quarta-feira, 30 de junho de 2010

De finais e outras memórias duradouras

“Quanto mais feliz, mais breve é o tempo.”
Plínio

É rebanho solto, devorando pasto verdinho, verdinho. Mas aqui é como fosse uma dorzinha que tem corrida de caracóis, e demora a passar, porque vem desde antes de meu tempo. É uma dor com compromisso de virar as gerações. Essa dor tende ao infinito, que nem uma reta feita num círculo de raio desconhecido. Coisa inexplicável e ao mesmo tempo dizível apenas com invenção de palavra, com despreparo de certezas. Meu pai cabe dentro da história dela. Como meu avô. Um monte dos meus melhores parentes. É como a coluna do organismo que nos fez a todos daquela casa que morreu. A casa que era abrigo de tudo antes. Abrigo da mais secreta informação dos tempos. Onde tinha o quarador que inventava um sol por dia para secar nossas roupas e drenava para o interior da sua estrutura um punhado de coisas que não deveriam ter sido ditas. O que me caminha agora por entre esse despertar forçado é o que antes ganhava cofre e parede, esquecimento e colo naquela casa. Passou! Como passou o amor dela. Como as suas certezas de que eu não sou a melhor escolha se confirmaram. E aquele meu medo de não ter explicação tudo o que me transborda e intensifica, veio feroz como o sopro que derrubou a casa onde todas as coisas eram possíveis. Inclusive a esperança de que a história contada poderia ter um outro final. J.M.N.

Excepcionalmente

"Não fale, amor. Cada palavra, um beijo a menos."

Dalton Trevisan

Sem amor, docinho! Contanto que valha à pena. Não vais te arrepender. Nunca acontece. Deita aqui, ó. Preciso de mais espaço. Mas vai ser rápido, Paizinho. Não me chame disso. É exclusividade de alguém? Mais que isso. Deixa comigo essas tuas calças, peraí. Não, não levanta agora. Calma menino, não vou fugir. Mas pode ser que eu fuja. Eu corro atrás. Eu até que gostaria. Você quer me dizer como vai ser? Não, confio na sua experiência. Você está em boas mãos. Espera mais um pouco. Vou começar a cobrar hora extra, heim. Eu pago. Tô brincando, você ainda não fez nada além do previsto. Por que? Muita gente vem aqui pedindo carinho? Não, mas muita gente vem para se sentir menos só. Não é meu caso. Ah não? Estou pela metade, isso sim, é pior que solidão. Tem alguma coisa que eu possa fazer para melhorar isso? Tem sim: abre uma exceção para a questão do amor. J.M.N.

Ecce homo

Sou um homem e não um átomo. Sou carne, ossos e armamentos. Jamais restrito ou miúdo sempre crescente. Sou cheio de riscos, de cicatrizes. Caibo nas linhas dela, nas linhas de tantos, mas sou apenas um ser sem receios. Sou casulo e não crisálida. Com marfins e ventos a compor meus risos. Sou rechaçado conforme o incômodo que nasce diante do que sou. Sou conforme me deu ao mundo o útero responsável por mim. Sou de alfenim e indecência. Porcaria e flores lindas. Sou um tiro de suicida, que escapa de si e daquilo que mais deseja. Espero, sentado, minha coleta. Partir não parto. Não ouso desistir. Sou para tantos uma mentira, uma impostura. Sou para mim mesmo um certame pleno na seleção de coisas que dar em escritos, luvas ou cinamomos. Vou-me indo contra tudo, enfrentando gritos, desespero e audácia. Às vezes crio, às vezes mato. Sou um homem de santidade dúbia, de abstinência nula, de resíduos e memórias – como as tais fotografias. Sou ainda deste corpo desavisado e seu rumo. Sou caminho para um bem, bastardo do amor entre Deus e o Diabo. Sou a antonímia de um anjo, criação envolvente dos sonhos. Sou um homem imitando um elefante, para ter passos lentos e pegadas profundas. J.M.N.

sábado, 26 de junho de 2010

E era sempre morrer por engano

Pendido naquelas palavras eu ficava horas esperando que acabasse a dor pungente que ela sabia iniciar. Sabia tão bem meu organismo que eu negava. E fazia isso com a esperança de que acabasse logo. Naquele ano comecei a mentir para mim mesmo. Foi quando soube da estiagem. Secava algo dentro de mim. Como houvesse um acúmulo de todas as secas do mundo bem no centro da minha alma. E tudo recomeçava. Como bons acrobatas, usávamos a gravidade, as elipses austrais um do outro. Usávamos os espaços nulos e imperceptíveis que haviam ficado fora de nossas faltas. Como partições escondidas num fundo desconhecido da gente, eram pequenas falhas que redundavam em omissões predestinadas a morrerem sem jamais serem descobertas. E, no entanto, nós dois tínhamos faro para justamente estas. E as tomávamos. E ficamos nisso de imbricar nossa amplidão um no outro. De tal maneira que jamais haverá possibilidade de se tirar todos os resíduos. E que de tudo fique um pouco. Do agrado ou do escárnio. Ao menos para lembrar que houve presença. Para além da natureza que enxerga e encontra, para muito mais longe da inquebrantável dureza da realidade, nos pertencíamos. De um jeito que ainda não existe nome para dar. De um jeito que beirava a extinção catastrófica do mundo, como uma luz artificial que só apaga com um tiro, como morrer por engano e continuar sendo feliz. J.M.N.

Subterrâneo

Enquanto cantavas eu sorria. Sorria uma distância inteira que morreu no instante em que cruzaste novamente aquela porta. Gentis esquecimentos de minhas faltas. Escavámos fundo. Bem no meio da aridez de nossas vidas pregressas. E enquanto íamos ao centro, afloravam as belezas e a escuridão. Sigamos a linha meu amor. O sono já vem. Queria de verdade ter dormido e tido um sonho bom. Talvez eu chegasse até o tesouro. Talvez tivesse a chance de fazer tudo outra vez. J.M.N.

Enquanto ela dizia

“They said the love is blind… They might be right”

Nasci como todo mundo nasce. De cabeça pra baixo, posição defensiva e muito sujo. Ela veio ao mundo no mesmo dia ou quase, mas do outro lado da Terra. Uma estrela. Mordida logo de início pelas coisas que eu jamais suporia poder existir. Ela atravessou um par de décadas me esperando na mesma esquina escura. Zombando de quem estava à sua espreita. Então eu passei. Muito tímido e com a vida pela metade. Avalizado por avós e tias super protetoras e uma mãe que talvez não me quisesse ter tido. Sei lá. Dava angústia olhar para baixo. Mas era o que eu fazia. Olhava para baixo. De maneira que a primeira coisa que conheci foram seus pés. E com aqueles pés finos de longos dedos desiguais ela me chutou. O concreto sentiu meu sangue. Eu nada fiz. Era tímido demais para dizer que estava amando. Enquanto ela dizia que seria minha para sempre, eu planejava meu primeiro suicídio. Isso em 92, quando seguramente me disse um monte de coisas confusas sobre as quais não tenho pista e me deixou a impressão mais marcante de todas... Ela disse que eu poderia ser amado. J.M.N.

Só para estar no fundo...uma canção que eu gosto

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O que seria de nós sem o passado? (ou “Debaixo da lua minguante”)

Estávamos lá naquele verão. Sem esperanças que fizessem parecer melhores os dias. E as tardes eram apenas pontes para a solidão dormente de quando se perde alguém ou a inocência em si.

Eu lembrava poemas trucidados, castigos pelas notas baixas, brigas dentro de casa e muita devolução de afeto. Ela, pelo que diziam seus olhos, estava mais para a placidez enfurecida de sua casa, as coisas andando muito dentro da normalidade – pessoas que não eram mais que gente zanzando de um lado pro outro.

O tempo surtava conforme vinha o choro. E havia a imaginação muito dura de que não havia escape. Como tudo mais, no auge dos anos de adolescência. E, de repente, a coincidência de se ter amigos em comum. Uma festa muito chata que cheirava a falsidade e músicas horríveis. Houve o sim para a fuga. De ambas as partes e em silêncio profundo.

Areia sob as pegadas. Nossos caminhos iam confluindo conforme dizíamos mais coisas iguais e intimidades que pareciam estar esperando aquele encontro desde sempre. O pertencimento, afinal, pode nascer neste tipo de encontro.

Não houve um primeiro beijo naquela noite. Não houve mais que um encontro sincero e as pegadas que se confundiam no final de uma praia deserta, madrugada alta e intensa compreensão de que a espera compesara.

Acordei com esta funda saudade na pele. Quase o gosto do sal daquela praia específica temperando minha vontade de existir. Mais um dia que volto a mim. Mais um dia encontrado e a certeza de que o passado deita sossegado e intocável numa praia anoitecida há muitos anos de cá.

Para ler escutando…

Parou de bater

Acabou o pulso no entremeio da carne, nas extremidades do toque. Acabou de acabar, com a madrugada envolvida, rota de escape das suas insígnias – vigília e sonho misturados, como em um perfume.

E o que vinha dividido e suplementar, passou a conjunto. Rumou direto para o núcleo, instância gradativa do ritmo de sua existência. A qual tinha aprendido a rumar sempre a ela, cuja escolha não era mais que conveniência, mais que a imagem tangível de um bom candidato às amarras de família.

Parou de bater em seu peito.

Tumultuo armado nas costas de sua certeza. Artérias, vênulas e nervos retesados. Presos na descoberta instantânea de que não era amor para via inteira. A teia se expande. Desde o centro do peito até os raios e músculos do braço esquerdo. A mão em garra tenta segurar a lembrança mais infinita dela com tanta força que seria preciso romper os dedos para soltá-la.

Parou de bater em sua estrutura toda.

E a esperança de ver mais um amanhecer passou. Como parou de insistir o pedido de estar, como cessou de soprar o vento, o seu destino de liberdade para dentro dos pulmões. O som mudo que era seu desde a vida começada virou segredo. Mais um. Parou tudo. Finalmente estava em si. Um sorriso que nasceu depois dele em vida.

Satisfeito. Passou desta para outra linha, e ela ficou sem saber o que passava dentro dele, aquele amor de ontem, cuja força e entendimento se tornou sua última feição estampada, como fosse uma máscara eterna ou quem sabe aquele vinco bem fundo que aparece quando se nega um alguém.

Como se fosse a feição que nos introduz a todos ao paraíso do esquecimento. J.M.N.

domingo, 20 de junho de 2010

Como musgo na pedra

“Volver a los diecisiete
Después de vivir un siglo
Es como descifrar signos
Sin ser sabio competente
Volver a ser de repente
Tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo
Como un niño frente a Dios
Es esto que siento yo
En este instante profundo”

Volver a los diecisiete – Violeta Parra

Ela me prende há meses. Um olhar apenas, uma coincidência de lugar. De tão curto e esmerado o pertencer instantâneo dos olhos foi tudo quanto bastou para o animal enfurecido que me habita dar ciência de sua existência. E mesmo com a fome guardada, mesmo recém saído da jaula, pousou-me um sentir profundo. Palmo a pequeno palmo o furor converteu-se em uma crescente manhã de verão, luz e calor constantes, o verde dos musgos atados na eternidade das pedras por todo lado. Por sobre meu mundo, por sobre a obscuridade daquilo que ainda pendia de mim feito um último ligamento que junta os músculos aos ossos. Aquela presença dela se fazendo em todo ar de meu escafandro e em todo momento sozinho diante das forças enigmáticas que me mantém acordado desde que meus portos sumiram. Sem que ela soubesse, habitava devagarinho os desolados cantos de minha espera com tamanha gentileza, sua imagem cada vez mais próxima e cristalina. E finalmente estivemos próximos o suficiente para uma dúzia de confissões, para sentir descarrilados os corpos, numa história que não diz mais que uma dança e um telefonema. E ao mesmo tempo já diz tanto. E sinto que ainda não dissemos tudo. Sinto que as janelas apenas foram destrancadas para os quintais de um refúgio que se insinua novidade e memória. Como saber do que está no peito dela, com a mesma certeza de que já esteve em mim bem antes de suas possibilidades. E, de minha parte, saber para onde volto e procuro os traços de estados suspensos e surpreendentes, feito os amores que temos aos dezessete anos de idade. J.M.N.

Não

Não use a metade de sua boca. Não me oferte outro sorriso assim. Não acene suas mãos. Não cubra com travesseiros as partes de seu corpo que despi. Não seja tão minha. Não aceite meus horários desta forma tão pertinente e segura. Não abone minhas faltas. Não cheire minhas golas, o céu de minha boca e, por favor, não vasculhe meus bolsos. Não me olhe de baixo. Não suspenda suas queixas. Não desarme o relógio para que nossa sesta jamais acabe. Não traduza minhas fugas. Não opere meus vazios. Não concorde com minhas bravuras, com minhas tristezas. Não me deixe atravessar o oceano sozinho. Não me deixe pousar em outro astro. Não permita que a ligação dure apenas um minuto e, por Deus, não maneie a cabeça desse jeito perfeito. Não mate a Lua de inveja. Não abuse da sorte dos sins. Não me deixe tão pássaro. Não recuse suas iras, seus ciúmes, minhas tramas. Não esqueça as chaves de casa. Não esqueça de pedir permissão para seus pais, a mudança já vem. Não se deixe perder onde ontem nasciam nossos sonhos mais intensos. E se não for pedir demais, não desate o último laço que nos mantém acordados um no outro. Isso tudo era para ter sido antes. J.M.N.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Anárquico

Peguem os tambores, suas roupas de festa. Peguem os licores, suas melhores ceroulas. Uma melodia que inaugure romances e seque a fartura de finais infelizes. Peguem as moedas e as caixas de fósforos, vamos invadir uma casa qualquer. Contem as histórias e sorriam felizes, pois esta noite haverá cerimônias de amor. Não quero mais estar morto e além. Quero ser e estar. Peguem seus pares, os olhos mais verdes. Peguem os livros, as botas de chuva e corram ribanceira abaixo como se a liberdade fosse um anjo recém empossado. Comam todas as maçãs, perfaçam os cálculos do que vale cada ponta de choro, cada abraço apertado. Cubram os caminhos com flores e vendam as armas também. Acabou o toque de recolher, venham todos festejar o encontro, as palavras e as linhas de antigamente. Peguem os condões e as poções mágicas. Estiquem os passos e cheguem depressa. A horda é mais guiada quando existe paixão, quando a franqueza está em cuidar. Esta noite não deverá acabar jamais. Mesmo que faça escuro, cantem. Mesmo que aconteçam desgraças ronquem, todo cansaço merece um conforto que o dissolva. Peguem meus ossos e minha matéria e desapareçam com meu ser pedestre. Me espalhem pelos astros e façam o mesmo com ela quando for chegada a hora. Um sopro na imensidão dos olhos dela deverá ser o suficiente para acabar com toda a tristeza do mundo. J.M.N.

Para ler escutando…

De necessidades e outras escolhas improváveis

Necessito vestir-me de céu para que acuranas e açanãs me envolvam no bater de suas asas. Preciso roubar teus olhos, mais uma vez, de maneira ainda mais espantosa. Necessito de últimas bênçãos, de rezas distintas, poemas de amor. Tenho que acabar com a espera, matar o tédio muitíssimo lento da vida sem ti. Necessito daqueles cabelos molhados, da tua imagem saindo do banho, cheiro de tarde, amores no corredor da casa. Preciso com tanta pressa de uma porção de alimento, de proteínas, gorduras, sais e outros pormenores, pois meu ser despede força e passos não havendo nossos beijos. Necessito de cuidados, silêncios, mortalhas para os compostos momentos de dor arfante. Preciso de luto, orvalho, novos jogos de cama e ainda mais de tuas mãos dizendo para meu corpo acordar. Necessito, afinal, de um ser mais aberto que eu, mais vidente e cheio de presságios para que me aconteça o que acontece com aqueles que amam, o complemento do universo, a certeza de que se pode ser mais que metade. J.M.N.

Excertos Terapêuticos XXII

SONETO

Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.

Mário Faustino, 1959

*Leia-se este soneto como um excerto da fantástica e pouco conhecida obra de Mário Faustino, um dos grandes nomes da literatura e intelectualidade brasileiras que por um bom tempo ficou radicado em belém. Leia-se este soneto como um momento eleito para um pedido.

Hiato,

“O som desta paixão desmente o verbo
Mais santo e mais preciso e enxuga a lágrima”

Mário Faustino – O som desta paixão esgota a seiva

Eu fujo.
Corro com medo de ouvir novamente as palavras.
Mas sempre que me encaixo na cama, quando o mundo para e agir sobre minhas obrigações é para aquele momento que retorno.
Um retorno eterno.
Talvez por isso tenha mudado minhas horas tão drasticamente. Para sentir um investimento que seja apontado para mim.
Talvez por isso que meu tempo perde peles como e fosse uma serpente que vai ficando mais velha e menos sábia.
Minha geladeira já não responde.
Não há alimentos.
Eles partiram com aquele seu olhar de revolta e dor do último dia.
Você tinha razão.
Tinha acabado de achar mais evidências. Mas, Chèrri, eu fiz o que tinha de fazer.
Um dia esse mal-estar recairá num poema e eu talvez fique sóbrio de novo.
Enquanto isso, acho pouca a embriaguez de sentir tua falta.
Tenho procurado um cão. Um companheiro que lata todas as vezes que se sentir traído. Indubitavelmente me morda se eu o tentar machucar. Ele ficará ao pé de minha cama, guardando meu último pote de sono. E quando eu esquecer que é mais importante ser de mim mesmo, ele também irá tomar uma atitude. E poderá fugir desistindo de sua lealdade. E mostrará seu desapontamento passeando tranqüilo na coleira do vizinho.
Eu deixo que as coisas se deteriorem ao meu redor.
Como besouros fazendo casas em minhas janelas e levando, pouco a pouco, meus restos mortais, minha vergonha. Seus passos silenciosos e minúsculos a escapar das prisões da noite. Roubam meus restos de comida, minha rapidez para com o trabalho.
Fico automático. Repetindo caricaturas de alegria. Montes e montes de fadiga.
E escrevo versos que ninguém entende.
E lembro o som da máquina de costura de minha mãe, e ela dizendo que não pode mais consertar minhas blusas ou que as calças rasgadas servirão para bermudas.
Lembro disso encurtando meu dia. Renunciando a fome que cresce e atrapalha meu choro desmantelado. Cristais caindo.
Meu rosto tem portais para mentiras. Mas diz também que sente a sua falta.
Que sente muito, enfim.
Não sei quem pode me dizer onde estou.
Ando tão separado ou além ou distante de mim, que nem mesmo a minha carteira de identidade serve de amparo, não me nomina.
Sou uma coisa separada e menor.
Muito mais desatado que as cordas e âncoras erguidas de navios cargueiros que partem. J.M.N.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Àquilo que nasceu enquanto meus temores suicidas se cumpriam

Então optamos por um pouco de pudor. Selamos os olhos das redondezas com um lençol e fita crepe. A janela virou um tapa-olho na métrica do edifício e restaram nossas idéias e sentidos e beijos e todo resto. Estávamos apenas nós, a escuridão do quarto e a celebração imaginada e devida a tomar conta de tudo, a dar como que libélulas em fuga em nossos ventres. Os metros quadrados daquele espaço viraram milhas e tempestades vieram beijar a terra espumosa da cama. As mãos cederam. Percorreram os solos sagrados da entrega. Entre os berros dos nervos, da epiderme. Peles achadas, um resumo, uma entrada. O gosto de interior advindo na ponta dos dedos e mais: a rota encapelada dos segredos de inocência deu espaço ao fustigar conspícuo e flamejante do toque, dos sentidos e da confirmação. Sim, haveria vida. Haveria o redescobrir lento e constante de que o pulso é ainda a medida do aqui e do agora. E por mais história acontecida que se tenha, por mais amor e crença que se tenha nas páginas adormecidas dos livros já lidos, haverá a novidade do interior feliz de um novo beijo, a matilha bem sucedida na fome mútua, no límpido ressonar presente. Haverá sempre esta seiva espessa a derramar de tudo quanto poema, verdade e coração. J.M.N.

para ler escutando…

terça-feira, 15 de junho de 2010

Diário da tua ausência X

15.06.2010 (04:21h)

Vem, vamos sair pra ver o sol. Toma minha mão e me leva daqui. Não quero saber. Bem longe, bem longe. O vento vai fazer confusões nos teus cabelos. Vai dispersar o cansaço que sinto por cima dos olhos. Não importa. Morro um pouco a cada dia longe. Não quero descer deste mistério. Anda tudo como eu não queria que fosse. Amor demais. Tudo demais. O futuro antecipando-se. Fronteiras muito além de nossas alegrias.

Vem que a eventualidade deste momento não ser real já vai se cumprir. E serei apenas eu no parapeito acordado, depois de uma noite querendo tudo de novo. Não sei vigiar. Não sei cuidar o bastante. Deixei tudo por ai, não é mesmo? Repare as fotos dos meus vinte anos. Desde lá, um monte de incertezas compradas. Sou apenas aquilo que não gostarias de ter sido. E, ademais, incompleto.

Tive tudo e me perdi. Vem dizer que era preciso. Me convence de que a melhor maneira de tudo seguir sem feridas é esta distância. Ainda não estou convencido. Você tinha razão: a vida não é como a gente quer. Ela simplesmente acontece. Como um erro e mais outro. Como despertar sozinho ou não dormir nunca mais. Como sentir que sem a nossa história, tudo ficou pendente e inacabável. J.M.N.

As eras do pertencimento

Eram estranhos dentro do mesmo sonho. Eram como um pacto feito dos anos, como um calendário muito riscado de compromissos feitos à distância. Foram um do outro, sem, contudo, terem sido dos dias. E isso não ajudou a prendê-los à realidade da vida, do passar do tempo. E foram se esquecendo. De repente se esqueceram dos presentes. A festa de fim de ano ficou adiada. Voltaram calados da viagem. Não cozinhavam mais juntos. Não havia perguntas, pois as respostas já haviam sido dadas. Andavam pela casa sem se esbarrar. Jamais brigavam pelo controle remoto. Ela pedia muito perdão. Ele pedia que ela o entendesse mais. Viviam de desculpar-se. Talvez na mesma intensidade que deviam desculpas a si mesmos. Não cediam, sinal de que já não estavam dispostos a pertencimentos. Quando se cede, acontece de entrar mais um pouco no terreno do outro. Porteiras fechadas. E todo mundo continuava achando perfeito. Quando chegaram ao fim, foi tamanho o espanto que, cada qual em seu choro ou alegria, percebeu onde haviam levado a crença das pessoas. Exatamente à imobilidade de um tempo que ficara para trás. Estancado em alguma desistência do caminho. J.M.N.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

No que repousa minha crença

Eu trago as compras.
Ela o pão. Apenas um pacote na mão esquerda.
Conversamos sobre coisas normais, o assassinato terrível no bairro ao lado, a separação do vizinho, cactus crescendo na floresta tropical.
Eu trago histórias, lendas divinas e livros muito extensos.
Ela refaz a cor dos escaravelhos e da tarde, aproveita cada gota da geléia aberta e ri completamente de eu ter me esquecido das chaves dentro do carro.
Somos maltratados os dois.
Passamos do fim do mundo.
Eu, ceifador de virtudes. Cartago vencido ou Heleno por ânsia e ancestrais.
Ela lembra um rosário bem dito, uma flor que mesmo sem cheiro é a mais procurada.
Ela efetiva minhas impossibilidades com a pele mais mansa, com as mãos mais gentis.
Eu venho de um longo desejo desencontrado. Ela da rocha que fez o mundo.
Eu venho cortando os pulsos há milênios. Ela faz pinturas com meu sangue.
Eu fiz um filho para amar mais que a mim mesmo. Ela nem pensa em ser chamada de mãe.
Eu detesto a espera que ela me faz ter. Ela adora meus macarrões inventados.
Há dias que tenho uma pergunta guardada, que me esconde outra dúvida mais antiga.
Eu tenho tantos segredos que ela me conta.
E ela, apenas Ela, tem todas as verdades a meu respeito.
Talvez por isso mesmo, eu ainda precise de um ou dois de seus conselhos.
Ou quem sabe precise de uma vida inteira para ouvi-la ir-me completando com as palavras. J.M.N.

Parou de bater

Acabou o pulso no entremeio da carne, nas extremidades do toque. Acabou de acabar, com a madrugada envolvida, rota de escape das suas insígnias – vigília e sonho misturados, como em um perfume.

E o que vinha dividido e suplementar, passou a conjunto. Rumou direto para o núcleo, instância gradativa do ritmo de sua existência. A qual tinha aprendido a rumar sempre a ela, cuja escolha não era mais que conveniência, mais que a imagem tangível de um bom candidato às amarras de família.

Parou de bater em seu peito.

Tumultuo armado nas costas de sua certeza. Artérias, vênulas e nervos retesados. Presos na descoberta instantânea de que não era amor para via inteira. A teia se expande. Desde o centro do peito até os raios e músculos do braço esquerdo. A mão em garra tenta segurar a lembrança mais infinita dela com tanta força que seria preciso romper os dedos para soltá-la.

Parou de bater em sua estrutura toda.

E a esperança de ver mais um amanhecer passou. Como parou de insistir o pedido de estar, como cessou de soprar o vento, o seu destino de liberdade para dentro dos pulmões. O som mudo que era seu desde a vida começada virou segredo. Mais um. Parou tudo. Finalmente estava em si. Um sorriso que nasceu depois dele em vida.

Satisfeito. Passou desta para outra linha, e ela ficou sem saber o que sentia dentro dele, aquele amor de ontem, cuja força e entendimento se tornou sua última feição estampada, como fosse uma máscara eterna ou quem sabe aquele vinco bem fundo que aparece quando se nega um alguém. Como se fosse a feição que o introduziria ao paraíso do esquecimento. J.M.N.

Memórias Paternas 4

Aos 6 anos…

- Olha pai, tenho a lua no meu dedo.
- E agora, o que você faz com ela?
- Hum, acho que vou guardar para depois do jantar.
- Como assim?
- Pra quando me der vontade de comer a noite.
- A lua vai ser um doce?
- Claro que não! Só um sorriso pequeno na escuridão.

Nunca mais duvidei de suas certezas.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Perguntas de Ontem XVI

A meia luz, achei seu corpo sonhando, tendo espasmos de imaginar desvarios. Ainda tenho esse tato presente em minha escrita. Ainda escrevo um produto dos sonhos que nunca soube se ela tinha. Dei, então, de inventar o que quisesse sobre o ser que me detém em outros sentidos, amiúde. Dei de fazer tremores com a poesia que obtive de seu ressonar. J.M.N

Pergunta de Ontem: o que de tão sentido te faz querer ser eterno?

Ela tinha de ter nome de puta

“Há coisas
sobre
as quais
me quero
calar
porque
preciosas
de mais
precisas
de mais”

Adília Lopes, em César, César

Pachorra minha. Testamento para superar sua existência. Eu queria mais e o mais dela me queria inteiro, por dentro, infestado de coisas que ela pudesse sorver. Eu, um refil. Ela tinha de ser coisificada para que minhas veias a contivessem, suportassem. Fui mal sucedido, de todo. Assim tive de inventar uma pronúncia, uma queixa que fosse ao mesmo tempo usual e indissociável de seu ser, como firmamentos que se inventam para aludir amores demais. Ela tinha de ter o nome de uma puta.

O problema é que eu não conhecia nenhuma. Voltei aos sonhos. Ruídos de uma infância tragada pela fome do que ainda não tinha. Voltei lá no quartinho das empregadas. Enjôos por toda parte. Medo de ser pego e pactos secretos. Me deixa entrar que eu não conto que você anda roubando a mamãe. Descobri que tinha embutido o gene da alcovitagem e cedi. Cedi para minha constituição. Armanda? Carmem? Florence? Essas eram putas refinadas demais. Voltei a paredes suadas e noites de ter medo de mim mesmo.

Ela ainda dentro. Comendo todas as pegadas antigas. Dragando com sua voracidade andrógina minhas referências. Tinha ficado perigoso. Vou morrer, mas antes dou nome a essa maldição e passo a comandar a festa. Dai, vieram as girândolas e mais uma vez uma série de enganos infantis. Lembrei que tinha uma história guardada. Achei o nome que dar àquela vertigem. Poderia ficar livre dentro do que sentia, pois ela não representaria mais perigo.

Corri pelo caminho até chegar à sua casa. Subi as escadas correndo. Derrubei um senhor que descia com sacos de compra. Gritei-lhe um palavrão. Ele revidou. Isso me deu um fôlego. Cheguei à sua porta exatamente as vinte e cinqüenta de uma sexta-feira. Quando ela abriu percebi que era tarde demais. Ela tinha se antecipado. Nua e perfumada me chamou para dentro. Eu calei. Eu entrei. Foram meses a me perder dentro dela. Ela tinha de ter nome de puta. Chamei-a, então, pelo seu próprio nome. E me nasceu uma lembrança. Altercando sua ira corpórea com nomes inventados, violência doméstica, memórias e os mais improváveis estados de entrega. J.M.N.

Epicentro

Finalmente estou ciente da simplicidade dos fatos. Estou farto de receber indultos e excomunhões. Finalmente o mais fino risco pousou-me na página e sobre ele o nome dela não se sustenta. Queria que os últimos versos fossem os menores. Que fossem baratos os livros que porventura viesse vender. Finalmente encontro a razão de escrever e amar. Nenhuma está onde eu supunha. Más Allá. Entrementes um lume para as viradas. Noites a sós. Eu e minha pobre cobiça de beijos. Queria que a morte jogasse mais comigo. Que me desmentisse a esperança. Aventura sempre. Como ouso em meus anais, encontro a encontro. Sou eu desistindo da sorte. Sou eu vivendo amiúde. Queria tanto o menos que fosse e agora a fumaça suspende tudo quanto surge das minhas tristezas. Estas cinzas, por sua vez, vão delicadas. Voando sem dizer se voltam. Vento, vento... e a terra toda se desmonta. Estou no meio de tudo. Escritos no epicentro do nada. J.M.N.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Melancolia

Ontem ao chegar a casa chorei. Chorei um choro desconhecido, com pedras e foices e olhos no além. Chorei estes quilômetros de solidão que me distanciam das coisas intransferíveis do dia-a-dia: contas a pagar, ligações de trabalho, cuidados com o corpo.
Estava só e inconsolável.
Ninguém ouvia.
Ninguém tratou de meus pulmões cansados.
Estive por horas, entregue ao respirar dependente que este tipo de choro nos causa. Uma vontade de extinguir o passado e causar juventudes nos braços que me elegeram para ser amado. Nasciam, entretanto, estas linhas. Nasciam fugitivas da constância dos hábitos.
Foi como não me estivesse. Mas sentisse.
Ontem ao chegar a meu endereço, não conhecia os caminhos, não sabia o nome das ruas, não sabia diferenciar noite e dia. Cheguei, portanto, em segredo, acuado na razão sozinha de compreender destinos e utilizar o inevitável traçado deste momento.
A voz dela, a dizer que eu devo suportar meus feitos, passar calado pelos gritos ferozes do mundo que me assiste, ecoava perfeita, lícita. Uma sentença, um dogma. Reconhecer-se comum e desvirtuado, estúpido e envolvido em crimes de paixão e morte tem seu preço.
Escuto alguém num chamar distante.
Um fino som que me ata ao presente.
O choro persiste, mas de repente, não é por falta de aviso ou revés de sorte. É o justo momento em que se encontram: meu ser inteiro e a certeza de que foi feito para isso.
Tudo tem um preço, afinal. J.M.N.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Renovação

Para o Renato, meu irmão

Onde mais se encontra certezas senão ali, entre os pares de uma vida? Onde mais podemos ser tão incompletos e frágeis que mesmo na mais debilitada intenção de escapar, dedos mágicos e braços intensos nos alcançam e abastecem de segurança nossa caçada? Ali. Exatamente onde somos gerados e onde morreremos para chegar à memória. Dentro de um círculo de tamanho vário que nos envolve a todos e nos faz reconhecer quando erramos e quando acertamos, pois disponível dentro e fora de nossa instância mais particular e secreta. Apreendidos pelos costumes, pelas defesas, pelos maiores sacrifícios realizados. Estamos sempre dentro deste universo de isolamento e afeição. Regra e exceção para uma mesma aventura de existir. Uma vez ao ano podemos entender o que nos chega aos poucos. Gota a gota do tempo universal. São anos, é a idade, pode ser uma lástima, pode ser alegria. Aqui e agora, queria deixar dito que aprendi a comer esse derrame de entrega. Essa coisa muda e sem nome que nos ata em nós de destino e que nos aumenta e multiplica como uma prece. Ele me disse de um seu amor, contou-me que tivera sucesso nos negócios. Foi severo e algumas vezes, deixou para trás um canto de louvor. Pouco importa. Sou diverso também por isso. Ele que me deu meus melhores amigos, minhas primeiras noites mundanas. Ele hoje se renova e vence o tempo de minhas memórias ao nascer mais uma vez. Com corpo igual, mas a fronte mudada. Reconheço coisas minhas nele e isso me faz estar. Fincado elemento de um mundo que cada vez mais deixa amores do lado de fora. Não quero mais isso e desta forma, faço-lhe a homenagem modesta de reconhecer que temos um tanto de coisas em comum. J.M.N.

Esta é, ao que me lembro, uma de suas músicas favoritas…

Das origens de meus furtos

Aquilo que não tinha entrou por portas travessas. Furto, malverso, intimidade. Lírica e entrega, demasiadas. Aquilo que me sustenta entra pela proa com o vento. O rumo estreito do desabrigo e do desprendimento se abre imenso quando entre as coisas passadas existe um momento de saudade. E de pegar novos olhares faço meus dias. Aquilo que não tinha, conquistei sem medir esforços. Intrínseco, falando de firmamentos como fossem a porta de uma casa logo ali. E isso cabe exatamente em minhas vontades. Todo infinito cabe dentro dos pergaminhos que escrevi para contar-lhe a minha história. O que sou, e ela não sabe, vai nascendo desta pintura de sentimentos que me transformam, que me fazem retirar do mundo, as paisagens e formas que talvez não fossem interessar a mais ninguém. J.M.N.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Desatado,

Eu fujo.
Corro com medo de ouvir novamente as palavras.
Mas sempre que me encaixo na cama, quando o mundo para de agir sobre minhas obrigações é para aquele momento que retorno.
Um retorno eterno.
Talvez por isso tenha mudado minhas horas tão drasticamente. Para sentir um investimento que seja apontado para mim.
Talvez por isso que meu tempo perde peles como e fosse uma serpente que vai ficando mais velha e menos sábia.
Minha geladeira já não responde.
Não há alimentos.
Eles partiram com aquele seu olhar de revolta e dor do último dia.
Você tinha razão.
Tinha acabado de achar mais evidências. Mas, Chèrri, eu fiz o que tinha de fazer.
Um dia esse mal-estar recairá num poema e eu talvez fique sóbrio de novo.
Enquanto isso, acho pouca a embriaguez de sentir tua falta.
Tenho procurado um cão. Um companheiro que lata todas as vezes que se sentir traído. Indubitavelmente me morda se eu o tentar machucar. Ele ficará ao pé de minha cama, guardando meu último pote de sono. E quando eu esquecer que é mais importante ser de mim mesmo, ele também irá tomar uma atitude. E poderá fugir desistindo de sua lealdade. E mostrará seu desapontamento passeando tranqüilo na coleira do vizinho.
Eu deixo que as coisas se deteriorem ao meu redor.
Como besouros fazendo casas em minhas janelas e levando, pouco a pouco, meus restos mortais, minha vergonha. Seus passos silenciosos e minúsculos a escapar das prisões da noite. Roubam meus restos de comida, minha rapidez para com o trabalho.
Fico automático. Repetindo caricaturas de alegria. Montes e montes de fadiga.
E escrevo versos que ninguém entende.
E lembro o som da máquina de costura de minha mãe, e ela dizendo que não pode mais consertar minhas blusas ou que as calças rasgadas servirão para bermudas.
Lembro disso encurtando meu dia. Renunciando a fome que cresce e atrapalha meu choro desmantelado. Cristais caindo.
Meu rosto tem portais para mentiras. Mas diz também que sente a sua falta.
Que sente muito, enfim.
Não sei quem pode me dizer onde estou.
Ando tão separado ou além ou distante de mim, que nem mesmo a minha carteira de identidade serve de amparo, não me nomina.
Sou uma coisa separada e menor.
Muito mais desatado que as cordas e âncoras erguidas dos navios cargueiros que partem. J.M.N.

Não qualquer tipo de sabedoria

Preciso saber se voltarás. Se dentro em breve pensarás bastante sobre o telefonema que te dei e em seguida uma coisa inédita acontecerá e poderás voltar a bater em minha porta trazendo o café e o pão da padaria preferida de teu pai.

Preciso saber se podes escutar uma história estranha sobre meus cabelos caindo de saudade, um pôr-do-sol cobalto que me encheu de medo e desesperança ou quem sabe a minha vontade recente de comparar um animal de estimação.

Preciso saber se lambaris te atraem ainda, a resposta para a pergunta que te fiz. Preciso saber se tuas roupas continuam do mesmo tamanho para inventar trajes incríveis para nossas viagens aos confins de nós dois.

Preciso saber se ainda posso sustentar esse romantismo aturdido, enervado, cuja razão de abster-se de outras vidas é esta espera insidiosa e malina, que rompe as rezas e os sais de proteção que minha avó ensinou.

Preciso saber se estás disposta a me conhecer novamente. Apenas uma pessoa que estragou tudo, que aprendeu a fazer café com pelotas de leite apenas para te agradar. Preciso que confirmes se ainda está na minha vida, entre atos de esconder e o medo de ser novamente ferida. Uma pessoa apenas.

Inconstante elemento corpóreo que ainda sente o cheiro da tua presença onde quer que esteja e resiste aos arroubos de te sequestrar, apenas por ainda não ter conseguido a planta baixa do prédio de apartamentos onde moras. J.M.N.

domingo, 6 de junho de 2010

Coisa Pop Apresenta! (ou “a Noite dos Pactos e Projetos”)

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Ando meio chato ultimamente! (neste exato momento, penso em meus amigos lendo e dizendo: ultimamente???) Nada me agrada, acidez e crítica em quinta marcha. Nenhuma noitada boa, raiva de Belém etc, etc, etc. Começo a fazer uma lista de dado como visto e continuo afirmando que quanto mais escuto os novos, mais tenho saudades dos clássicos.

Herméticas e calibragens baixas à parte, quase tudo mudou ontem, 05 de junho, dentro do Caverna Club.

Tudo começou no show do Marcelo Nova, com a companhia do Gustavo Soares e do Adriano Mello, quando, falando sob alternativas para a noite de Belém, fiquei sabendo das festas do Coisa Pop, blog do camarada Adriano. Papo vai, papo vem, acertamos de eu levar uns minutos como DJ entre as bandas, na edição do dia 05.

Cheguei perto de meia noite e confesso, passei pelo estágio do vou, não vou quando já estava de calças postas. Não por desconfiar das possibilidades da festa, mas por que... Sou assim, que fazer?

Fora a recepção sensacional do Adriano, ter espaço para tocar o que quiser já me fez ficar animado, apesar dele ter concluído no final da noite que estava com medo de eu só tocar coisas estranhas e inapreciáveis. O certo é que o clima da coisa pop toda me pegou em cheio.

Daí, começaram as bandas: 1º. Projeto Secreto Macacos; 2º. Clube de Vanguarda Celestial, que aliás fez seu show de despedida, muito despojado e caseiro, com a boa sensação de ótimos amigos que se juntam para fazer o que mais gostam e se divertem. Mas o melhor ficou para uns poucos persistentes: o show do Dharma Burns.

Muito entrosados e extremamente profissionais, os caras ficaram até o fim, mesmo quando o público minguou e não decepcionou, au contraire, mandaram muitíssimo bem. Cantando em inglês, o que gera certo preconceito na cena local, diga-se, tive a boa impressão, confirmada pelo vocalista Marcelo, de que escutava pegadas de Manic Street Preachers e Teenage Fanclub o que não poderia soar melhor.

No fim da noite a aproximação do pessoal. Joel, Elder Effe e Suzane do Suzana Flag ficaram por lá e tivemos um fim de noite sensacional com salgados de posto de gasolina e mais uma ou duas cervejas. Disto tudo, ficaram algumas promessas de parceria, as quais aproveito para registrar aqui e começar a cumprir parte do prometido, vincular os links do Suzana e do Coisa Pop aqui no Palavras.

Quero dizer que foi uma noite memorável, inesperada com os elementos mais importantes para uma felicidade duradoura e que me fez acordar para outras esperanças de realizar sonhos antigos e continuar enganando o povo como DJ – companhia excelente e muito Rock and Roll. Um salve às novas amizades e registro em cartório público virtual da parceria para a 4ª Edição da Festa Coisa Pop, em setembro. Até lá. J.M.N.

Prontuário

“Não quero ter a terrível limitação de quem vive
apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada.”

Clarice Lispector

Meu amor anda internado. Interditado na ala psiquiátrica do meu hospital de dentro. Anda recebendo medicação pesada e, por isso, sua fúria conhecida dorme e seus braços andam mais sobre meus próprios sonhos do que noutro lugar.
Meu amor conversa sobre demências, ecos, cidades. Já concluiu o mapa da costa de dois continentes e não se encontra, não trás certezas de que lá existem habitantes antigos ou animais exóticos.
Meu amor tende a passados, a providência divina e rezas sussurrantes e atávicas. Faz menção a corpos e anuncia presentes, mas nunca confessou futuro algum. Nenhuma prova de décadas ou eternidades.
Meu amor detesta açaí de tarde. Em vez disso suja os dentes de carne e beijo. Molha-se em lágrimas de saudade, desespero ou incompetência. Está novo em folha para um livro de memórias e acontece, acumulado e cínico dentro do vento de maio, dentro do vestido dela.
Meu amor é um coroa enxuto que anda no parque e tem aversão à meninada seca por dentro, cabendo em risos vulgares e peles bronzeadas artificialmente. Acolhe camafeus como heranças esse diabo. Flerta com Deus, mas por desgraça e pena, jamais por esperança de que promova céus ou capacidades.
Está pela hora da morte esse amor de unidade que me converte. Que me desanca e me rasga com toda força. Que desobedece a mais simples regra de convivência, o respeito mútuo. É para dentro das entranhas que ele se projeta e quando morre ou corre ou se agiganta, dilacera, arranca tripas e tranqüilidade.
Meu amor desconhece ruína ou limite. Mesmo dolorido, mesmo gangrenado, ele floresce. Abre em copas majestosas a minha escrita. Disseca a ferida anterior como um perito e cobra o que tem de cobrar. Acumula riquezas que nem eu as conheço. Meu amor é um terço que se prolonga num cântico. É a ode refeita dos séculos inteiros. Arfante, odorífero e cheio do que me deixaram pelo caminho. J.M.N.

Sagração

Para Virgínia

Há festa e música nos seus olhos.
Vejo de longe um povo desconhecido esperando sua benção. Fazem fila.
Tenho raiva destas pessoas que ganham sua atenção. Vou me aproximando com minha ira contida.
O portão da frente vira um púlpito. Eu regurgito. Chega de esperar que ela me veja.
Seu olho é mais para mim que um sinal de boas vindas, é a certeza de que ganhei humanidade, de que posso ser chamado de humano.
Ela continua a abençoar os estranhos.
Minha vontade de ter raiva e enfurecer os seus deuses acomete mais forte.
E de repente ela está ao meu lado.
Delicadamente diz naquela voz que nunca foi deste plano: sabe a manhã em que você nasceu? Foi o dia mais feliz de minha vida.
A noite suportaria toda espera.
O portão incandescente, cheio das iluminuras que ela causava ao fazer sinais da cruz em suas cabeças vai ficando marcado em meus pensamentos como um portal para o distante, para o repleto. Daquele ponto em diante, jamais senti medo de cruzar limites, de mudar de rumo.
Ela olha para trás e me vê sorrindo. Aponta em minha direção seu dedo mais miúdo e diz alguma coisa para quem a espera abençoar.
Uma lágrima, refletida no olho estranho e eu tive a certeza de que ela falava a meu respeito e junto com isso dizia algum conforto para aquele homem cheio de cordões e tristeza.
Jamais tive outra impressão tão marcante da santidade.
Minha proteção nasceu aqui, entre os mortais.
E para evocá-la, basta lembrar aquela noite, basta ter uma lágrima a disposição.
O que tem de mais sagrado em mim, mora naquela imagem.
Uma noite de bênçãos à vizinhança, há muitos e muitos anos, sua voz mansa me dizendo âncoras e balaustres e, por fim, a certeza de que ela esteve me esperando desde antes de eu chegar. J.M.N.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O que talvez fosse para ser

Queria saber menos de você. Ter cada vez menos, a impressão de que você está por perto.
Queria ter a coragem de entregar as últimas coisas suas que estão em minhas gavetas: roupas, bijuterias, cremes e bilhetes tolos contendo as melhores mensagens que um dia alguém me escreveu.
Queria saber novamente como é um domingo feliz. Sob sol ou sob chuva, caminhar derradeiro como se fosse o ser mais amado do mundo.
Queria a história de um império tracejada em manhãs de cozinhar a dois e servir a comida com menos fome de alimentos do que um do outro. Queria a imortalidade de nossas sestas.
Queria deixar esse apelo romântico que me adestra e comove há mais de trinta anos. Que disseca e empalha sem que eu possa fazer coisa qualquer.
Queria ter aprendido a ser menos eu ao longo dos anos. Mas aquilo que você me deu, foi tão repleto e intenso que eu apenas tive oportunidade de ser cada vez mais o que nasci para ser.
Não fosse esse comprometimento com meu nascimento e minhas incertezas. Essa paixão efusiva pelas coisas que emanam dos meus sonhos mais surreais, talvez eu pudesse querer um retorno, o caminho da casa que nunca construímos.
Queria ter entendido tudo isso no primeiro encontro, no primeiro beijo e, como sou eu quem materializa minhas maiores impressões de amor, queria ao menos ter dito tudo isso antes. J.M.N.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O sol de todos os domingos

Se houvesse esperança seria uma menina de uns nove anos, brincando com seu cachorro na praça ensolarada. Seria domingo e eu estaria com calças frouxas e mãos nos bolsos. Estaria de óculos escuros e uns trocados no bolso. Surgida de trás de uma árvore ela viria desdizer o que eu sabia sobre a luz do sol. Ela seria a parte mais importante do dia. Se houvesse uma única possibilidade de eu existir completo, seriam dela meus horários todos das manhãs de domingo. Aconteceria de não tomarmos café apenas para enfrentar juntos, a fome de manhã cedo. Se houvesse o que dizer de todos os outros quadros que não pintei, deveria dizer que não o fiz por causa dela. Não por ela estar ou atrapalhar ou algo assim. Mas porque ela se foi. Se houvesse a importância dos séculos neste desenho. Se houvesse uma ponta de um prego em minha sola. Se houvesse um minúsculo habitante em minha impressão digital, saberia que ela me deixou descuidado, indefeso, esperando que o mundo acabasse comigo. Mas além de toda a presença, ela me fez estar mais próximo de mim do que eu jamais estive antes. J.M.N.

Para ler escutando…

Perguntas de Ontem XV

Por quê? Ela pergunta. Ele ensaia uma resposta. O som do avião passando lhe desconcentra e nasce a impressão de que não há resposta a ser dada. De que não existe possibilidade de estancar essa hemorragia de sentimentos e dúvidas. Tudo passa ao longe e barulhento, como um avião chegando, anunciando na distância impossível, pessoas desconhecidas que retornam. O que dizer para quem acredita que toda a fúria partiu apenas do inimigo? O que dizer para quem não entende que testar limites é geralmente o jogo mais perigoso? Especialmente quando nem sabemos onde queremos chegar?

Pergunta de ontem: o que farias de diferente agora?