segunda-feira, 21 de julho de 2008

Algumas coisas sobre Lívia (ou “devolva-me”)

Quando encontrei a forma neutra de lhe dizer que amava, sua arguta sinceridade me estancou e ela disse – então não te quero! Não devem existir gabaritos para esses emblemas, nem entrelinhas para as minhas veleidades. Gosto por inteira e intimamente, e se digo que estou pronta para morrer por ti, é bom que acredites!

Não houve susto ou diatribes. Não houve intento ou criação e ainda assim fui destroçado (retirado do meu centro), expropriado de algo intangível e constitutivo de cuja existência só dei conta quando subtraído, e isso logo assim que ela pousou seus olhos famintos e me pediu para que mudasse sua vida. Num instante estava encontrado, um tanto expropriado, açoitado talvez, noutro abandonado à modelagem de nossa entrega instantânea, efusiva.

Não vejo as horas como de costume. Como já te disse parece que, longe de ti, as coisas ganham densidades improváveis, duplicam, matam a razão. Nunca a espera foi tão longa, nem os dias tão obsoletos. Quero estar contigo a toda hora. Criando coisas, risadas, lugares comuns e incomuns... Estar. Tudo se tornou atenção a ela. Minha existência consignada.

Um pouco das lembranças…

“Ao longo da praia o vento se interessou por seus cabelos. Era estranho vê-la tocada por um ente sem corpo que a fazia sorrir e mover-se de maneira específica para se livrar dos cabelos nos olhos e da areia dos braços. Havia qualquer coisa de egoísta na forma como eu a queria. Estudava maneiras de lhe dizer que suas ancas estavam me querendo, que sua pele adormecida estava esperando que eu acordasse para saudá-la, no meio da noite e com exaspero de antanho. E quando achava que tinha respostas, ela me vinha sempre com outras perguntas, estranhando que eu não soubesse dos astros, do horóscopo do dia. Estranhando.”

Depois, talvez, o tempo passe, as tardes fiquem mais longas e abatidas – nem lembro de quando comecei a sentir desse jeito. Ainda penso nela, fresca naqueles seus trajes adoráveis à porta de casa, pedindo para entrar. Ainda penso nos olhos dela, quando alguém me olha por mais de cinco segundos, fazendo-me acreditar que existo. Pergunto, quase exaurido, se ela espera por um grande acontecimento ou se suas esquisitices seriam coisas normais. E nesses momentos secretos em que me endivido com o tempo, acontece algo estranho nos confins do meu ser. Às vezes acho que é a idade chegando. Talvez seja ela, acordando da sesta da tarde, amarrando seus longos cabelos negros e me chamando para deitar ao seu lado, aninhado na quentura que é própria de seu corpo.

Quem sabe meu ritmo cardíaco ainda seja seu maior troféu. Penso nisso como se fosse obrigado. Como se fosse um costume de tribo e acabo dormindo em seus braços, com a fome acumulada do dia, seco por um gole de água, destituído das certezas todas... mas isso, apenas dentro de mim. Apenas por dentro.

Seu gosto reside na culminância de minha alegria, na insurgência de meu tédio. Insinua-se ainda sua pretensão de ter tudo e nada entregar e quando o vento sopra, longe de nossas praias imaginárias, ainda há o cheiro de sua intimidade a aturdir meus sentidos, assaltando minhas reservas e decorando meus pudores com palavras sujas e hieróglifos em nossas peles. Ardor de entrega absoluta, inconsciente. Talvez indevida, talvez necessária.

Ontem me peguei passando pela portaria do teu prédio, apenas para sentir que meus caminhos mais adorados ainda existem. Não tem graça. A cidade fica triste. As madrugadas então... Volta logo. Acaba com esse mês indevido. Senta comigo e diz que me precisas como antes... Como nunca... Como jamais...

Não sei se ela ainda passará por aqui. O caminho é o mesmo, mas os sinais da estrada mudaram. Nunca antes as manhãs foram tão violentas ou desnecessárias, ou quem sabe simplesmente monótonas – não há estribilhos, acordes dissonantes. Não há música sequer. Sem sentido mesmo. Iluminado por um sol medonho sento à beira do caminho. Minhas pernas esqueceram da viagem. Enquanto aguardo o desespero de meu corpo ganhar forma e eu ter uma paralisia – ou sentir fome –, escrevo uma carta de amor. O conteúdo ela já conhece. A tinta no papel muito branco, as vírgulas, os pontos de exclamação. Apenas o desfecho é novo.

Nunca mais escreverei cartas de amor.

Sinto que tudo se resume em estar ou continuar. Estou, mas não sou. Continuo, mas não sei como. Minha outra pessoa reclama da tua ausência. Como não tenho respostas, por enquanto, digo apenas que um dia ela poderá te ouvir chegando novamente e enquanto isso, a fisiologia deste ente que se me habita cuida de tudo, pois não há vida deste lado de mim.

Estivemos entregues aos nossos limites. O meu: não desistir de ser inesquecível; o dela: esquecer-se de que foi esquecida. Talvez as mesmas ilusões em corpos distintos. Houve cumplicidade em todas as loucuras, em todas as razões. Houve espetáculo, grito, virtudes esquecidas e achaques, numa troca que certamente ensejava pactos oníricos, ancestralidades.

Nunca haverá de se repetir!

Esta é a certeza que me consome agora e apesar de ter sofrido igualmente pelo terror dos curdos, é a infinidade desse momento que me assombra, pois se o tempo passa rápido para o meu esquecimento, o espaço que ocupa meu sentimento é como uma supernova eclodindo, um universo a nascer dentro de mim enquanto ela se despede para nunca mais voltar. Isso deveria me dizer alguma coisa.

                                         Belo Horizonte, 03 de julho de 2008.

Nenhum comentário: