segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Estrela, Estrela

Esther Monarca cantava em cabarés. Desde a adolescência emprestava a voz para fundo de amores pagos e beijos ausentes nos infernos dos solitários por ai. Beleza que ninguém reparava, pois parecia mais um detalhe sórdido entre tantos espalhados pelas paredes dos lugares em que costumava cantar.

Cantava dores, noites intensas de luares impossíveis para si. Os homens muitas vezes reconheciam aquela voz e fumavam cigarros sobre sua solidão, sempre em silêncio, sempre à distância. Parecia não quererem reconhecer que seus olhos eram de um castanho tão incomum que dava cor às lágrimas que chorava em seu canto.

Esther tinha um nome de batismo impronunciável. Decidiu ser uma estrela e como tal, fulgurava num solo eterno, às vezes de pé, no centro do palco, com as luzes impiedosas varrendo sua pele muito branca e infeliz. Outras vezes sentava num banco, no canto esquerdo do palco e olhava a banda tocar como se não fossem seus companheiros e a música que deles saía não fosse a rede para sua voz.

Um dia saiu do palco antes do fim da última música. Foi ao camarim limpar os quilos de maquiagem. Alguém entrou logo em seguida. Imediatamente se pôs de joelhos. Pronunciou umas frases bem curtas com os sinônimos da alegria esquecida de Esther. Ela sorria. Não sabia se de si mesma, se das coisas que ouvia. Não era riso de pilhéria, mas de encontro.

E no fim das coisas que aquele homem disse em seu camarim, pediu-lhe um bis. Ela voltou ao palco. E cantou tudo novamente, acrescentando um sorriso ao fim de cada estrofe, ao fundo de cada falsete. Foi a primeira vez que ouviu os aplausos. Foi a primeira vez que saiu acompanhada de um cabaré. J.M.N.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Notas esparsas sobre o Oscar (VI)

O Discurso do Rei (The King’s Speech)

O filme com melhor cotação para vencer na categoria principal do Oscar fala sobre a linguagem e as impossibilidades que lhe atravessam o caminho. Neste caso a gagueira do Rei George VI (vivido por Colin Firth) que, às vésperas da 2ª Guerra Mundial, precisa preocupar-se com algo que poucos monarcas se preocuparam até então: discursar no rádio ou em estádios. Falar para os súditos era essencial para amansar os medos e as angústias. Mas como passar segurança com uma voz que tropeça nas vogais e que custa a libertar as palavras? E ainda tendo do lado oposto um ditador eloqüente e teatral como Hitler?

O Discurso do Rei, além de ser um filme tecnicamente vizinho da perfeição, tem mais dois méritos: traz para o cinema uma profissão poucas vezes retratada pela sétima arte, a de fonoaudiólogo; neste caso Lionel (Geoffrey Rush). O outro mérito é de mostrar que o que acontece no espaço entre o profissional e o paciente é o que faz a diferença numa relação terapêutica. O choque inicial da cultura sustentada no controle do corpo e dos afetos do rei George, e a vida e as técnicas pouco ortodoxas do Lionel encontram um espaço de convivência e crescimento, para os dois lados.

Se hoje à noite O Discurso do Rei levar o Oscar será uma escolha justa. Uma escolha técnica, porém justa. WDC

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Notas Esparsas sobre o Oscar (V)

A Origem (Inception)

Como todos sabem, e quem não sabe já deve ter percebido, e quem não percebeu vai saber agora, que o Palavras de Ontem é feito por dois psicólogos e algumas pretensões. Além disso, eu sou fã do Leonardo DiCaprio desde Eclipse de uma paixão. Estariam aí todos os elementos necessários pra que A Origem se tornasse uma paixão desse blog. Estariam, não fosse o próprio filme.

DiCaprio ultimamente tem se tornado aquele grande ator que, vez ou outra, como se diz em Belém, “se queima à toa”. Mas talvez ele não tenha culpa. A trama toda passada em camadas do “subconsciente” (será que ainda resta uma poeirinha no túmulo de Freud pra ser revirada?) num primeiro momento pode parecer engenhosa. Porém no meio do filme você percebe que não passa de uma daquelas reuniões de ladrões superespecializados que tramam um grande golpe (tipo 12 homens e um segredo) e que o tesouro a ser perseguido é um afeto da infância que, se manipulado, pode mudar a forma de uma pessoa ver o mundo.

O filme é cheio de pequenas mistérios, como uma equação que não se sabe, mas que depois de resolvida, logo é esquecida. WDC

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Não cometa a gafe de morrer sem escutar

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From North Carolina to the world!

Estes caras já foram considerados integrantes da banda mais estranha do planeta, donos de caras estranhas, de vestimentas estranhas e, em última análise de um som estranho, ao que parece vindo de um tempo que não condiz com a onde de revivalismos dos anos noventa. Porém, eles se formaram em 1993 em 1996, lançaram este exemplar maravilhoso – HOT.

Como não gosto de rótulos, prefiro que escutem para determinar se cabe ou não em boas tardes de sábado, quando um trabalho chato precisa ser executado, ou quando lemos alguma crítica à forma como escrevemos ou direcionamos nossos trabalhos. Para mim, funciona muito bem no segundo caso – SEM PRETENSÕES de tornar isso um conselho, claro.

As capas dos discos são um detalhe a parte. Lembrando as ora românticas, ora propagandísticas telas dos anos 30, a la Marshall Greene ou Rochelle Durchamps, trazem aquela inevitável sombra de antigamente, quando a música era mais que um detalhe no mundo de mitos eletrônicos e divertimento moderno (ou pós-moderno?), tratando-se de um elemento de reconhecimento social e movimentação de grupos engajados em disseminá-la, como foi o caso do jazz e do blues, símbolos de toda uma era de produção musical e berço das composições dos Squirrel nut zippers.

Para não deixar de dividir os gostos, note-se neste excelente disco, as canções: It Ain't You e Hell, sensacionais. Versos simples e muita harmonia, como em: I've been searching all over for someone/ I can tell my troubles to./ Searching all the wide world over/ Is It you? (it ain’t you). Simplicidade e certa dose de humor nas líricas antiquadas, porém magnificamente arranjadas e atualizadas com a componente de ir de encontro à mesmice da indústria pop mundial. Vale muitíssimo à pena.

As músicas são:

01 - Got My Own Thing
02 - Put A Lid On It
03 - Memphis Exorcism
04 - Twilight
05 - It Ain't You
06 - Prince Nez
07 - Hell
08 - Meant To Be
09 - Bad Businessman
10 - Flight Of The Passing Fancy
11 - Blue Angel
12 - The Interlocutor

Feitiço

Eu pus meus dedos em ti. Dentro da tua imaginação inconsistente, dentro das flores que abrias quando te encontravas com os destinos de teu corpo. Eu pus acordes em teus novelos e desembaraço nas tuas coxas, porque eu podia e queria te fazer mais minha. Eu pus açúcar em tuas doenças e combustível em tuas fogueiras. Simplesmente porque queria saber o sabor do teu dentro, o mais perfeito encantamento do teu amor. Eu pus agulhas no teu sono e frágeis cristais sob teus pés. Nada de pretensões ou adultérios, eu pus fagulhas na tua noite. Sem mistérios ou sentimentos. Apenas ambos morrendo de fome pelas grutas do desejo, arcando com o que não podiam para ser um do outro. Eu pus hemisférios em teu mundo, particionando a existência entre ti e aquela outra. Outra realidade menos morta, menos paralítica que fosse. Eu fiz canteiros em tua cova. Brinquei de deus em teus quintais. Matei e morri mil vezes enquanto fazias os sinais da cruz, perpetuamente culpada por ter chegado dentro de mim e escutado os cantos negros da minha paz aventureira. Eu pus tantas coisas entre tuas pernas. Tantos universos entre teus sonhos. Nada menor que tudo, nada afeito a retidões. O fiz porque podia, porque pediste, enfim. Confesso surpreso que não atentei para o que em crescia junto. Para as idades de sortilégio que se faziam em mim enquanto eu te pregava na cruz. Eu pus o gosto dentro de ti e sacrifiquei toda razão que me mantinha. Eu te pus dentro da sombra, daquilo que podia ser, mas não quis. J.M.N.

Para ler escutando...

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Notas esparsas sobre o Oscar (IV)

Toy Story 3

Pelo segundo ano consecutivo a Academia indica uma animação ao prêmio de melhor filme. Ano passado foi o excelente UP. Contudo, ainda não vejo o dia em que o Oscar principal irá pra uma animação, até porque Procurando Nemo e Mary & Max não ganharam e nem sequer foram indicados, certo?

Toy Story 3 trata de uma questão que chega a ser filosófica: o que acontece com os brinquedos depois que as crianças crescem? Neste terceiro episódio da saga iniciada em 1995, Andy já está com 15 anos e prestes a ir para a faculdade. Seus brinquedos já vinham tentando chamar sua atenção uma vez que o desejo do menino já apontava pros objetivos típicos da adolescência. Agora eles precisam decidir entre a resignação do sótão ou o risco de saírem para procurar outras crianças que resgatem suas identidades de brinquedos. Nem precisa dizer qual a opção escolhida.

O filme é cheio de aventura e histórias engraçadas (como o encontro de Ken com a Barbie), mas também é um filme muito triste. Épica e envolvente é a cena dos brinquedos dando as mãos diante da incineração que parecia inevitável.

Minha filha chorou no final. Quando olhei pro lado e divisei suas lágrimas, encontrei um segundo motivo pra chorar também. WDC

O cárcere

“Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.”

Do poema, A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade
Fernando Echevarría

Ela foi presa. Não pelo ofício que exercia. Amaranta Rise foi presa pela delinquência da persistência, que tem por sinônimo mais pungente a perseverança. Arredia aos fatos da vida fez seus planos e os pôs em prática, inexoravelmente. Não contava, entretanto, com as fomes do coração em cujas tramas e segredos de vivenda, caíram seus olhos, seu fulgor e, ademais, as urgências de descobertas fazedoras de liberdade, forjadoras de claves imperdíveis às sonatas exultantes.

Amaranta presa anunciou sua fuga. As pessoas do cárcere esqueceram a promessa, pois daquilo ninguém fugia. Ainda por cima com interditos sentidos na voz de pedir socorro. Com quem contaria do lado de fora? Era dela própria a condição de suficiência, de retidão em pensar cada passo. Não contava nunca com a novidade, com o imprevisto. A mulher assassina da cela ao lado disse apenas que a prisão, Amaranta, já trazia consigo desde antes de passar pelas portas da cadeia.

Convém dizer que ela fugiu. Que escreveu um manifesto, onde jurava nunca mais voltar à prisão. Onde promulgava estar vivendo um gostar pleno. Suas amigas de detenção, algumas presas para sempre, outras esperando injeções ou forcas, lembram sua ternura, de sua entrega aos traços que deixara por todas as paredes de sua cela, onde escrevera tudo o que seria de si, dali em diante.

Marta Villar, cujo crime de ter fugido de um passado dormente, onde não podia dizer quem era e paga, além do cárcere, uma vida inteira de silêncio, escreveu: Amaranta terá de superar apenas mais um obstáculo depois de pular o muro e correr à rua.

Todas sabiam do que se tratava. Mas, lembrar aquilo, era como afastar as possibilidades de amor e violetas frescas que seriam vividas por Amaranta, como em uma fábula compartida que libertaria todos aqueles destinos de uma só vez. Ninguém tinha o direito de dizer que a prisão maior da fugitiva era seu próprio susto pela conquista, sua própria ideia de liberdade. J.M.N.

Não cometa a gafe de morrer sem escutar

Logo no início do Blog, mantinha uma seção com este título, porém numerado. Tentativa de indicar, veementemente, um top “sei lá quanto” de discos a ouvir pela vida. Cansado das listas e completamente avesso aos top “algo” do mundo, deixo apenas a sugestão: Não cometa a gafe de morrer sem escutar, seguida de sensações e idéias sobre os títulos indicados.

Para a retomada deste exercício de degustação compartilhada, evoco Iggy Pop. O Próprio. Com seu Blah, Blah, Blah, Lust of Life, os Stooges e tudo quanto mais sabemos e não sabemos sobre o veteraníssimo sessentão. Miramos aqui seu album de 2009, Préliminaires.










Depois de toda a fúria abrilhantada do Glamrock dos sessenta/setenta, suas incursões no punk (o qual ajudou a materializar, sem dúvida), as atitudes agressivas em palco e nos vocais, Iggy embarcou na melancolia de baladas em francês e gravou a versão “How Insensitive”, da maravilhosa Insensatez de Antônio Carlos Jobim.

Escrevendo canções como James Osterberg (seu nome verdadeiro), alias que diz ser sua manta de seriedade, criou pérolas neste trabalho, como é o caso de “I Want To Go To The Beach”, marcada aqui como a queridinha dos meus ouvidos.

Seus versos: “wanna go to the beach/ I don't care if it's decadent/ I don't know where my spirit went/ But that's alright/ […] I wanna go to the deep/ 'Cause there's nowhere I want to be/ And nobody I want to see/ But that's alright”, me permitam os puristas, lembram Cole Porter em: Where is the life that late I led?

Mas, entre estas tolas linhas, vale mesmo dizer que nada supera a ótima experiência de atravessar a cidade, rumo ao trabalho, ouvindo um dos reis do rock, atacando de Chanteur e usando sua potente voz em calmas odes à tristeza, ao encontro consigo mesmo, à grandiosidade da poesia brasileira. Digo, por fim: Vale à Pena.

A lista de canções:

01. Les Feuilles Mortes
02. I Want To Go To The Beach
03. King Of The Dogs
04. Je Sais Que Tu Sais
05. Spanish Coast
06. Nice To Be Dead
07. How Insensitive
08. Party Time
09. He’s Dead/She’s Alive
10. A Machine For Loving
11. She’s A Business
12. Les Feuilles Mortes (Marc’s Theme)

Tucumã

Kasper Lutcho badalava em Tucumã. Chegara com as primeiras fazendas de gado da região. Ainda tinha dúvidas se seus domínios iam além ou atrás das porteiras que cruzava. Um dente de ouro no sorriso triste.

Estava naquelas ruas desde que eram apenas picadas. Cortara o mato do lugar com suas próprias unhas e, arredio aos puxa-sacos, trancava-se depois da seis e só saia com o cantar do primeiro galo.

Mas como badalava, então?

Pensavam que ele dormia. Mas ao fundo da fazenda Maria Tereza, que era sua maior propriedade, atalhou uma lista de terra até o cabaré da Nona. Não sentava em mesas. Sua escada estava sempre desocupada. Subia e se deitava com Arminda, Pessoa, Marieta ou Cristina.

A todas amava com presentes e poucos sorrisos. A todas delegara a tarefa de fazê-lo esquecer Dinamite, ou Carminha Sintra como era conhecida ao cantar nos palcos do mundo inteiro.

Kasper falava com poucos e nas noites enxertadas de saudade, nos braços das damas que emprestavam seus corpos para o sonho, ele explodia em fúria aguerrida. Como um lobo privado de alimento a dias, como o corvo pressentindo a carcaça ao longe.

O amor de suas unhas nas costas era um talho. As meninas se deixavam de molho duas noites depois que o serviam. E isso tudo por causa de quem partira.

E como é longa a espera pelo que se foi, bradava. E voltava a pé pelo caminho escuro. Sem blusa, mastigando o mato, pensando que Tucumã era sua cadeia em chão de ouro, era seu destino em silêncio de amor passado. J.M.N.

Notas Esparsas sobre o Oscar (III)

Bravura Indômita (True Grit)

Devo iniciar informando que sou fã dos irmãos Coen desde o Grande Lebowski (talvez antes). Ou seja, comecei pelas suas comédias. Informo também que não assisti a primeira adaptação do livro de Charles Portis, e tampouco li o romance. Ou seja, esse é o meu primeiro contato com o western da menina que, obcecada pela ideia de vingar a morte do pai, contrata um caçador de recompensas (vivido por Jeff Bridges) para encontrar o assassino antes do texas ranger Lebouf (Matt Damon).

A direção dos Coen é sempre sutil, quase contida. O filme nunca vira uma comédia e nem um drama. Eles poderiam explorar o potencial cômico de Cogburn/Bridges, mas não o fazem. Assim como poderiam explorar a relação de Cogburn com a menina Mattie Ross (Hailee Steinfeld) fazendo a plateia chorar com a inevitável separação, mas não o fazem. Os irmãos não se entregam às expectativas. Essa pode ser a maior qualidade deles, mas também o maior obstáculo para que ganhem um prêmio como o Oscar.

Eu gostei do filme, porém, como todo mundo, esperava ficar com a barriga dolorida de tanto rir ou com o coração agradecido de tanto chorar. WDC

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Notas esparsas sobre o Oscar (II)

Minhas Mães e Meu Pai (The Kids Are All Right)

Depois de assistir Cisne Negro convém dar um tempo pra névoa passar ou pode-se também assistir Minhas Mães e Meu Pai. Um filme leve, apesar de tratar de temas difíceis, como a dificuldade de se construir uma família e a hipocrisia mal disfarçada dos arranjos familiares modernos. Nesse caso o casal de lésbicas Nic (vivida por Annette Bening) e Jules (Julianne Moore levemente masculinizada) cujos filhos, concebidos por inseminação artificial, encontram o pai biológico e passam introduzi-lo na lógica familiar, o que gera uma triangulação desestabilizadora.

A diretora soube mostrar como, apesar de não tradicional, o casal ostenta todas as expectativas e preconceitos já consagrados nas famílias tradicionais. Quando os créditos começam a ser apresentados, um leve sorriso nos passa pelo rosto. Aquele sorriso de quem viajou e no retorno encontrou as crianças bem e as coisas no lugar. WDC

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Eles que amavam tanto à revolução 2



Nós paraenses somos de uma região muito vasta. Verde pelo deslumbre da floresta Amazônica, pouco valorizada, em termos humanos, dado o modelo exploratório que se nos acerca desde tempos imemoriais. Sofremos também da classe dois da doença do esquecimento, mal social comum no Brasil, cuja classificação dois é a mais grave, pois tem como sintomatologia não apenas a superação inócua de fatos históricos, mas também a nefanda prática do silêncio acerca de nossos males de outrora e de hoje.


Dois exemplos de superação dessa condição são os livros Operação Araguaia e Sem Vestígios, cujo teor é tão contundente que requereu, em alguns momentos, pausas estratégicas para a recuperação do fôlego da leitura.

No primeiro livro, Operação... Taís Morais e Eumano Silva abordam com fontes muito bem apresentadas e exploradas, o vergonhoso esquema de negação e encobrimento que as Forças Armadas Brasileiras sempre fizeram em relação à Guerrilha do Araguaia, comandada pelo Partido Comunista do Brasil – PCdoB, nos anos 70. Segundo os militares todos os arquivos concernentes ao movimento ou não existiram ou se existiram algum dia, foram destruídos. Os autores provam que isso não passa de mais uma mentira fardada.

Em mais de sete anos de pesquisa e entrevistas com militares, os autores vasculharam documentos secretos que restituem imensas memórias de um período de luta armada, enganos, mentiras e confrontos ideológicos impressionantes. O livro conta magistralmente a história da primeira baixa militar do confronto, a do cabo Odílio da Cruz Rosa, fuzilado pelos guerrilheiros, assim como destaca a caçada feita aos guerrilheiros remanescentes. Assim como encontra os rastros de uma convivência da população com um grupo de jovens dedicados à liberdade e a derrubar a ditadura militar no Brasil, cujos frutos são histórias impressionantes de solidariedade e atuação social.

Já em Sem Vestígios, Tais de Morais, meio que “presenteada” por uma fonte que conviveu de perto com dos agentes secretos da ditadura militar, chamado no livro de Carioca, aborda um conjunto de registros em forma de um diário de culpa e atordoamento, mas também documentos que indicam de maneira crua as atrocidades que praticadas os porões da ditadura por este e por muitos outros peões do regime.

Em muitas passagens do livro, narrado em primeira pessoa, como e fosse a voz do além de um homem atormentado pelos serviços “patrióticos” a que foi destacado cumprir, soam como contos de terror, de realismo fantástico até, uma vez que imaginar tais cenas e requintes de violência e crueldade se torna bastante difícil longe do contexto daqueles dias, o qual longe de justificar, ao menos, evidencia a existência de uma dura oposição de ideais e concepções sobre a conformação de uma nação.

Carioca narra com detalhes, as ações que culminaram na prisão e morte de David Capistrano da Costa, para cujo final terrível foi convidado como expectador e teve, pela primeira vez em seu funesto trabalho, a sensação de que algo mais lhe saía das entranhas. Não apenas o mal estar pela cena horrenda de vilipêndio de um corpo morto, mas também o questionamento de se estaria servindo realmente a uma nobre causa.

Mergulhar com o coração apaixonado por este período da história brasileira, nas páginas de qualquer uma destas incríveis obras, é ter de enfrentar a sensação de impotência e revolta que cresce a cada avanço de linha e página e, igualmente, a cada escândalo eclodido no ventre de nosso Estado. Torna-se, pois, uma tarefa que deve ser cumprida com respeito aos limites de nossa indignação, pois em muitos momentos nos faz confrontar com a triste realidade do esquecimento, com as indecentes conexões que personagens, de ambos os lados, mantém atualmente com os bastiões do poder no Brasil, forçando às perguntas: com que ideologias ou preceitos, estamos sendo governados agora? Onde estancou a forja de nossa democracia? Ela existe de fato? J.M.N.