segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Dove è Chiara? #1

Seus passos arqueiam perto das dunas de tantos sábios. Suas lembranças bem dentro de mim. Pra lá do fim do mundo meu. Uma saudade desumana de não poder escutar-lhe dizendo que o espetáculo foi grandioso. Um pedaço faltando. Não fossem as fotos que encontrei dia desses, teria sérias dificuldades para aceitar o Atlântico entre nós. Onde andará minha querida? Nesta Terra que parece mais ampla do que devia? Ou na calma daquilo que sempre sonhei para ela? Sempre preferirei o que me dizem os olhos com as pálpebras fechadas. J.M.N.

Unloveable

Para Mme. Jambes, uma personagem.

Eu te conheço mais do que a mim mesma. Eu sou mais sábia e vivida que todos vocês juntos. Quase não tenho coisas que dedicar. Minha vida se define por pouco de mim e muito do outro. Sou o contrário de tantas coisas que quiseste que eu fosse e isso me satisfaz. Sou assim desde o dia em que me esqueceram às portas da vida. Quando a promessa de eu ser o centro de tudo foi quebrada por uma porta fechada. Escrevo coisas horríveis nos vidros do teu carro. Risco a pintura. Derramo insuspeitas linhas sobre as coisas que me dizes do amor que foi meu e eu desisti. Nunca estive. Porque não me estou. Jamais fui condenada por nenhum de meus crimes. E talvez por isso, esteja esperando uma pena fatal. J.M.N.

Trilha mais adequada

Úbere

Me mata. Me assopra. Me expulsa. Me declara. Me semeia. Me sufoca. Me tranca. Me liberta. Me nomeia. Me renova. Me socorre. Me adestra. Me duplica. Me resume. Me desbanca. Me supera.

Me entrega. Me espalha. Me adultera. Me retalha. Me danifica. Me recupera. Me deporta. Me assassina. Me compra drogas. Me reabilita. Me santifica. Me possui. Me suplanta. Me espera.

Espero. Tanto e desde sempre, que jamais fui a outro lugar. J.M.N.

Desgovernar-se

Havia seu corpo a espera. Arfando renegado em si. Denegando aquilo que cobria a cama, ensopava os lençóis, clareava o breu da noite. Um ser em toda composição. Integral e pronto para acontecer humana, potente. Abastecida pelas histórias que ouvira, onde mulheres podiam ser de mais de um nessa mesma vida que lhe deixava apenas migalhas. Ela se encontra consigo. Úmida e material como as poucas coisas que conhece das riquezas do mundo. Seu toque de ouro, suas lágrimas de cobre e o suor de prata fundida queimando-lhe a pele que se descobre viva. Uma última oração tentou. Não lembrava as falas, nem a santidade que aprendera no colégio. Não lembrava as hóstias, os missais lidos em companhia da avó. Porém, estava-se. Foi-se indo de encontro a porção menos pertencida de si, menos instalada. Logo encontrou razões para saber-se mulher por mais tempo. As mãos onde antes era pecado. E sorrindo, desapareceu para o mundo dos que a conheciam como uma mosca morta. Sumiu dos olhos e mordeu os ancestrais vaticínios sobre úteros frios e destemperados, para doar-se aos ímpetos e sumos daquela região de si que até então governara por meio de sorrisos mortos e movimentos indiscretos na beirada das camas, em casas de toda gente. J.M.N.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sentimentalidades IV

Estava animada. Parecia outra depois da consulta. Tinha muitas coisas que preparar. Roupinhas, o quarto, livros pra saber como cuidar e o amor de noite inteira para fazê-lo feliz. Depois lhe contaria como seria. Teriam uma pequena briga sobre que nome dar e o ciúme dele já se mostraria logo na primeira fala dela sobre os dez próximos anos. Um amor inteiro para alguém que nem viera ainda. Lembrou-se, contudo, que já estava só. Não o tinha consigo. Só, lembrou-se o porque. E chorou. Mas não se esqueceu de ser feliz. Deu-lhe o mesmo nome de quem se fora. Ele cresceu. Ela o guardava das coisas ruins. Amou-o de amor inteiro e sempre lhe dizia: - Teria sido perfeito. Amor inteiro que valia. Saudade de quem lhe permitira isso. J.M.N.

Sentimentalidades III

Nada me falta. O café amargo atualiza meus sentidos. O trabalho é ameno. Minto para garantir a distância. Amigos são aqueles que refilam, que te mostram o sem sentido que é ser sozinho. Talvez não venhas mais à minha porta. O caminho tornou-se abstrato, não foi? Menti para ti também, saibas. Mas não queria provocar nenhum desconforto. Sei que os pássaros migram e mexem na textura dos céus. Eu também mexo nas texturas e saboto pinturas como ninguém. Repatriados também têm ganas de pertencer. Eu tenho vontade de me desligar. Esquece quem eu sou tá? Que assim, talvez, eu possa crer que o amor existe. J.M.N.

O que dizer?

Colheu aquele sorriso. Só podia dizer que estava feliz. Ria-se de tudo e tinha idéias alvoroçadas para as festas do fim de semana. Uma troca de ditos e olhos cansados no fim do dia. Era isso que ele queria. Poder dizer-lhe para dormir bem, todos os dias. Presságios que nem se quer se confirmaram. Era isso que ele pensava poder ter. Alguns mal-entendidos, mas nunca a solução de adeus. Quando naquela tarde acordou sozinho, teve a estranha impressão de que os dias se tinham escrito errado. Pegou o papel e ditou-se um bilhete de amor: Espero que tenhas gostado das flores. J.M.N.

Cecília dorme sozinha

Um dia desci no porto de Lille. Era Dezembro.
Fazia frio e eu parei para escrever isso.
Ficou perdido até hoje.

Era possível avistar o porto da janela de Cecília.
A tarde bronze daquele dezembro maldito, anunciava uma noite não menos densa e metálica.
De bruços, na beira da cama, Cecília tinha as costas iluminadas pelas luzes amareladas do entardecer e repousava com a respiração violenta das horas seguidas em que se estiveram.
Ele acendeu o cigarro e pegou a caneta e o caderno surrado que sempre trazia consigo.
Borrou as duas primeiras linhas sem escrever uma sílaba sequer e depois, arriscou compor para ela.
Era muito mais do que podia suportar. Cecília não cabia em rimas, em estrofes ou solfejos. Mal lhe cabia nas horas do dia.
Estava para sempre acercado dela e mesmo assim, não podia suportar sua presença.
Talvez porque soubesse que isso lhe seria eterno.
Praguejou contra a perfeição de Cecília e cessou seus esforços para produzir-lhe um verso.
Vestiu-se em silêncio e pegou o sax na saída. Quando abria a porta, ouviu baixinho um quase sussurro dela, - Você vai sair? Perguntou ainda deitada.
E ele respondeu com uma brandura pré-fabricada, - Vou comprar cigarros meu bem, volto logo.
Desceu a rua lateral, descobriu no bolso do casaco, uma partitura esquecida e começou a tocar a velha composição, lembrou-se de que a tinha composto para os inúmeros olhos que deixou para trás.
Sentia-se pela metade e preferiu, como sempre, ficar sozinho.
Entendeu de imediato que não voltaria e decidiu, conforme erguia seu sofrimento, dedicar a música sem nome que tocava, encostou-se num muro e escreveu na beirada do papel: A Cecília que acordou a meu lado e agora, dorme sozinha. J.M.N.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Do amor, artesão

Enquanto procurava ofício, as luas encharcavam minhas noites atendendo a um desígnio de Deus ou talvez a fisiologia repetida de minha espécie. Minha casta se arrepende depois de tudo perder e esquecer entre silêncios, orfandade e efeitos colaterais da automedicação. Tinha duas opções, entender e viver. Escolhendo as duas, decidi apenas, no final de tudo, apostar que algo sairia melhor do que antes.

Assim quando me chamaram trágico, aceitei. Quando me disseram solitário, entendi. Porém, quando me disseram incapaz de amar, meu sangue ferveu. Estava na hora de contar a história num tom diferente. Agora que a água da chuva é pouca por dentro de mim, que ando seco a procurar novas belezas, novas esperanças entre beijos e cordas de violão, posso assumir que tudo foi um grande prefácio. Prólogo nem sempre bem escrito para uma história de antes e depois dos homens.

De um lado minha família diminui e ainda espero a chance de explicar que minha maior perda foi o colo de Virgínia, meu maior ganho a natureza de meu filho e minha maior esperança a carta que ela acaba de me enviar. Fico aqui a escrever atrás de fotografias, ordenando na mente o que me aconteceu. E, pasmo, descubro que, tirante uma ou outra morte passageira, a eternidade sempre me acompanhou. Por dentro e por fora. E antes que ela se encante de mim para sempre, vou refazendo meus artefatos, reinscrevendo meu nome das árvores.

O amor me espera como a argila em bloco, e minhas mãos já nasceram preparadas. J.M.N.

Trilha sonora…

Porque não sei, porque não sei ainda!

A melhor oferta que tive foi a de um amor passageiro, a acontecer nos intervalos do trabalho, entre os vãos das escadas, entres os papéis estocados do porão. Três dias seguidos. E ainda teve o alerta de que não era certa a entrega. Mesmo na urgência. Decidi deixar de lado. Apesar do beijo. Depois foi uma série de abraços e comportamento redundantes. De lá para cá ousadias acontecendo desde os olhares aos toques sutis de quando se quer apenas perguntar por quê? Indo e vindo. Olhos e alardes feitos de qualquer coisa que estivesse na prateleira. E tudo se resumiu àqueles dias, novamente. O que queríamos no mais escondido pedido de socorro. No mais franco dos desafios. Enquanto íamos aumentando os gritos e querendo por à prova o que não soubemos pelas bocas dos demais. Era um tempo em que nenhum de nós tinha a certeza de que sairia vivo. Mas ainda assim chegamos juntos aos funerais das certezas e estivemos, horas e horas, deitados na chuva. Enquanto todos os outros personagens se iam e deixavam apenas as figuras e as inesquecíveis vistas parciais de nós dois. Andamos juntos por um tempo. Mas o destino cobrou seu preço. Cá estamos. Você em qualquer lugar sem cobertura de rede talvez vivendo, talvez sendo entendida. E eu abrindo mais uma vez as veias sem cadência alguma. Esperando meu amigo acordar para perguntar-lhe o que faço com o tom de perda exageradamente estampado em meus lençóis, nesses escritos que, juro, querem mudar de cor. J.M.N.

Enquanto não encontro as palavras para dizer

Esse é um escrito sobre qualquer um. Um sopro de chão e vidro para qualquer retina doída. Esse é um escrito para pedir perdão, mas dar gargalhadas, igualmente. Uma contradição. Esse escrito é um espelho de todo homem, de qualquer homem. Macho ou fêmea. É um conjunto de linhas para qualquer demência enrustida ou apanhada às claras, correndo atrás das pipas em manhãs primaveris. Esse escrito é do meu ócio o sorriso, de minha espingarda a culatra explodida. Esse escrito é minha certidão de nascimento. A rosa dos ventos, desse incontido. É mais amar que ser amado. Apesar disso, jamais será aceito e cairá no esquecido que é a dor de amanhecer sozinho. Aquele alguém que viveu a parte menos poética do que eu sou. Esse escrito é de um amor imenso, cuja estrutura avança a arquitetar melhores dias. E mesmo sozinho faz crescer capelas em solo profano e faz brotar minerais valiosos das lágrimas que tanto caem. Esse escrito é para um dia com sol chamando. Para o azul do céu que vai tornando apta minha partida. É uma história que jamais termina, pois não tem vencedores ou vencidos. Será contada por quem achar as cinzas do papel em que foi escrita. Esse escrito é o mais extenso sinônimo da saudade. J.M.N.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Despertar

Finalmente água para minha sede
Os núcleos de minhas células expandidos,
esperando transformações
Quando fui á janela de madrugada,
já era meu dia, esse tempo que antes eu detestava
Na mutação da noite em dia, uma oportunidade
Senti as mãos dela avançando em meus cabelos
Alguns fios já estão cansados
E memória e saudade imensamente sentidas no vento da noite
Meu pai costumava trazer coisas para a gente, ao voltar das viagens
E eu esperava esses momentos,
pedindo que fosse um pedaço de seu braço direito, meu presente
Minha mão cuidava da ordem
Lei inata que arredava a gente da maldade aos trancos e barrancos
E havia aquele território de quilate incontável
Meu quintal
Onde eu podia pedir o que eu quisesse, e tinha
Onde eu era a parte mais importante
Às vezes acordo de madrugada aos gritos, sonâmbulo
Esperando uma noite como há muito tempo não tenho
Mas hoje o despertar foi manso
Como que tenha acordado por dentro
E a paisagem que vi da janela de casa era minha
O poema final dos anos mortos
Hoje eu acordei pensando o melhor de tudo isso

J.M.N.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Verônica voltou a andar

Mais uma sobra do livro que está no prelo.
Originalmente escrito em fevereiro de 1997,
por ocasião de um acontecimento igualmente trágico.

No dia em que Verônica voltou a andar, levou um tiro na testa. No convite para o enterro editado pelo jornal local, estava escrito: “... Jovem destaque de nossa sociedade, ...pessoa inteligente e com futuro promissor, ...deixará saudades naqueles que a conheciam e se sentiam abrilhantados por sua presença...”.
Uma grande farsa. Verônica cheirava todas. Roubava os amigos para manter o vício.
Levava pra cama os namorados das amigas e espancava o irmão menor, fazendo-o prometer não contar nada sobre suas tramas e sordidez, pois assim lhe pouparia o braço ou a perna. Prometia arrancá-los, que fique bem claro.
Depois do acidente de carro que matou boa parte das amigas que lhe restavam e botou-a numa cadeira de rodas, desacelerou.
Parou com o pó. Parou com o sexo fugaz. E parou por completo com a cleptomania mantenedora. Fazia fisioterapia direitinho e bancava a bondosa com o irmão, que, obviamente, desconfiava dela.
Também deu de confessar coisas para o espelho, que era o único que se abstinha de julgá-la. Foram meses de trabalho árduo para voltar a andar. Sair de vez da famigerada wheel chair regulável que lhe tolhia a vida.
No exato dia em que deu o primeiro passo fora da tal cadeira sozinha, recebeu o chumbo de um 38 bem no meio da testa.
Fatalidade mesmo.
Assalto mal sucedido e sua presença na hora e lugar errados, como sempre. Ela morreu na calçada da clínica de fisioterapia, estendeu-se de comprido no cimento frio e fitou-me com medo, mas, mesmo assim, com certezas consideráveis.
Eu teria te beijado se me pedisses, falou baixinho e morreu.
Verônica, cansada e semi andante, contou-me a vida inteira.
A infância esquisita. O colégio que odiava. Contou-me sobre o pai pederasta. E por fim, negou-me um beijo.
Não comi Verônica. Não tive tempo de odiá-la. Talvez a amasse desde sempre.
Nunca quis me aproximar enquanto ela era a fodona da escola ou mesmo a puta xucra que arrebatava tantos quantos lhe parecessem viáveis. Mas tinha cedido ao calor da curiosidade e visitei-a muitas vezes depois do acidente.
Tornamo-nos, posso dizer, amigos.
Talvez outra coisa que não sei definir. Penso, às vezes, que ela me disse aquilo naquele segundo derradeiro, para anunciar que se sentia redimida. Desejava ainda.
Talvez ela tivesse mudado e quisesse algo a mais comigo.
Gosto mesmo é de lembrar de Verônica impedida. Alquebrada na dureza de ossos mal acomodados, sofrendo como uma louca, as dores que outrora causou.
Verônica mal podia andar e, no entanto, pediu para dar aquele passo experimental, na luz da calçada, na frente de toda a gente que passava. Queria mostrar que podia.
Verônica morreu se esforçando, talvez por razões amorosas. Pode ser que tenha me dito aquilo por não saber o que dizer para finalizar sua existência?
Ou talvez – quem haverá de saber? – Verônica tenha fingido, deixando-me no rastro daquela afirmação por pura sacanagem, sabendo que dali em diante, ninguém lhe poderia desmentir.

J.M.N.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Wake me up ‘cos I still sleeping

Não, não era tempo de pedir. Não era momento de iniciar retornos. Quando a linha se completou e sua voz emergiu do pântano de meus temores mais sutis e repetidos, era hora apenas de escutar. Quem sabe um: boa tarde? Quem sabe uma poesia? Não cabiam orações inteiras, apenas eu em sentido latu, com meus genes dominantes a direcionar a fala, a aquecer o instante de redescobrir meus minerais. Estava lento ainda nesse fosso de existência a que me designei. Enquanto ouvia sua voz preenchendo os milissegundos de minha percepção mais remota, adquiri novamente o sorriso que ela me causava e pude atestar que meus melhores momentos foram feitos a te escutar. Nasci assim quase inexistindo, quase uma teoria muito hipotética de cuja certeza a ciência só se banhará num futuro distante. Não cabia nada senão a declaração de que morreria por ti e que não foi a razão que te destinou minhas idiossincrasias e covardias, foi o coração. Aberto e devassado como carne de açougue, vendo-se cada vez mais só e livre porquanto endividado e desafiado no cerne de sua entrega. O que nunca disse em tanto tempo de silêncio, vai nestas linhas marcadamente apaixonadas, neste instante inesperadamente solitário em que descubro que eu devia ter morrido durante aquele telefonema. J.M.N.

A trilha mais que provável…

Bilhetes Interditados I

Amor,

Aqui tá fazendo muito Sol. As tardes tem um cheiro especial de flores que eu não conhecia. Teus olhos iriam fazer diferença no mar de olhares perdidos que se encontram em redor. Já faz um ano que me esforço para não chorar. Toda a tristeza se foi por ai. Já nem sei se preciso dela para a volta. Talvez possamos deixar de lado os porquês e entrar de vez no amor, não achas? Sabe o livro que esqueci ao sair de casa? Encontrei por aqui e não pude deixar de lembrar que trazia as frases de amor que eu queria ter inventado. Por pouco a surpresa de sentir falta não se desfaz. Ainda ontem parei e encontrei umas sementes de gerânios. Vou levar para ti. Assim como vou levar as distâncias todas que escusei de percorrer pensando que me levariam para muito longe, faz delas o que bem te apetecer. Em minha pálpebras mora a desilusão com alguns dos meus sonhos. Vou precisar da tua certeza para desfazer o mal entendido. Talvez possa deixar um pouco de mim. Os pátios e conventos já me convenceram da santidade e o sagrado do teu beijo parece bem mais do que qualquer oração. O amor me confessou que sente inveja. Eu também sinto esse tipo de coisas. Queria ter asas. Queria o mesmo espaço que é infinito. Queria ser sabido, entender as coisas de cá. Para além disso, me faria feliz um ouro qualquer, apenas para conseguir construir um mirante. Sabe amor, lá eu poderia te roubar o vento das noites limpas e te mostrar as lonjuras por onde eu vim. Já não estaria mentindo. Teria menos pecados, pois tu me absolverias e os pequenos gerânios, brotando ao nosso lado, dariam o sinal de que qualquer coisa resiste, se estiver perto de ti. J.M.N.

Claire

a Claire Flavie,
sous autant aspects mien mieux illusion. Nostalgies.

Tô com ela atrás de mim.
Digo, sentado num cyber café vagabundo de costas para mulher da minha vida que escreve cartas de amor para o namorado espanhol.
A vida é cheia desses absurdos, não é assim?
Eu sou cheio de coisas de não me cabem. E ainda por cima, tem o amor.
Hoje choveu. Fez frio. Tive diarréia e tomei um calmante.
O gim e a lata de chocolates de Bruxelas vieram depois... Claire chegou as duas,
- Oi! Você por aqui?
- Por quê a surpresa?,
Só eu pra me esquecer desse encontro. Duas semanas planejando e eu me esqueço.
As mulheres de nossas vidas deveriam aparecer com mais freqüência,
- Capuccino na biblioteca?, perguntei.
Claire é muito culta.
Eu sou tarado por mulheres cultas que citam orelhas de livros desconhecidos...
- É mesmo, heim? Não conheço esse tal Lautremont,
Claire é francesa e já dormiu ao pé da minha cama por inconveniência do álcool a dois. Sem sexo ou beijos, que fique claro.
Também tenho um enigmático, mas não desconexo, aproach com as francesas. Talvez fruto de uma precipitada fantasia por coisas ditas na lígua de Baudelaire. Uma mítica alusão à cúpula dos maiores amantes do mundo se enfileirando nos meus sonhos de garoto.
Isso eu deixo pra depois.
- Você fuma? Ela pergunta,
- Depende!,
- Gostei da resposta,
- Minha casa ou a sua?,
- Calma!
Putz! fui direto ao ponto novamente.
Calma ai arqueiro! Sentenciei-me silencioso. Smoke, gim e – Pardon! Eu toquei no seu peito?... Ai me deu vontade de escrever.
Claire sentada trás de mim.
Eu com a vida passando na janela e esperando, creio, a tal maconha subentendida na coversa-devaneio anterior.
Comecei a cartinha eletrônica, assim:
Eu tô morrendo de saudades meu bem (tenho uma garota do outro lado da tela)... Queria que você estivesse aqui... mas como você não está, tenho que achar amores por detrás das línguas sensuais e ficar imaginando conversas em cyber cafés vagabundos.
Te amo... sinceramente.
Claire se levantou... e eu continuei escrevendo:
Já te falei que adoro tua boca? E que nenhuma francesa vai me roubar de ti?
Também minto de vez em quando.
Claire! Você merece.
E minha sanidade, também.

J.M.N.

Coisa de infestar pensamento

As prestações vencem na segunda. Meus olhos estão murchando. Conto com as coisas inventadas para me saber decente e merecedor de uma promoção. Minha chefa é uma débil mental. Tudo vale no combate à dor de ontem. Quero os doces especiais de um lugar que não conheço. Amor! Me acende. Cuide-se, pois eu te quero. Eu não sou uma ameaça. Ameaçar é verbo que não pronunciaremos nunca. Deixa-me morar nos teus amanheceres? J.M.N.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Cartas a ninguém (17.11.2010 – 05:13 a.m.)

Querida,

Aquilo tudo que se passou no pesadelo de anos atrás, aconteceu. Neste mundo, a céu aberto. Com todos os detalhes e misérias, ademais. Foi feito de reboco e telhas o sofrimento sentido nos porões escondidos de mim. Hoje, nessa alvorada, a única coisa que me deu um alívio tão necessário foi pensar em ti. Posso dizer que acordei contigo. Que houve celebração no silêncio de meus incômodos matinais.

Fico pensando no que seria de nós em outros prados, em outras montanhas. Meus amigos cartesianos a dizer que a saúde mental depende de negar realidades passadas e tão felizes como momentos impossíveis ao agora. Porém, sabes que não sou assim. E sempre que ângulos e equações precisas me cercam, penso no abacateiro do quintal de minha avó, decretado morto há muitos anos, porém misteriosamente fértil até os dias de hoje.

É possível que minha substância seja que nem a desta árvore, que mesmo morta, dá frutos dulcíssimos, de um verde infante, cheio de vida. Penso mesmo que ela verá o ocaso de toda a família. A questão, portanto, não é a vida dos caules ou do tronco, mas as sementes. E como penso em deixá-las, querida. Como rogo para já tê-las deixado, mesmo quando passei feito furacão por teus olhos tão fiéis e esperançosos de minha mudança.

Nada há que soe mais tranqüilo ou humano que tua respiração no primeiro beijo, saiba. Nada há que não revolva mais febril e grave minhas noites que tua lembrança no começo de tudo. Eu apenas dedilhava os sonhos, amor. Era apenas um rufião do porvir. Mas nunca coube neste fato. Jamais aclamei a certeza de que agüentava o tranco. E mesmo na hora do primeiro não de minha fonte, sinto-me feliz e pessoalmente orgulhoso por ter aqui chegado.

Contra todos os desfeitos de colos e casas. Contra todas as ameaças de não ser e abandono. Fico feliz por saber encontrar meu rumo em minha literatura incompleta, porém vivente. Minha armadura de carne, sofrimento e verbo. Enquanto não há posses em meus papéis ou gavetas, enquanto a maleita desespera quem tanto quer, mas não sustenta, posso apenas pedir que entendas. Que apesar de nunca ter sido teu completamente, fui profunda e infinitamente nosso... ontem, agora e para sempre.

Sinceramente,

J.Mattos

Poesia enferma

Queria fazer um poema no qual coubesse minha tristeza inteira, porém tão triste ficaram as letras que ele desistiu de mim, e correu. De sorriso em sorriso esgueirei-me dentro do verso, depois na prosa e reparei que as horas iam crescendo dentro de mim. Vi que tudo de triste chega atrasado – minhas desculpas, minhas meias aos teus pés com frio. Toda manhã cansada e fria é pra mim a pior derrota. Menos, porém, que viver sem ti. Cheguei tarde ao nosso adeus. Perdi as chances em Paris. Voltar ou não voltar, não era mais o caso porque de tanto ficar, já não estava. Se crês que não é assim, que foi tudo um engano. Se a cidade também se despede de ti, vai ao cais, à meia-noite. Anda uns minutos olhando para as águas e verás que o rio que passa silencioso, bebeu toda a tristeza que era para ser um poema, mas virou sua mais veloz correnteza. J.M.N.

Possível trilha

domingo, 14 de novembro de 2010

Quando a noite cai

Ainda tenho umas notas, escuta. A canção está no fim e vai contando uma história, como todas as boas canções de antigamente. Vai dizendo de mim. Vai vendendo nós dois. Não fosse desengano, peste, minha investidura no impossível seria um final feliz. Nada acontece por acaso. A canção está quase sem palavras, é só melodia plena de sentimentos. Um olho quebrado, minha visão degustada assim de pouquinho em pouquinho. Como eu iria saber que a vida é desse jeito? Tive de correr pelos campos. Agora apenas os acordes finais: sei que ainda acontece de chorarmos pelo que se foi, minhas lágrimas são rios de memória e verdade, correndo ferozmente para encontrar o que fazer quando a noite cai. J.M.N.

 

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Olho d’Água

Bom seria se essa travessia fosse um deserto, porém o mar recaiu sobre teus olhos e agora a força das coisas represadas e esquecidas nasce. Como se tivessem descoberto as maiores reservas de sal e dor do universo inteiro. Simplesmente porque soubeste que eu estava na lembrança de mais alguém. Quando for para te ver sorrindo, liga. Enquanto isso, não posso fazer nada pela tarde cinzenta que toma conta de ti, uma vez que estou a espera da mesma chuva cair. J.M.N.

Rudimentos do Impreciso

É como mil asas em liberdade batendo, o beijo
No primeiro e imprevisto encontro entre os seres
É como a cama arfante pelo cansaço dela, a espera
No primeiro instante em que se caem meus olhos
Conquistados, nela
É como saber que não surtirei o efeito de sempre, seu cheiro
Saber-me imobilizado pelas pétalas que ela exala
É como a despesa de um mês inteiro numa aposta, meu empenho
Como nascer duas mil vezes entre seus braços
E sirvo, alastro, inspeciono a vida de seu jeito
A procurar descrições aos seus predicados
É como o preso que dança as lágrimas de porta aberta, minha entrega
Santidade de dar em nada ocultar pecados, duvidar
Do seu corpo como a morada do que jamais saberei
Ou daquilo que já me seja
Sem sequer ter-me sido apresentado

J.M.N.

Inciso IV

Fica definido como imperioso e grave o comportamento de andar sozinho no sentimento amor, como quando se acorda indisponível ao mundo e a única coisa que se tem ao lado e o relógio a esperar que as horas mudem e o desencanto passe.

Breve discurso sobre a dignidade do traidor

“Li nos escritos dos Árabes, […] que, interrogado Abdala
Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espectáculo mais maravilhoso
neste cenário do mundo, tinha respondido que nada via de mais admirável do que o homem.”

Giovanni Pico della Mirandola
Discurso sobre a Dignidade do Homem, p. 49

Fartou-me escutar as agendas sempre cheias dos dias, as cartas jamais escritas e os presentes de aniversário esquecidos. Fartou-me o beijo ser sempre com a boca miúda de consumo pouco, um cano de calibre mínimo para o mundo. Enquanto desdobravam-se pomares e relicários em um, no outro, os casulos eram a única promessa possível e, ademais, aceitável.

Ir quebrando a confiança pouco a pouco é um risco. Dá-nos a impressão de que ainda somos os mesmos, porém o que vai no íntimo está distante há tempos. Calha que um dia uma grosseria estoura e as palavras mesmas que significavam amor e ternura afugentam e ferem como lâminas bem afiadas e precisas. Nenhuma carne resiste. Já estive em tantos corpos que posso dizer por certeza vivida.

Mas há nisso tudo um fio condutor que não está posto a ninguém. É como a cabala de tudo que foi caro e bento por muito tempo, mas que precisa de uma mística maior e mais incerta, pois a divindade se cansa fácil. É como a imortalidade de um amor aos pés do corpo de quem se ama. Dura o sempre para dentro. Nada mais.

Fartou-me enjeitar a mim mesmo nas costas do sol do oceano. Aberto e aquiescido nas naturezas de dentro. Desejos sofridos pela janela sempre fechada. Sufoco que só o grito não resolve. E ao cair do símbolo virei gente. Do tamanho próprio que sempre me coube. Errado, vil, adstringente, soberano das faculdades eleitas por todos da espécie, porém exercidas apenas por quem ama muito mais do que é prudente. J.M.N.

Excertos Terapêuticos XXIV

“Emanuel Subtil olhou-me com desdém. Não respondeu. Já no hall, enquanto escolhia um guarda-chuva discreto, conforme ao meu ofício, entre um denso molhe deles, ainda vi o brasileiro abrir caminho através do fumo espesso e desabar no sofá, junto às duas raparigas loiras. Vi-o fechar os olhos. Cruzar os braços sobre o peito magro. Pareceu-me que sorria. Tenho conhecido gente um pouco estranha nestas festas. Existe de tudo. As ocupações mais bizarras. Eu sei, é claro, que isso depende sempre da perspectiva. Eu, por exemplo, vendo caixões. O meu pai vendia caixões. O meu avô vendia caixões. Cresci nisto. Acho até prosaico. Preferia, reconheço, dar aulas de levitação. Paciência. Consola-me saber que a morte é melhor negócio. Como o meu avô dizia - só uma coisa me aflige: a imortalidade.”

José Eduardo Agualusa - Manual prático de levitação, pág. 49.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Something Changed (ou “mesmo que eu não fosse”)

Se eu tivesse escrito dez canções de amor, seria pouco. Se houvesse certezas a mais em todas as vezes que eu disse que te amava, seriam sempre exageros mundanos, pois tudo que fui, aconteceu em outra atmosfera. Talvez idílica ou fugaz, porém nossa. Universal na integridade do que te oferecia. Inteira e completamente. Nenhuma das tuas perguntas cabia naquele instante. Sei, ao certo, que algo mudou.

Hoje perguntaram se eu ainda penso em ti, pois jamais me ouvem gritar teu nome. Achei engraçada a pergunta. Que gritos são mais absurdos ou brutais do que aqueles que saem em silêncio? Mas não lhes digo nada. Apenas sorrio. E as dúvidas talvez se dissipem, talvez aumentem, não importa. Depois que me calo, te peço desculpa baixinho. Pela indiscrição das pessoas, pela falta de explicação de minha natureza.

Alguma coisa mudou. Quis muito ser diferente. Hoje não. Se acreditasse em entidades celestes, eu diria que és uma delas, pois mesmo quando não existe a tua presença, estás aqui. Ora calando, ora empenhada em me dar voz, fazer sentir. Mudando meus humores. Onipresente. Quando acordei naquela manhã, não havia jeito de eu saber para onde íamos. E mesmo tendo feito de tudo para te perder, meu maior silêncio ainda indica que estás. Que me és, além de tudo e de todos. J.M.N.

Trilha sonora obrigatória… Pulp, Something Changed

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Enquanto pensas, enquanto eu digo

Justo agora queres voltar. Precisamente no minuto em que as cordas foram soltas. Exatamente onde as contas acertadas, começam a deixar outro bar pelo caminho. Agora vens com a euforia redobrada. Quando tudo era amor e sorte, não. Antes era apenas a performance de tua solidariedade comigo e meus desvelos, minhas seqüelas, não é assim?

Agora vens por conta própria, dizes. Mas eu já fui.

Às vezes encontrar alguém é como fazer cantar uma pedra, cunhando com cinzel ou marreta a dura camada que envolve o prêmio. A pressão dos séculos e o brilho de cristais de quartzo, intocados pelas mãos de quem seja. Meu dentro era assim quando eu te conheci. Outras vezes era menos digno, confesso. Mas que seria da humanidade sem a imperfeição de todos nós?

Só tenho saudade amor. Lenço para os olhos úmidos que chegam a alcançar os teus enquanto não acreditas que estou indo. E, além disso, uma velha canção, um blues como já foi minha alma um dia. Triste e bela ao teu lado. E ficam meus beijos, como cavalos correndo no prado tentando chegar aos teus cabelos, as linhas mais bonitas e distantes do que fui ou senti. J.M.N.

Trilha possível…

Prelúdio Nortista I

História boa era do Nico Piaba. Tinha sido caçador nos tempos da escravidão. Não havia picada de mato ou grotão que ele não conhecesse. Era mestre em cheirar os matos e aprender num segundo qual era o rastro que devia seguir.

Um dia foi contratado para seguir negro fujão da fazenda Oliveiras, no norte do estado. Recebeu adiantado. Entrou na mata. Achou até ouro pelo caminho. Quando deu com o som do batuque tava mais perto do que imaginava.

Do meio das árvores apontou seu rifle para o bando. O dinheiro mais fácil do mundo, pensou. Mas quando viu que havia riso e festa e a dança que eles dançavam interpretava a liberdade recém-chegada, apontou para o manto da noite, mas não atirou.

Devolveu o dinheiro que tinha recebido e voltou por onde veio para comprar uma casa e emprenhar Antônia... que já tava na hora de parar de espiar a liberdade dos outros em segredo.

J.M.N.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Memórias Parternas 6

Há 5 minutos…

Quando eu me morri pra filho, fiquei teso
Era a própria hora de eu correr pelo mundo
E corri
Mala, cuia e afrontamento
Quando eu voltei
Por achar que tudo estava errado em mim
Estava errado de achar que era eu
O erro cometido, antes de mim e em meu nome
Foi ai que ressuscitei pra filho
E deu vontade de correr o mundo de novo

Desta vez, apenas por causa de mim mesmo.

J.M.N.

Memórias Paternas 5

Há 3 anos…

Quando me morreu meu avô, fiquei pedra
Estrapolando o tempo dele, eu fiquei
Confuso que só dava para esperar minha própria morte
Mas não fui
Tinha aprendido,
daquelas mãos tão desejadas e temidas, assim:

- Quando eu me for chora o que tiveres de chorar,
   porém o faz por ti, que ficas.

Foi uma lembrança reparadora
Dessas que só se tem dentro da saudade do amor
E então, eu nem soube como era ter medo
por mais um bom par de dias.

J.M.N.

O troco, o vento e o cão que não tivemos

Passava das três horas da madrugada. Tudo silêncio. Ela acordou. Perguntou qualquer coisa que apenas ouvi fininho do canto norte do meu sono profundo. Senti que o seu peso abandonara a cama. Não me mexi. Estava sentido demais para abraçar-lhe ou dar a mão. Ademais, tinha um dia inteiro de trabalho pesando nos olhos. Ela iria demorar. Enquanto isso passávamos umas férias em minha cabeça. Com praia, vento e um barco que esperava pela gente bem perto das docas. O dia do meu sonho acabava com ostras e camafeus. Depois de não sei quantos anos ela volta. Tateia a escuridão em busca de minha redenção ou culpa. Tenho certeza que era isso. De repente o terço de contas em lágrima da minha avó. O sono já estava repleto de tudo aquilo que eu amava. Era a simples presença dela. Aproximava de mim o que mais tinha de fundo e prezado. Ela me descobriu no escuro, já estava de costas para mim, precisando que eu a abraçasse. Resisti um pouco, meus olhos cerrados e o peso da noite em lufadas de vento fresco da Lombardia sonhada. Seu riso começou baixinho. Sonhei que a moça da limpeza pedia para ficar com o troco do pão. Levantara para ver se o dinheiro ainda estava no potinho da sala. E quando finalmente estávamos formando a mesma figura uma que moldava nossos sonos com a maior perfeição, ela me disse, acho que precisamos de um cachorro. Queria que ela soubesse que são esses detalhes de sua presença noturna, as coisas que mais doem em mim agora. J.M.N.

Apenas uma canção de boa noite

Hoje apertou. Doeu o dia inteiro e não dá sinais de passar. Cabe um litro de mertiolate na ferida, como uma boca para o meu desconforto de estar só. Rasga a pele e evidencia tudo que tenho dentro: amor, amor e talvez umas miligramas de desacerto, desmantelo. Acaba que eu tenho coisas a te pedir. Afinal, tanto tempo não se omite das prateleiras, das coisas que sonhamos um com o outro. Não se esconde tantos anos num único soneto de amor.

Mas acontece que tinhas razão. Eu não. Não tenho sombra nem flores, nem lenços brancos para usar na lapela. Acho que cago pro amor. Mas nem sempre foi assim. Uma expressão dura para a coisa que mais me consome. Sabes muito bem que sou um imbecil diante do espelho. Cá estavas e eu não. Pensei que me tinhas por mais importante e não vi que era para mim que deviam funcionar as expressões de boa fé.

Passa um dia e vem o outro e uma dúzia de nefandas cartas a sorrir seus endereços mortos no teu alpendre. Não me resisto. Cumpri meu erro – a men committed a crime, fell in love with this mind. Já não acho mal dizer. Então diz com tua força e teu teto. Ruge argumentos e espadas. Aponta as flechas que eu espero. Eu, minha sacola marrom, meus livros amontoados em todos os cantos da casa, a peça de teatro que escrevi em tua homenagem. Uma porção de coisas nulas nesse meu mundo de agora.

Canta baby, canta pra mim. Apenas uma canção de boa noite! Adeus!

J.M.N.

Trilha possível…

Ousadia

Depois de tantos anos é incrível acordar contigo. Afora o ineditismo, essa sensação de proximidade ainda sem um aperto de mão ou abraço. Imperativo que saibas que pensava em ti durante esses mais de seis mil dias de afastamento. Ainda moras nas escadas do nosso colégio sabendo à aflição pela incerteza do encontro durante as férias. Eu ia caminhando pelas ruas perto da tua casa e aguardava te encontrar tarde adentro para um beijo. Depois de tantas perguntas refeitas, de eu ter elevado à infinita potência minha dúvida em te abordar e dizer olá, simplesmente desfizeste o medo com a delicadeza que eu sabia era tua por natureza. Depois de tanto tempo sem pensar em me reencontrar com meu passado, finalmente sento ao fim da tarde e, enquanto o sol desmaia calmo, penso em ti com a devida importância, penso com todo o dentro satisfeito, ousando esperar um café ou a possibilidade de admirar alguns dos teus mais recentes desenhos. J.M.N.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ninguém Dorme

Ed il mio bacio sciogliera il silenzio
che ti fa mia!

Nessun Dorma – Giácomo Puccini

O que me resta é o tempo da madrugada desperta que irradia tua lembrança. Como estrelas arrumadas para anunciar o começo do mundo, como nós deitados nos anos mais tranqüilos a pensar na beleza das praias por onde andamos.

O que me refaz e expande é a presença desse cheiro fino e regular que atordoa meu quase sono. É como ter tua pele recém saída do banho bem perto de mim. Acusa-me de algo, para eu poder seguir adiante. Para seguir-me, apenas.

Por todos esses segredos que estão trancados em mim, por eu ter descoberto muito tarde ser mais um fugitivo do passado – perdoa, que perdoar-me é maior que minhas possibilidades. Mas não direi nada mais até a luz acender o mundo novamente.

O que resta é pensar e querer na mais íntima confissão já feita, que seja meu beijo a quebrar o silêncio, que seja o reencontro abundante e completo, aquilo que fará as bases da Terra tremer. Como era comum enquanto éramos unidade, enquanto, à noite, acordávamos juntos. J.M.N.