminhos

Hoje eu fui ao restaurante que você tanto gosta. Depois fui ao mesmo café daquele sábado, lembra? A padaria onde lhe vi naquela manhã, de relance, tornou-se um mirante inevitável. Saindo de lá, costumo ir à praça que queria te mostrar, tem o busto de uma mulher que é muito menos bela que você. Também tem a seleção de filmes idiotas, com os quais iríamos nos divertir em pijamas, caso não houvesse nada mais para se fazer na cidade. Sentei no mesmo banco onde aquele monte de palavras estranhas foi dito em silêncio, porque não houve tempo para fazê-las ter som algum. O lugar de que você me falou na ilha, lembra? Fui só. Não tinha cor nenhuma. Um dia, quem sabe, ainda lhe mostro essas coisas ou, quem sabe, simplesmente lhe ensino os caminhos e lhe convenço de o quanto é bom poder ir lá com essas lembranças.

Noite meia... um estado único

Ah não! De novo não, tá? Isso de ser indelicada não te cansa?
Tópico um: Olha, devolve lá a cortesia que te dispensei.
Não podes ser assim tão antipática.
Briga?
Eu nunca brigo quando estou aborrecido.
A mentira entrou na minha vida há tempos e nem sei quem foi o primeiro que me disse: Isso está errado!
Vai ver não teve.
Nós dois estamos aqui. Com um problema sério a resolver.
A primeira vez que te quis foi com muita força.
Não sei explicar essas catástrofes cinéticas que arrebatam minhas vontades.
Posso te contar como é ser feliz? Faço isso em segredo que assim ninguém descobre que te enganaste, ok?
Então tá, fica com o teu vazio que do meu eu já estou farto.
Talvez tenha tido dores naquela madrugada, mas que te importa?
Pareces mais empenhada em ser assim... Como és! Eu também quero entender isso, mas prometo que vai ser a última coisa que tentarei contigo. Isto é, no dia em que me esforçar para entender, estou deixando o circo... Nada mais de espetáculos de conquista.
No dia do jogo de cartas eu estava nervoso.
Havia perdido a outra mulher da minha vida havia 30 minutos.
Tinha um nome antigo e um inevitável ar de distância.
Sabes o que eu disse?: Posso te beber?
Ela riu e disse: Claro!
Ai eu perdi o rumo... Isso sempre acontece.
Na praça tinham os espectadores do jogo de futebol. Vitoriosos e derrotados lado a lado embebidos de barulho e cerveja e eu ali, admirado pela beleza nada acidental daquela mulher.
Virei-me para ela e dei-lhe um beijo.
Nem sei para quê te conto isso.
Provavelmente já sabias da farsa toda... ou não?
Também tenho meus momentos.
Não podias achar que eras a única a desmantelar sentimentalidades.
Caso não saibas, treinei com a melhor das pessoas. Por acaso tinha o teu mesmo nome.
Como já te contei, ela me negou tudo. Mas tudo mesmo.
Ai me sobraram seus ensinamentos de silêncio, trago-os sempre que encontro pessoas assim... Isso, isso, como tu!
Agora já posso introduzir o tópico dois. Amor.
Não é justo que isso venha sempre por último, afinal, a busca de todo mundo acontece por ele, apesar disso e como recurso da minha embriaguez que assim seja.
Chega de drama, vamos ao que interessa.
Tens vontades estranhas ainda? Tal como agressões, cismas, mordidas e aquele suco na camisa branca para acabar de vez com qualquer expectativa de retorno?
Então estamos na mesma.
O mais engraçado é que meus braços ainda se lembram.
É difícil cultivar esquecimentos... Quando tentava, anos atrás, tinha dores de cabeça, coceiras e muita tristeza.
Agora acabou. Trago tudo comigo. Uma certa sabedoria dos anos em que andei sozinho, cultivando, igualmente, anúncios de eternidades.
Foi assim até aqui.
Agora tem um cansaço espaçoso que constrói muros e cercas aqui dentro. Não deixa as coisas que estão destinadas a sair seguirem seus rumos.
Também não sei se te interessa. Tampouco minha vontade de te contar é sincera.
Muito disso diz respeito às coisas que nunca ouvi de ti e talvez digam mesmo respeito àquelas que nunca te disse... Ou será que disse. Sempre falo demais.
Não esquenta, não vou começar nada. Tenho mais o ímpeto de fins.
Acertamos que aquela noite seria a última? Ou melhor, a única?
Nunca devíamos impedir as madrugadas desse jeito, não achas?
Se quero a tua opinião?
Não! Tenho as respostas. Só não esquece que o tempo consome tudo, ouviu? E para esse destino, só tem um remédio... Viver.
Dorme bem que eu já te perturbei demais.
Minhas lembranças pedem passagem. Um pouco da dor de ontem, também. Velhos vícios de querer demais.
Podes usar sozinha o sofá.
Talvez a friagem da noite te descubra e faça na tua pele aquilo que eu adorava ver acontecer. Não deixa o vento da noite te acariciar demais tá?, tenho ciúmes bem específicos em relação a isso.
Quando acordares esquece que isso se passou.
O tópico três vem para finalizar a conversa. Queria dizer isso de outra forma, atrever-me a interpretar esta tua permanência. Mas já não o faço.
Tenho nos olhos as ironias medonhas com que me presenteaste e o cansaço acumulado da ousadia.
Queria pedir-te mais da tua presença. Isso faria toda a diferença na partida, mesmo que essa fosse inevitável.
Tarde demais para impedir que entendas tudo errado eu sei, e mais, dói-me saber que assim o é. Sem coisas que ficarão ou se ficarem, estarão pela metade.
Paciência, o gozo disso tudo é saber que a alma existe e diz disparates vez por outra.
O amor... O maior deles. Aquilo que nem sequer ouviste de tão instantâneo que foi.

Espera...

Te espero desde amanhã. Desde que me bastava a poeira infantil das brincadeiras no quintal. Te espero atordoado com os braços retrácteis, aparelhos indispensáveis do agarrar e nunca soltar. Te espero durante a noite arquiinimiga de minhas virtudes, enquanto roubo cárdios-passos de outras bocas, enquanto escrevo imposturas para amores tristes e não usados. Espero que apareças dilacerada, estemporânea, e me roube a solidão crescente, a magnitude do estar sozinho, para que o ermo do costume neutro não se encarregue de mim jamais. Te espero vítrea, deslumbrante, salvadora, na pungência daqueles ritmos que só tu dominas. Esquiva, translúcida e momentânea, a indispensável matéria que me anima. Espero um momento de incontinência fluida em que nem os gritos, nem as grades, nem mesmo a morte possam nos impedir de nós mesmos.

domingo, 14 de setembro de 2008

Preparativos para viagem

- Então ficamos assim: nos antecederemos aos pássaros e suas assembléias pela manhã e acordaremos sem dificuldade. A cafeína ajudará com isso. Tapioquinhas e conversas inacabadas terão a nossa atenção de imediato. Na rua, terei orgulhosa o teu silêncio, pois tudo saíra como planejei. Nem risinhos nem admoestações, apenas o som do motor e o ressonar calmo da pequena no banco de trás.

- (...)

- Cidades com nomes de coronéis e promessas não cumpridas passarão sem serem notadas de dentro da cabine. Estaremos absolutamente apartados do mundo. O enviesado das frases semi-esquecidas se desembuletará com o mudar das marchas. Planos. Novidades do mundo diáfano que habitas quando não estás comigo. A tua mão na minha coxa e mais uma declaração de amor. Estás me ouvindo?

- Sim

- Casaremos três vezes pelo caminho. Na religião brâmane, debaixo de uma árvore e num terreiro de umbanda. Perderás o medo de Deus ao veres que ele também dança, ri e diz coisas que não se pretendem lições. Desejaremos mudar de vez pra Belém, pra que nosso amor seja certo como a chuva. Talvez em Mosqueiro. No Marahu, onde o rio faz o mar sentir-se pequeno. Vens comigo?

- Contigo irei a qualquer lugar, se preciso for. E se não for também.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Na Natureza Selvagem

 

 

 

 

 

Queria começar parafraseando Mário Quintana: Os filmes não mundam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os filmes só mudam as pessoas. E no caso de Into the Wild (Na Natureza Selvagem), como mudam.

Não é possível assistir ao filme escrito e dirigido por Sean Penn e sair incólume. Não é possível, ademais, assistí-lo e deixar de pensar que a indústria cinematográfica tem muito mais a oferecer do que os blockbusters, engraçadinhos, mas vazios.

A história verídica de um jovem americano chamado Christopher McCandless, toca-nos de maneiras divresas. O tema principal gira em torno da liberdade e da desvinculação social, da construção de uma utopia pessoal de desvencilhar-se do sistema e viver apenas daquilo que a natureza nos oferece.

A belíssima fotografia de Eric Gautier e uma trilha sonora emocionante feita por ninguém menos que Eddie Veder e Kaki King, Na natureza selvagem é daqueles, cada vez mais raros, momentos do cinema, em que o expectador é envolto por uma atmosfera de sensações e despertar de sentidos que nos leva à uma ligação lírica com o enredo, mas, principalmente, com o jovem protagonista.

A força das idéias de Chris e o foco de sua jornada - morar sozinho no Alasca por, pelo menos, 100 dias - atinge aos demais personagens de maneiras profundas e intensas gerando situações maravilhosamente humanas e ternas, por vezes duras, mas sempre permeadas de paixão.

É realmente desnecessário falar da qualidade técnica e do lirismo do filme, quando a melhor coisa que se pode dizer é: ASSISTAM! Em qualquer dia ou hora, mas assistam acompanhados, pois como o próprio Christopher escreveu: a felicidade só existe quando compartilhada.

Excertos terapêuticos IV

"O que nunca pensei é que pudesser ser assim tão vazia uma casa sem um anjo. Dentro de mim há uma coisa que espera sua volta, de repente, não sei se pela janela ou se aparecerá novamente no mesmo lugar. Para prevenir surpresas tenho deixado sempre abertas todas as janelas e todas as portas de todos os guarda-roupas. Enquanto não chega, preparo duas coroas de flores: uma para o túmulo de minha mãe, outra para o guarda-roupa que ele habitava."

Alfa, O ovo apunhalado - Caio Fernando Abreu, p. 23

De pai para filho

Chega o acontecimento teve circunstância de euforia. Entrou no carro sem saber o que viria de lá. Na cabeça a frase do pai:  hoje de noite precisamos conversar. Andou com pensamentos e incertezas e fez de conta que seu temor era pelas provas bimestrais. Na matemática fez conta que nem segurava. Nas ciências, água e terra eram suas imbecilidades. No beijo escondido com Helô teve como um gosto de aparecimento e uma imagem se formou diante de si, enquanto a boca abandonava o gosto no ar. Largou a menina na esquina do colégio e correu para sua casa. Comeu lanche feito desmemoriado e sentiu maracujá, no lugar de caju. Quando a noite chegou e o ritual de alimentação acabou-se para o pai, enfim, ele desenvolveu o cacoete de escutar os passos dentro do quarto. A porta se abriu e seu pai mandou entrar. Hoje lembrando disso faz conta de que foi uma eternidade e o prêmio pela espera angustiada parece bem menor do que naquele dia – ganhou a chave de casa… não perde senão nunca mais. Tinha um gosto de purgatório aquela frase. Mal ele sabia que aquela alforria disfarçada seria mesmo sua grande chance de existir. E saiu de lá direto à porta, como se houvesse cruzado aquele limite anteriormente.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Agenda

O mesmo compromisso; marco com a caneta vermelha. Apontamentos em volta, todos de preto. Coisas assim que eu escrevia dentro da notícia antiga: por que será que demora tanto?; preciso do terno azul marinho; isto nunca mais acontecerá este ano. E por fora, ao redor daquelas palavras acetinadas que davam gosto de cheirar e tocar, acabavam as melhores frases: eu cuido disso, tua pele; ainda bem que abandonos passam rápido no teu relógio; o jantar está pronto - peixes do mar lunar. Acaba que os dias vão passando. Rumores vêm de longe a anunciam páginas repletas de coisas a fazer: cortar cabelo; presente do irmão; lavanderia; transplante de coração (mas só metade). E um dia chega o aniversário. Presente morto sobre a cômoda, comprado na loja que mais gostávamos. Um guiso dentro de uma bola. As lembranças agora têm seus próprios sons. As festas continuam. E o ano acaba: noite feliz é a pior música de sempre!!!; assassinatos planejados: fulano A, fulano B, fulano C (esse talvez eu perdoe... talvez). E outro chega: este ano farei tudo diferente, sabe aquelas coisas que costumava escrever sobre você? Ficaram para trás, mortas como um ano encadernado. Novinho em folha o ano branco se apresenta vulgar e triste, volto antigamente e à minha primeira reunião acrescento sem titubear: idem. Recurso que sinaliza o estar das coisas em mim.

Excertos terapêuticos III

"Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo."

Memórias inventadas, A Infância - Manoel de Barros, escrito XII

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

No turno da noite

Agora que o álcool é apenas água e a noite trepida entre a euforia do encontro amigo e o desespero de te ver passar sem dar conta de minha existência, apetece-me vir aqui e escrever as memórias daquele pequeno resto de vida. Uma hora incandescente onde todos os espectros de minha alma estiveram a serviço de minhas sinapses nervosas e estas, como costuma acontecer quando estamos prestes a nascer ou morrer, evocaram estampidos coloridos como os fogos de artifício de nossa primeira noite inteira juntos - os fogos do Círio.

E quando se imagina viver novamente e se tem a impressão de que tudo acaba antes mesmo de começar?

Violinos solando tristes nos palcos que nem frequentamos. Eu imaginando tuas novas proporções femininas e algumas de tuas novas manias antes do sono. Nossa caixa vermelha em teu guarda-roupas. Meus segredos nunca antes imaginados.

À beira do lago, encantei-me com as marrecas que chegam ao outro lado sujas de lama, como Lygia. Queria que chegasses até mim suja e maltrapilha para que eu te pudesse cuidar, como se viesses de um fundo qualquer.

Ainda tem espaço para poemas? Quem cantará a música que te levava tranquila para o outro lado dos dias mais difíceis?

Agora que tudo passou, posso me encontrar com quem habita minha face, sem vergonha ou medo do impossível. Agora que as melodias tomam conta de mim e Marílias e Betânias embalam esta noite de trabalho solitário, posso finalmente pousar meus olhos no silêncio de tuas lembranças. É nessa hora que conto ao meu fiel amigo como deixaria tudo novamente para escutar as tais palavras e encotrar-me preso nos teus artefatos de nada.

Nada há que não retome as nossas conversas na varanda. O cheiro do óleo disel, a fuligem do meio dia, as janelas a espreitar nossas aventuras noturnas. Está tudo aqui. Presente. Como em um filme recém lançado. E estamos eu e tu presentes. Na mesma varanda. Mãos dadas. A perguntar se podemos nos gostar mais, se podemos viver mais um para o outro. Como se não houvesse a realidade de nossa derrota, como se fosse possível nunca ter deixado aquele adeus.

Excertos terapêuticos II

"Têm sido assim meus dias. Sou mais feliz que 97,6% da humanidade, nas contas do professor Schianberg. Faço parte de uma ínfima minoria, integrada por monges trapistas, alguns matemáticos, noviças abobadas e uns poucos artistas, gente conservada na calda da mansidão à custa de poesia ou barbitúricos. Um clube de dementes de categorias variadas, malucos de diversos calibres. Gente esquista, que vive alheia nas frestas da realidade. Só assim conseguem entregar-se por inteiro àquilo que consagraram como objeto de culto e devoção. Para viver num estado de excitação constante, confinados num território particular, incandescente, vedado aos demais. Uma reserva de sonho contra tudo que não é doce, sutil ou sereno. É o mais próximo da felicidade que podemos experimentar, sustenta Schianberg.
Não sei que nome você daria a isso.
Bem, não importa muito, chame do que quiser.
Eu chamo de amor."

Eu recebria as piores notícias dos seus lindos lábios - Marçal Aquino, p. 229

Excertos terapêuticos I

"As almas existem. Quanto mais nos enterram no corpo, quanto mais nos imaginaram no pensamento, mais no nosso nome, mas só o nome, se tornou uma palavra corrente, cada vez mais evocada, sempre que a vida se mostra incompleta.

Não há nada debaixo do comportamento, excepto as razões que se vão arranjando para fazer as coisas. A ansiedade, natural, é combatida ferozmente, como se a esperança fosse uma doença."

A Vida Inteira - Miguel Esteves Cardoso, p.189

sábado, 30 de agosto de 2008

Relembranças

As dores são partes pequenas
de olhares tristonhos e horas de adeus
Meus ditos e verbos e risos vão soltos
barcarolas festivas dos anos em que fui teu

Escrevo este livro para saber que existo
senão a canção era capaz de morrer
Encaminha meus braços em torno de ti
e deixa a memória aberta,
como era, antes de eu nascer

A leveza de Rosália

Rosália, enquanto ele se esquivava dos apertos de mão, ao contrário, prestava atenção e tocava nas pessoas. Era afeita aos encontros e olhares diretos. Enqunto ele falava de ações, política e novidades eletrônicas, Rosália abordava simplicidades nem sempre bem aceitas naquelas rodinhas obviamente chatas. Foi quando narrou o caso do Pedrinho maneta, que roubava carros melhor que os melhores ladrões... e só tinha uma das mãos. Além disso, a outra não era completa, faltavam-lhe o indicador e o mindinho. Coisa horrível; barbaridade; pensei que falaríamos de arte aqui; que é essa? Rosália ouviu esses comentários e respondeu a todos: 1. e 2. tentem vocês roubar um carro com uma mão a menos e outra incompleta; 3. Pedrinho é um artista, nunca foi pego; 4. ora quem! sou a mulher dele... e apontou para o moço que a olhava com cara de reprovação. Direta e terna, Rosália desagradou. Haveria de passar por muitas dessas em sua longa vida e enquanto durou o casamento sempre teve os olhares de reprovação do marido, mas nunca uma palavra rude ou um gesto de contradição emanteve sempre a certeza de que era amada. Fez a festa no enterro do Pedrinho, que era seu amigo de infância, como ele pediu e deixou escrito. Botou na lápide: quero os seus aplausos, já que os meus são mudos. Sua mania de toque rendeu brigas por ciúmes, uns bilhetinhos atrevidos, mas nunca raiva ou destempero. Rosália podia ser. Acho que por isso andava com tanta leveza e quando ela passava todos os rostos mudavam e havia alegrias nos salões de festa.

Margarida

Nunca soube o seu sobrenome. Sequer sabia de seus gostos ou astúcias. Um dia caiu-me nos olhos e pronto, tornou-se uma paisagem constante, depois um estrabismo e depois uma miragem.

Vive num ponto do mapa que tenho na parede. A única marca do papel colorido. É branca, como a pele dela que eu conheci na noite do dia desessete. Acho que me conheces mais do que pensas, ela me disse. Nunca pensei nisso. Só a quis. E acho que ela também.

Eles que amavam tanto a revolução 1

Já se vão 40 anos dos episódios que balançaram o mundo moderno e abriram caminho para tantas inovações culturais e transformações históricas no Brasil e no mundo. 1968 deve ter sido um ano mágico, um ano único. Seus ecos ainda estapam comportamentos, orientam teorias e maquiam uma grande porção das atitudes vanguardistas e libertárias em relação ao sexo, uso de drogas, produção cultural etc.

Hoje, a mensagem daqueles tempos soa, muito mais pelos atores que propriamente pelo script, às vezes hidropônica - saudável, necessária, mas, talvez, sem solo para cultivo!

Este ano, em comemoração aos eventos daquele ano inspirador, a Jorge Zahar editora lançou o livro 1968 eles só queriam mudar o mundo e já pode considerar ter tido sucesso em seu balanço anual. Não que as vendas tenham surpreendido, o que, provavelmente, não aconteceu, mas a atitude valeu o investimento.

O livro de Regina Zappa e Ernesto Soto encanta pela edição em papel revista, variedade de fotos e "colunas" especiais escritas por colaboradores, o que dáo ao livro o ar de jornal em edição para colecionador.

O conteúdo é de uma riqueza natural e as mãos dos autores acrescentaram leveza aos temas mais duros como a tortura no Brasil, a repressão política, a censura, os combates no Vietnã, o plano Burnier, a primavera de Praga e tantos a contecimentos fascinates e terríveis daquele que seria considerado por Herbert Marcuse como o ano da revolução mundial.

A riqueza deste período deveria ser discutida nas escolas, mostrada incansavelmente aos novos estudantes ao redor do mundo, não como um líbelo à nostalgia e ao sentimento de incompletude que parece seguir sua história, mas com a intenção de inspirar, sensibilizar e (re?)mobilizar a todos para mudanças continuem sendo desejadas, sonhos continuem sendo buscados e que, sobretudo, tenhamos a certeza de que podemos mudar o mundo - a qualquer momento. J.M.N.

O ofício de Lázaro

Anda, que sem caminho não há aventura, não há amores.

Senta e descansa como um príncipe fatigado, mas não desiste nunca e atreve-te na conclusão dos teus sonhos e princípios, como se fosses o ferreiro a bater no aço e forjar cumes para abrir o peito do inimigo e ter nisso um ofício digno e a oportunidade de criar fortalezas e defesas próprias. Como se te opusesses a um ato tresloucado de outrem. Apenas um trabalho bem feito e que permita defender teu espaço.

Não te esqueças que isso demanda esforço. Calos nas mãos. Demanda perícia, estudo e mesmo que um dia te enviem para a luta de outros, vai e faz a tua parte. Sê amigo e manda cartas quando estiveres te aproximando de casa, dizendo coisas simples como se teu coração estivesse num azul celeste por estares te aproximando de quem amas.

E depois vai a casa e ama tua esposa. Uma noite inteira escuta as verdades dela. Diz que sim. Repousa no peito dela e encolhe as pernas para ela saber que te pode proteger, mesmo que longe dos olhos dos outros. Ela te pertencerá para sempre e tu a ela, sem força ou brutalidade, sem acertos ou papéis bizarros a definir teus sentimentos e quereres.

Espera, que o dia vem logo a seguir, trabalha de sol a sol e viaja nas marcas da tua labuta. Transporta-te para as pradarias das terras de cima ou para os lagos calmos da tua infância solitária. Lá, não estarás sozinho como antes. Não. Estarás com as palavras que aprendeste e com as paisagens que te comoveram. Terás idade e talvez uma culpa ou muitas. Serás um homem. Conhecido ou não, mas terás o amor. E com isso, podes ser o que quiseres.

Breve história sem tempo

Antes dela, escrevi que para amar era necessário deixar de ser, escapar-se. Amar completamente era desprender-se de si, criar uma entidade. Quase um fantasma. Era exigir dos olhos a certeza, da boca a fartura e crer que o azul celeste é sempre cinza diante dos confins dos olhos dela. Reconheço agora que isto era apenas a terça parte dos insumos. Um doar escasso para a imensidão do amor. Amar é a deserção de si, e ter em gotas o sumo da vida e praticar atentados às certezas de ontem. Armadilhar liberdades, cultivar entregas. Amar mais que tudo e sem caber é como dar o que não se tem e criar dívidas para outras existências e dimensões, para outros eus. É nunca estar, pois este estado é próximo de inexistência - antimatéria. Amor dá luz em pequenos frascos e apreço, muito apreço, menos por si e a quem canta serve o gracejo das melodias. O amor corre nos braços de violinos, violoncelos, instrumentos para poucos. Antes dela escrevi que amar era de verdade a quintessência dessa vida que, ao que parece é mesmo a última. Hoje digo que não sei de mais nada e prefiro deixar as versões escritas para quem tem propriedade de palavras. Eu tenho apenas saudade.

Histórias para depois do sono IV

Aos domingos as brigas eram piores. Razões de ser para mortes desesperadas e amores de urgência ao pé da mesa do café da manhã. Domingo era sempre um dia útil, apesar de tudo, com astral de fim de vida e por isso, parecia que a trama do amor se concentrava mais e mais nos segundos derradeiros das despedidas, ancorando-se nas pontas dos dedos que iam se perdendo um a um enquanto ele descia as escadas e ela entrava de volta em casa, para arrumar sua semana. Era um dia indiscutivelmente superável, mas com quê de necessário. Um limite entre o imaginário de suas esperas e a realidade em si do resto da semana. A linha última entre o eu e o nós, para ambos. Enquanto partilharam domingos, souberam exatamente o que significava viver um para o outro. J.M.N

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Atrás da noite

                                                "Nada há que não caiba no sono:
                                              Um dia vermelho, a dor de nascer sozinho,
                                                         tua vida sem mim, a minha sem ti.
                                                          Pouco há que me revista o tempo:
                                           Teu retrato ferido, tuas mãos a escolher-me,
                                                                       Poentes cantados a dois.
                                                                 O livro dos artefatos do nada

Foi lá para se consultar e terminou apaixonado. Apesar do desastre, nada mudou enquanto ele não disse que sentia saudades. Ela se iludindo porque não sabia se queria ser descoberta e ele assustado sabendo que se perdera. Um típico caso de amor em vieses, mas menos intenso porque a dona da coisa não ardia com inquietações apaixonadas sobre encontros e vinhos adormecentes. No dia do sushi, ele se admirou com a quantidade de coisas que ela podia falar num único minuto. Não conseguia acompanhar o ritmo dela. Deixou-se, por assim dizer, ser conduzido. E foi. Tinha uma certa esperteza e segurança naquelas coisas ditas sempre, em almoços de sábado. O que não havia era a intenção de amar. Pelo menos de sua parte, pelo menos naquele instante. Talvez de ambas as partes as coisas se tenham dado meio ao acaso. Se é que se pode dizer que as coisas ocorreram de lado a lado. Mas ai umas das dores se instalou primeiro.

Vamos aos fatos...

Não coração, prefiro não ir a essa micareta absurda... Muito barulho, pouca intimidade, sabe? Mas olha, posso te oferecer café da manhã, companhia e massagem nos pés. É claro que uma parte desse diálogo foi omitida (aliás, aquela em que era quase um pedido, a história de amanhecerem juntos) e mais ainda, as coisas que insistiam em se formar na cabeça dele... Caso não saibas, detesto carnavais fora de época... Terei que ir um dia desses com você?. Não faça isso, senão sou capaz de aceitar um novo convite. Muito estimulantes essas coisas que me dizes!

Ela mandou esta mensagenzinha maldosa para o celular dele e naquela hora, também o maldito aparelho se acostumou com ela, pois quando ela parou com as confissões medidas, ele teve a impressão de que sua bateria esvaia-se mais rápido a cada minuto de silêncio.

No sábado, depois do susto das descobertas recentes e um almoço intragável, pois sem ela a lhe ensinar malabarismos japoneses, mais uma vez ele fez o papel de entregador. Pôs-se numa bandeja e foi lá ter com ela. Sobrou um domingo inteiro de espera mutua. Depois das desculpas formais a sinceridade de estar se atrevendo a dar com os burros n`água.

Tenho saudades… Quero te ver... Quero mais da tua presença… Mais que qualquer coisa já quista... Um capricho é permitido... Andas muito ocupada com os cuidados para o alheio… Eu ando ocupado de ti... Se me incomoda?... Só quando isso não cabe nos teus dias de semana…

Mas deixando de lado as marmotas do acaso e da grave rebeldia que ela insistia em revestir de distâncias, a semana passou muito lenta.

Foi quando ele percebeu que as coisas eram mais complicadas do que já pareciam ser. Finalmente um grito do hospital de dentro, chamou-lhe para a realidade. Amor, de novo amor. Irremediavelmente. Os sábados não seriam mais os mesmos.

(Problemas e coisas que infestam pensamentos)

“As prestações vencem na segunda. Meus olhos estão murchando. Conto com as coisas inventadas para saber-me decente e merecedor de uma promoção. Minha chefa é uma débil qualquer coisa. Tudo vale no combate à dor de ontem. Quero os doces especiais de um lugar que não conheço. Amor! Acenda-me. Cuide-se, pois eu te quero. Eu não sou ameaça. Ameaçar é verbo que não pronuncias nunca. Deixa-me morar nos teus amanheceres?”.

Um turbilhão de coisas nefastas invadiu a cabeça dele. Para além de todo o rico vocabulário daquela situação de enamoramento, as palavras manobravam seus terrenos e alojavam-se como facas nas suas incertezas. Palavras por dizer: crença, mobília, novidade, viagem, sozinho, toalhas, cremes, costas, batom, esmeraldas, ladrilhos, beleza, tua, eu, quando, sozinho, sozinho, sozinho. Não.

Nas desesperanças daqueles dias infinitos ele deixou escapar-lhe mais saudades. Ela escapou com as coisas de sempre. Aquilo que se tem é o que se dá. O que se pode dar, melhor dizendo. Ele podia mais talvez, dada as circunstâncias e o histórico de baú aberto, sem tempo ou tampa que possa segurar dentro, as coisas que talvez não se deva contar a ninguém. Mas o pouco a se dar, naquele caso, significava um abismo imenso de coisas a fazer, dizer e sentir. Olha, confessa logo, vai! Não queres e pronto. Pára de fingir. Eu não suporto essa agonia adolescente de querer te ver a toda hora. Tô quase para fazer um diário. Enfeitar o calendário com cores absurdas, marcando as datas e lugares onde fomos instantaneamente felizes. Usar expressões do tipo, ficar e beijar longo, como se dizia quando era tudo bom e maior do que amores eternos. Na sétima série tinha mais amores do que os outros. E isso me fazia melhor?

A sugestão que segue é como se eu os conhecesse. Pudesse falar e fazer algo além de registrar essas linhas que contam pouco do muito que era visível estar instalado. É o seguinte...

Que isso acabe. Da melhor maneira. Com ou sem dor, que as coisas sejam atraentes o suficiente para numa noite qualquer daqui a vinte anos, um dos dois possa dizer... Uma vez eu tive esperança de estar amando (ou sendo amado). Dissipem a rispidez das defesas com a ternura quase santa da não despedida. Fiquem. Um no outro. Como pertencentes. Coisas mútuas, apesar de discrepantes. Mas com coragem para as diferenças. Olhem mais. Sorvam mais. Adotem coisas, filmes, animais e papel de pão para as coisas sem importância do dia-a-dia. Leiam clássicos. Deslumbrem-se. Animem-se ao sair de dia e ter a certeza de que terão alguém a espera. Mordaças já não cabem, assim como a escravidão. Não mintam. Digam. Não morram. Vivam-se.

Na sexta-feira, depois de muitos desencontros ele ligou.

- Queria ouvir tua voz.
- Fiquei mal desde anteontem.
- Viste minha mensagem?
- Já depois de um tempo.
- Quase vou ai.
- Ias me pegar de pijamas.
Queria muito. Tem flores ou super-heróis estampados? (Um não dito)
- Amanhã sei que vais estar ocupado, mas te ligo mesmo assim.
- Vou gostar.
- Tudo de bom.
- Pra ti também, mas também liguei para te dizer que não quero que te afastes.
- Isso não vai acontecer.
- Então até. Dorme bem. Como se eu mesmo estivesse ai para te fazer dormir e despertar em segurança (ou não dito). Questão: como deixar de dizer coisas assim?

Ele pensou que as coisas já se passavam e que, de alguma forma, suas esperanças deveriam encontrar um abrigo. Dormiu e acordou como fazem os loucos. Bebeu água. Transformou-se. Aflito que estava pela descoberta de algo novo. Queria contar a ela. Queria invadir seu apartamento de pantufas e cuecas de seda, pedindo-lhe simplesmente para ficar. Como não poderia mover-se daquele cansaço antigo, virou para o lado e cantarolou Tomara, do Vinicius. Torceu para que a manhã lhe trouxesse boas novas e descansou finalmente da sensação de estar sozinho. Mesmo que ela não o pudesse ouvir, foi o mais sonoro dos “boa noites” possíveis. Desfez-se a impressão de abandono e a noite se ergueu como um guia. Atrás dela, um sem fim de estranhos finais felizes, como filmes inacabados e ganhadores de prêmios, esperando para serem estrelados por eles. O sorriso já nasceu sem consciência. Sonhos, afinal, não levam mais que um segundo para trazer alegria.

                                         Swanage, 23 de setembro de 2003.

sábado, 16 de agosto de 2008

Recordações emprestadas

Recordo daquela mulher, correndo atrapalhada pela rua molhada, apressando-se para encontrar com ele. Debaixo da pele o fogo do reencontro. Seu desespero é sentido por todos e os homens que esperam pelo turno de trabalho abrem espaço para que ela passe e se atire contra o portão e peça com os olhos loucos que soe o sinal. Que sua espera acabe. Tinha voltado de uma cela. Desfeita num cárcere úmido em cujas paredes se cabaram sua lágrimas. Sua boca quase sem forma e movimentos. Suas carnes queimadas pela violência do sistema. Suas lembranças ainda explodem como um monte de fotos em sépia, encontradas nos baús da casa de seus avós. A sirene toca. Seu coração dispara. Os olhos todos agora esperam aquele que a fará ser novamente. Em frente à fábrica. Manoel aparece e corre em segundo e meio até a presença dela. Suas forças secam e o corpo dela se abandona nos braços do homem. Seu homem. Todos em volta retiram os chapéus. De joelhos e humildemente abençoam a cena. Um em mil, mas ali, bem à frente de seus olhos cansados de tudo aquilo. Amanda tenta dizer aguma coisa, mas já não há palavras em seus pensamentos, não há músculos que possam erguer palavras em sua boca e expressar a sofreguidão do encontro. Ela penas se deixa acarinhar. Manoel também não fala nada. Ninguém fala nada. Amanda expia. Deixa um último e livre olhar àquele que a esperou sempre.

Enlace

                                            A Wagner e Edna, meus afilhados...

Antes pensava que era coisa rara, umas vezes fajuta, nunca simples ou graciosa. Uma espécie de decreto instituído numa nação para dois e que, segundo os pactos lá escritos, haveriam de mudar as vidas de ambas as partes, sem imposições, talvez até com mutualismos mais que Rousseaunianos. Um papel que às vezes traduz a coisa que se desprende dos olhos quando simplesmente eles se expressam - os olhares?

Eu estava lá. Vi os dois jurando e orando (talvez mais ela, do que ele! Não por seu pretenso ateísmo, mas por sua história, afinal alguns pais são insubstituíveis mesmo), dizendo sins à sua maneira tão peculiar. E vi naqueles olhos que se encontravam mais uma vez, a certeza de que os verei sempre nas mesmas órbitas, ampliando seu espectro de mundo aos olhos de seu pequeno astro-menina.

Fui testemunha. No papel firmei minha crença naqueles olhos que também me econtraram e me atrelaram existencialmente às suas histórias, dando-me quem sabe um capítulo e desfazendo minha personagem (só vós sabeis). Tive tanta sorte de os encontrar que estiveram à minha espera com sorrisos abertos, mesmo quando eu desacelerava o curso inexorável daquela sua conquista.

Queria que minha barata literatura escondesse a obviedade que é meu sentimento por vocês, que desse conta de lhes criar um cenário mais rico ou virtuoso, contudo, deixo de lado o ofício e aqui transcrevo o que lhes quis dizer com toda a pompa e circustância durante a cerimônia e diante dos seus, pois sei que o curso normal de seu encontro se encarregará dos afetos e da escritura dessa história, agora oficial.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Lambarizinho...

Soube naquela manhã que algo lhe faltava. Sentiu o dia esvaindo-se, a noite chegando e alguma coisa continuava errada. Um mês inteiro se passou e ele com a estranha sensação de que alguma coisa ficou para trás. Indefinida. Montada num grande engano que ele não sabia como desfazer. Sentiu tristeza. Conformou-se com as poucas lembranças daquela última noite agitada e sozinha. Concluiu que não era uma forma. Não era um corpo ou uma foto não tirada que lhe faltavam. Não era o retorno, ou tampouco o edredon contra o frio. Era ouvir-se dizer um poeminha infantil àquela que, como ninguém, encheu de lambaris priscados os seus sonhos e deu-lhe os amanheceres mais felizes de toda a vida. Pediu permissão a Manoel de Barros e publicou em seu pequeno jornal de bairro, uma sua cantiga.

"De minha mão, dentro do quarto
meu lambarizinho
escapuliu - ele piscava
priscava
até cair naquele
corixo.
E se beijou todo de água!
Eu se chorei..."

Ele espera que ela sinta-se protegida onde quer que esteja...

domingo, 10 de agosto de 2008

Histórias para depois do sono III

Na distância se conhece a falta, inclina-se ao infinito, resguarda-se imaginações dos tempos antes de existir. Como passarinho, canta-se a pôres-de-sol. Estive a muitas milhas dos teus olhos e nessa imensidão horrível, a cor da noite foi desfazendo e, de repente, estava claro, moviam-se em mim os redemoinhos de reconquista. Mas não saí do lugar. Não apertei o passo. E a distância ficou. J.M.N

terça-feira, 29 de julho de 2008

Histórias para depois do sono II

Acredite seu moço, olhando assim ninguém diz, mas ela tem coisa estranha. Usa espelho de água e penteia os cabelos com os capins venenosos na estrada. Sentada estava na minha cama, quando aconteceu de esticar seus olhos e eles foram tão longe que o céu pipocou anil, as árvores choraram passarinhos e as pedras estiveram mais duras. Quando ela prometeu me fazer gente, cobrou cada segundo de vida e lambeu os dedos. Olha moço, pode ser que eu esteja enganado, mas acho que ela ficou com alguma coisa minha... sei não, parece que minha carne, minha altura ou meu nome por completo. J.M.N

Histórias para depois do sono I

Faz escuro no meu dentro e lambarizinhos espreitam meus abandonos todos. No meu quarto de existir, onde acontece de luz fraquejar para dormir, acredito em poesias pois encontrado estou num suspense de recém-amor. Apesar disso, ainda remonto, quando em quando, os brinquedos de inexistir e neles vagueio louco, como as minalbas que engravidam de céu azul e dão filhos branquinhos, branquinhos. Dei de encontrar verdes-piscina, fincar fura-fura no pé do tempo passado e estou propenso a criar as terras em que eu me encontre perfeito, olhos mirando os teus, pele aquecida e lenta. No abraço que dei naquele homem mofino, que se envergonhara de tanto querer, deixei teu nome num papelzinho roxo, cor que te procria, apenas para que ele possa saber que existes e assim, quando derramar lágrima que valha, saber que não está só. J.M.N

segunda-feira, 28 de julho de 2008

[...]

Hoje senti saudades das suas costas. Tomei um banho longo e abandonado. Não havia intensão de limpeza apenas, muito antes a de esquecimento. Mas este não veio. Não desceu por meu corpo molhado. Não encontrou o caminho do ralo. Ao contrário. Valeu-me o tempo da espera. A mistura de lágrimas e banho, o cheiro antiséptico do sabonete de que você tanto gostava, tudo convergiu para os minutos eternos em que você se dispunha a dividir as águas comigo. Seus pulos de frio. A hesitação em molhar os cabelos, seus olhos fechados quando minhas mãos lhe tocavam molhadas. Os sons engraçados que seus movimentos produziam em partes específicas do seu belo corpo. Tudo me lembrou de você. Queria que me escutasse ao menos uma vez. Que lembrasse de Vinicius a cantar Tomara e de mim a cantar tantas coisas antes do seu sono. Queria que soubesse que tudo não passou de um engano. Que seus espiões estavam errados. Tomei o mais longo dos banhos num dos mais longos dias dessa existência depois de nós. Precisei como nunca de suas mãos me enxugando. Não era para ser outro cuidado. Era para ser o seu cuidado. Aquele que me fez reviver, que me fez atravessar o mar de esquecimento em que me perdi ao longo dos anos. Minha pele limpa da poeira do mundo e minha alma ainda clamando pela limpeza do destino. Talvez eu consiga. Talvez eu continue procurando. Meus afazeres diários não são mais os mesmos. Tento desfazer essas marcas, mas a água que lhe atiçava o aconchego não dá sequer para acalmar o insuportável calor que minha solidão produz. J.M.N

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Não cometa a gafe de morrer sem escutar 8

   

... e na oportunidade, não deixem seus filhos, sobrinhos, filhos da vizinha, crianças que você chama de minhas, sem escutar também.

Como fui feliz na minha infância!

Tive as casas de meus avós. Quintais. Tive dúvidas e discuti com meu irmão mais velho. Quebrei o calcanhar, vi os peitinhos da empregada do Bruno, corri atrás de papagaio, roubei bombom no minibox (como o Renato e o Joel)... Ademais, tive Vinícius de Moraes, Chico Buarque de Hollanda, Milton Nascimento, Toquinho, Clara Nunes, Walter Franco e Bebel Gilberto, todos reunidos em dois espetaculares trabalhos: A Arca de Noé 1 e 2.

É muito difícil ser criança. Imagina sem essas coisas (discos maravilhosos) para acalentar sonhos, substituir os embalos da mãe, descobrir que podemos ou não ser os filhos ideais, mas que no fim o que importa é amar, despertar paixões, dentre muitos outros ensinamentos?

Os dois discos A Arca de Noé são essenciais. São obras-primas. Falam de amor, de meninice, falam de ficar juntos para que o trabalho seja melhor, falam de injustiças sociais, das dificuldades de ser, falam de esperanças, de espiritualidade, do desejo de que o tempo não passe para que nossas crianças - as de dentro e as de fora - permaneçam no tempo infinito de poder tudo, de querer (e, às vezes ter) tudo.

É simplesmente lindo ouvir as aberturas, cujas orquestrações magníficas preparam o terreno dos ouvidos e do corpo para uma experiência única, um misto de enlevo e deboche, com caricatura de circo, com referência a úteros, amores pueris, aulas de vida, enfim. Além disso, cada disco tem uma canção final que é pura entrega, amor paterno no melhor estado: menininha e o filho que eu quero ter.

Ouvir A Arca de Noé é transportar-se para um tempo que pode não ser mais este - o presente com sua dureza - mas é, sem dúvida um tempo que não nos abandona, mesmo que algumas vezes façamos de tudo para o negar.

Para lembrar:

A Arca de Noé 1:
1. A Arca de Noé
2. O Pato
3. Corujinha
4. A Foca
5. As Abelhas
6. A Pulga
7. Aula de Piano
8. A Porta
9. A Casa
10. São Francisco
11. O Gato
12. O Relógio
13. Menininha
14. Final (Orquestrado)

A Arca de Noé 2:
1. Abertura
2. O Leão
3. O Pingüim
4. O Pintinho
5. A Cachorrinha
6. O Girassol
7. O Ar (O Vento)
8. O Peru
9. O Porquinho
10. A Galinha D'Angola
11. A Formiga
12. Os Bichinhos e o Homem
13. O Filho que Eu Quero Ter

J.M.N

Quando voltas

Quando voltas o beijo da água é diferente, as sedes secam, as fomes dormem. O mar revolto me toma a língua e as hecatombes de meus desejos cessam por completo. Meu corpo existe e se torna mais jovem, como por encanto, como por te enfronhares nele. Quando voltas, atualizas as coisas sem lugar que espalhei pelos quatro cantos da casa e pedes notícias sobre os crimes do bairro. Arrumas as roupas, ocupas os espaços mínimos deixados por minha bagunça. Quando voltas, teus chinelos percorrem meus caminhos e é comum encontrá-los embaixo dos meus pés, protegendo meus passos. Há uma luz estranha que envolve todas as coisas que fazes e percebo que jamais fui tão feliz em qualquer outra presença. És capaz de deixar teus filmes de lado para que eu possa ver os documentários mais estúpidos. Contas meus cabelos brancos dando-lhe nomes de personagens famosos. Brincamos de acordar com os olhos fechados para que a suavidade do sono não nos abandone e quando acontece de eu abrir meus olhos, não raro encontro os teus bem abertos, já me olhando, e no teu olhar sinto a proteção perdida pelos anos. Estou inteiro. Um ser, enfim. Quando voltas, é como se eu próprio voltasse do lugar mais longínquo, das paragens impossíveis em que me abandono quando estou longe de ti. J.M.N

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Algumas coisas sobre Lívia (ou “devolva-me”)

Quando encontrei a forma neutra de lhe dizer que amava, sua arguta sinceridade me estancou e ela disse – então não te quero! Não devem existir gabaritos para esses emblemas, nem entrelinhas para as minhas veleidades. Gosto por inteira e intimamente, e se digo que estou pronta para morrer por ti, é bom que acredites!

Não houve susto ou diatribes. Não houve intento ou criação e ainda assim fui destroçado (retirado do meu centro), expropriado de algo intangível e constitutivo de cuja existência só dei conta quando subtraído, e isso logo assim que ela pousou seus olhos famintos e me pediu para que mudasse sua vida. Num instante estava encontrado, um tanto expropriado, açoitado talvez, noutro abandonado à modelagem de nossa entrega instantânea, efusiva.

Não vejo as horas como de costume. Como já te disse parece que, longe de ti, as coisas ganham densidades improváveis, duplicam, matam a razão. Nunca a espera foi tão longa, nem os dias tão obsoletos. Quero estar contigo a toda hora. Criando coisas, risadas, lugares comuns e incomuns... Estar. Tudo se tornou atenção a ela. Minha existência consignada.

Um pouco das lembranças…

“Ao longo da praia o vento se interessou por seus cabelos. Era estranho vê-la tocada por um ente sem corpo que a fazia sorrir e mover-se de maneira específica para se livrar dos cabelos nos olhos e da areia dos braços. Havia qualquer coisa de egoísta na forma como eu a queria. Estudava maneiras de lhe dizer que suas ancas estavam me querendo, que sua pele adormecida estava esperando que eu acordasse para saudá-la, no meio da noite e com exaspero de antanho. E quando achava que tinha respostas, ela me vinha sempre com outras perguntas, estranhando que eu não soubesse dos astros, do horóscopo do dia. Estranhando.”

Depois, talvez, o tempo passe, as tardes fiquem mais longas e abatidas – nem lembro de quando comecei a sentir desse jeito. Ainda penso nela, fresca naqueles seus trajes adoráveis à porta de casa, pedindo para entrar. Ainda penso nos olhos dela, quando alguém me olha por mais de cinco segundos, fazendo-me acreditar que existo. Pergunto, quase exaurido, se ela espera por um grande acontecimento ou se suas esquisitices seriam coisas normais. E nesses momentos secretos em que me endivido com o tempo, acontece algo estranho nos confins do meu ser. Às vezes acho que é a idade chegando. Talvez seja ela, acordando da sesta da tarde, amarrando seus longos cabelos negros e me chamando para deitar ao seu lado, aninhado na quentura que é própria de seu corpo.

Quem sabe meu ritmo cardíaco ainda seja seu maior troféu. Penso nisso como se fosse obrigado. Como se fosse um costume de tribo e acabo dormindo em seus braços, com a fome acumulada do dia, seco por um gole de água, destituído das certezas todas... mas isso, apenas dentro de mim. Apenas por dentro.

Seu gosto reside na culminância de minha alegria, na insurgência de meu tédio. Insinua-se ainda sua pretensão de ter tudo e nada entregar e quando o vento sopra, longe de nossas praias imaginárias, ainda há o cheiro de sua intimidade a aturdir meus sentidos, assaltando minhas reservas e decorando meus pudores com palavras sujas e hieróglifos em nossas peles. Ardor de entrega absoluta, inconsciente. Talvez indevida, talvez necessária.

Ontem me peguei passando pela portaria do teu prédio, apenas para sentir que meus caminhos mais adorados ainda existem. Não tem graça. A cidade fica triste. As madrugadas então... Volta logo. Acaba com esse mês indevido. Senta comigo e diz que me precisas como antes... Como nunca... Como jamais...

Não sei se ela ainda passará por aqui. O caminho é o mesmo, mas os sinais da estrada mudaram. Nunca antes as manhãs foram tão violentas ou desnecessárias, ou quem sabe simplesmente monótonas – não há estribilhos, acordes dissonantes. Não há música sequer. Sem sentido mesmo. Iluminado por um sol medonho sento à beira do caminho. Minhas pernas esqueceram da viagem. Enquanto aguardo o desespero de meu corpo ganhar forma e eu ter uma paralisia – ou sentir fome –, escrevo uma carta de amor. O conteúdo ela já conhece. A tinta no papel muito branco, as vírgulas, os pontos de exclamação. Apenas o desfecho é novo.

Nunca mais escreverei cartas de amor.

Sinto que tudo se resume em estar ou continuar. Estou, mas não sou. Continuo, mas não sei como. Minha outra pessoa reclama da tua ausência. Como não tenho respostas, por enquanto, digo apenas que um dia ela poderá te ouvir chegando novamente e enquanto isso, a fisiologia deste ente que se me habita cuida de tudo, pois não há vida deste lado de mim.

Estivemos entregues aos nossos limites. O meu: não desistir de ser inesquecível; o dela: esquecer-se de que foi esquecida. Talvez as mesmas ilusões em corpos distintos. Houve cumplicidade em todas as loucuras, em todas as razões. Houve espetáculo, grito, virtudes esquecidas e achaques, numa troca que certamente ensejava pactos oníricos, ancestralidades.

Nunca haverá de se repetir!

Esta é a certeza que me consome agora e apesar de ter sofrido igualmente pelo terror dos curdos, é a infinidade desse momento que me assombra, pois se o tempo passa rápido para o meu esquecimento, o espaço que ocupa meu sentimento é como uma supernova eclodindo, um universo a nascer dentro de mim enquanto ela se despede para nunca mais voltar. Isso deveria me dizer alguma coisa.

                                         Belo Horizonte, 03 de julho de 2008.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Quando vais

 

Por que quando vais levas a essência da casa? Levas aquilo que faz da casa casa, e não rua ou prédio ou bar. Aquilo que transcende a simples construção de tijolos, cimento e telhas. Lar mesmo. Abrigo. Lugar de partir e de chegar. Levas o beijo insone durante a madrugada. O despertar de duas horas. O banho a três. Levas a pressa pra ir pro trabalho e o já esperado aborrecimento do marido. Levas o grito diante da barata e a risada do marido. Levas o pedido de desculpas pela aridez das palavras e o sossego do marido. Levas o ficar de conchinha no sofá da sala e a felicidade do marido. Tudo transformado em um lugar estrangeiro, estranho. Mas o quintal ainda está lá, e nele as cachorras dormem ao sol. A televisão está desligada. A sala está desligada. A janela entreaberta olha tristonha a casa da vizinha fofoqueira. Espera um movimento qualquer que indique que ainda existimos pra alguém. A porta espera ansiosa uma chave que não é a minha. O quarto rosa espera as mãozinhas que voltarão com adesivos novos da Barbie. Ele a envolverá com sua mão de pelúcia, não importa se ela vem com catarro no nariz. O carro também espera, ele espera mais que todos a hora de ser ligado e partir, coração disparado, em direção à praia onde estão as risadas desbragadas e o sono com quem se ama.

sábado, 12 de julho de 2008

Do que fizeram com o teu coração

O roçar monótono da vassoura sobre o chão empoeirado lembrou-me o teu bigode grisalho e a preocupação em tingi-lo todos os sábados, assim o tempo não te causaria mais danos. O cheiro de nicotina insistia em te acompanhar discreto, sobretudo às seis, quando sentavas na porta pra colocar apelidos nos vizinhos e fazer funcionar o teu relógio automático. Havia uma linha que nos unia, uma das pontas permanecia amarrada no meu dente mole, a outra no meio dos teus dedos cotós. O momento era efêmero e fundante. Logo puxavas com força, levando dentes que nunca viravam moedas. Ao final do rito vinha a mulher curar as feridas deixadas, enxugar o sangue e as lágrimas. E isso dizia muito sobre nós: a necessidade da tua violência, a minha submissão e a presença apaziguadora da mulher entre os dois homens. Um dia vi no teu caderno de anotações o nome completo do Zeca escrito com a tua letra de calígrafo. Me deu vontade de perguntar se o mais velho foi feito com amor. Calei. Sabia que ias responder algo do tipo Fazer mulher é fácil, quero ver é fazer homem... eu fiz logo 5. Eu sou profissional. E se afastaria borrifando veneno nos caminhos que os cupins construíam na parede da nossa casa. Quanto a mim, ficaria ali parado me perguntando se realmente o teu sêmen encerrava uma alquimia qualquer. O que sei é que nem os médicos deram conta do teu hermético coração. Fizeram pontes onde havia paredes. Cortaram pedaços podres. Adiaram a tua morte, mas não te fizeram amar mais que os teus cachorros e netos. Aos sete filhos restaram as lições tácitas que nem todos aprenderam: pagar as contas em dia, ajudar a quem se gosta, não negar trabalho, falar o que tem que ser falado. Nesse sábado com o sol já alto, recuso a vício fácil da televisão e as palavras elegantes do velho Freud pra fazer o nosso melhor programa: vestir uma bermuda velha, posicionar a cadeira de frente pra rua, e passar a tarde toda escutando o teu silêncio.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Resposta

Ela me disse que eu tinha partido. Foi através daquelas palavras que não sei como saíram que me dei conta do que percorri. Cansei dos oceanos e das coisas baratas. Queria o peito dela de novo. Sua voz carcomida cantando para eu desistir. Um pouco do apego que aprendi por lá também me incomoda. Fica difícil construir estranhamentos diante de coisas que nos são tão íntimas. Através da porta eu lhe disse até logo. Eu menti. Eu fui sacana de novo. Mantive meus objetos estranhos do lado de dentro. As meninas que agora conheço acham que eu sou de verdade. Nunca ninguém me ensinou a abraçar. Aprendi as coisas da vida, inexistindo. Qualquer coisa que eu venha a dizer nessas linhas me perdoa tá? Tenho tantos erros nos passos que o caminho já me perdeu. Talvez as bailarinas ensaiem hoje. Um amigo meu tem um filho sensacional. Eu tenho um filho que é mais do que eu jamais poderei ser. Eu quero mesmo e ser o que sou. Um pedaço de dor encrustado na distância inventada entre velhos camaradas. Lembro com certo desgosto da minha partida. Das coisas insinuadas que ficaram para trás. Os trapos de noites que eu quero de volta. Tinha um vício que era o afastamento. Bem, aqui desse lado em que me encontro, isso é um luxo que não tenho. Ela ainda me diz coisas no escuro. Percebo pouco das suas alegrias.Ele me disse que eu parti. Naquelas letrinhas sofridas eu entendi que tinha ficado. Permaneço por aqui. Dentro das coisas que me levaram. Não dói acordar. Acostumei-me com o espelho. Na caixa de madeira que ela julgava ser o seu único segredo, descobri uns troços que ela me deixaria de herança no dia do nosso fim: Contas de cristal barato, as duas cartas do nosso amor e um pedaço de mim que eu não sei como ela conseguiu. J.M.N

O sal das lágrimas

Vou chorar agora. Entregar-me ao desespero de nunca mais levantar ao teu lado. Abandonado na compulsão do choro. Queria te levar para Paris e afundar meu rosto no teu seio contraído de frio. Ter com força, te machucar um pouco, como de costume. Começo a pensar que sou egoísta e que tudo o que fiz e faço é apenas para estar neste estado latente, como num precipício constitutivo, perto da morte, sempre. Meu choro comove a todos menos a mim. Estou tão cansado destas lágrimas que as desfaço com gritos de ódio. E sempre na frente do espelho. Plantei algumas árvores, tenho um livro à espera, viajei o mundo e me destruo pouco a pouco nessas inconsistências divinais de paixão e gozo. E tu que nada tens e tanto tiras dos outros, o que és? Por que me deténs? Que claustro é esse que me aninha? E quando sinto a hora derradeira me partindo ao meio, meus estertores são para aquele menino que nunca me abandonou, mas que foi imensamente abandonado. À própria sorte recorreu às mamas secretas, aos frascos de odores proibidos. Ainda que queiras sou demasiado antigo para que me destruas. Andei muito tempo nos jardins do éden, sem ter o direito, sem saber de paraísos, cantando as melodias dos banidos, dos mequetrefes da longa noite. Estive em Vênus. Andei por Tebas e ao fim dos dias de infância, já estava metido nas coxas graúdas, despojado de mim, entregue à ruminância da carne pela carne. Um aventureiro sem rumo, sem pudor, cujo menor pedido foi ter tudo. Acho que a morte me cai bem. Corrija-me se eu estiver errado a respeito das coisas nas quais acreditas:

  1. amor demais não é bom!
  2. nunca ter é sempre ter!
  3. juro que quero a normalidade, mas sabe do que mais, por que tê-la se não faz mal algum?

Um dia sento à beira do caminho. Vou para Lagash comer tâmaras perfumadas. Compro-lhe uma encharpe de seda pura e talvez passe em tua casa apenas para mostrar que, afinal, morrer também faz bem às vezes e aquilo que nasce com o choro de desespero, de abandono, não deve jamais ser esquecido.

domingo, 29 de junho de 2008

A CARTA ÚLTIMA

P/ Franz Kafka

 

Caro amigo,

Não foi este o adeus que ensaiaste a 10 anos no escuro do teu apartamento. Disseste-me depois que, ante a visão dos meus passos na rua vindo para uma visita casual, algo se acalmou no teu íntimo e que desististe da queda. Hoje, o tempo parou lá no alto do relógio da praça principal de Praga apenas para observar a despedida que teus poucos amigos vieram dar-te. A nossa Paris listrada chorou tua morte luzindo suas lâmpadas cálidas.

Nobre amigo, prometo-te que executarei quase todos os teus desígnios: enviarei ao editor a ordem correta da tua última coletânea de contos. Presentearei Felice com a tua caneta e o tinteiro vazio – como ninguém, ela soube te fazer escrever e sofrer. Postarei no correio a última carta escrita pretensamente por uma boneca para a sua dona, a mocinha de uma praça em Berlim. Teus sapatos a teu pai; ele saberá o quanto caminhaste até concluíres que vocês não precisavam compartilhar a mesma senda. A Dora farei crer que com ela chegaste o mais próximo do sossego. Mas não queimarei os teus escritos, não seria justo depois que fizeram senhoras desmaiarem e retraçaram minhas certezas na literatura e na vida.

domingo, 22 de junho de 2008

Capítulos

Há horas que me chegam em naus velozes, as idéias. Seus redobros, como frestas a separar nostalgias e defender os amores.
Preparo uma letra desenhada.
Começo com as noites daquele amor. Ou desejo.
Emprego liberdades e paixões e imagens, amiúde incorretas, como diáspora dos medos e refugos esmerados do que eu não disse.
Escrevo romances e crônicas simples. Redondilhas e sonetos para os dias sem ninguém.
Ademais não estou presente nos ditos. Apenas nos teus.
E lá, talvez, esteja o restante desta história minha.
Já tão despercebida, quase sem razão de ser escrita. J.M.N

Às Letras

Em cima do risco, uma letra se aproxima do abismo, o vão dos dizeres hirtos.
Brancura ensejando a tinta, o traçado ou a esperança. Uma linha e nada adiante.
A letra suicida.
Escangalha o verso, abomina a rima. Letra sem qualquer vertigem.
Desata de um verbo ou de um nome e morre na minha escrita.
Despedaçada, entrementes, livre.
O seu silêncio é por querer.
O meu, porque é preciso. J.M.N

Cartas Negras

                                                                       para J.Zavala

Sentado ao pé das árvores mortas, subindo as longas escadarias – improváveis monumentos – ou esperando os barcos retornarem das aventuras de destino e os homens com seus tesouros empedernidos a confiscar as nativas para os amores instantâneos. Assim ele se desdobra em seu ofício de escriba. A cutucar o passado com seu condão de homem preto. Com a alma fincada do outro lado desse mundo e com os olhos atentos para os perigos em redor. Ei de lembrar de Jonas, o guerreiro, escrevendo as linhas da história secreta de seu lugar. Segurando numa mão a pena e na outra, uma arma branca para se defender dos ladrões, dos mercadores do tempo, dos senhores incautos, do perigoso esquecimento de Lusaka, dos velhacos disfarçados de mestres, enfim. Naquela época, já todo mundo acreditava que as vozes eram unas quando se falava de Inhambane. Mas não era assim. Não poderia ser assim. Não enquanto ele estivesse em pé olhando horizontes além de qualquer um. Nativo indesejável na terra lusa, estreitou laços com os mais sabidos, pois quando saiu de casa, prometeu ao pai cumprir o sacramento de voltar e saber mais que os mais sábios e ter mais força e coragem que os mais arrojados. Não por vaidade ou desdém, mas por vontade e crença. E assim fez. Conheci-o quando seu exílio ia pelo meio. Quando as torturas estavam mais viscerais e seus amores já quase se extinguiam numa mesma cama. Tinha o rosto manso e aberto. Mas a tristeza inoculara nele a terrível peçonha do estranhamento, da desolação. E algumas vezes, largava-se no triste exercício da descrença em si, da assunção de verdades alheias, malquistas. Andava atrás dos frades menores, buscando nas escrituras desviadas as respostas para seus enigmas de outrora. Nunca sentou à mesa deles, os mais abastados. Nunca cruzou o rio pela ponte principal. Esteve sempre à margem. Curioso e constante como o tempo em si. Rebocando com firmeza as estirpes menos nobres. Contou-me sua história sem capítulos, como se fosse um fluido que, há muito, teimava em lhe sair pelos poros. Seus olhos não vacilaram nunca e mesmo quando chorou o fez sem dor nenhuma, sem vergonha, sem molhar seus panos. Quando o deixei pela última vez, estava quase entregando o último volume de seus escritos. Esperava que o doutor de letras avalizasse sua escrita, suas idéias. Não pensou jamais em desistir e mesmo quando o imortal sisudo lhe deu negativas, não se entregou jamais àquelas vilezas. Jonas ainda me escreve e nomeia suas palavras de as cartas negras. Escrevo-lhe de volta com a mesma loucura branca dos que o impedem de voltar para o seu lugar, mas desejando intensamente que ele fique em sua fortaleza, com os olhos atentos no mar azul e suas distâncias. Escrevendo sobre a terra mãe, como ninguém mais será capaz de fazer.