segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O que nos faz desiguais

 

Ele tinha mais livros lidos e mais livros por ler. Ele tinha mais anos que ela. Ele tinha mais amigos que ela. Ele tinha mais família que ela. Ele sempre teve mais que ela, e quem olhasse de longe chegaria à conclusão óbvia que aquela era uma relação desigual. Poderiam pensar: quando tudo terminar, ele vai sentir menos saudade que ela. Depois do fim ele não estará tão à deriva quanto ela. O desespero baterá menos à porta dele à noite. A loucura e o medo não o ameaçarão. Já a ela...

A realidade das roupas não coincide com o real da pele. O escondido de todos nós é o que nos nomeia e, com uma fome incontrolável, vai comendo nossas certezas. Não segue lógicas, fala em outra gramática. Fala em línguas esquecidas, o amor.

Estas foram matérias vistas por ele nas primeiras séries da vida. Sempre passara arrastado, por isso não entendeu quando livros, amigos, exercícios, filosofias, todas essas quinquilharias não preencheram a vaga deixada por ela. Só percebeu que a fila não andava quando viu que o chão fugira dos seus pés.

Alguns paliativos ela tinha deixado: a promessa de, mesmo depois de 10 anos, lembrar do vestido azul marinho minusculamente florido que ela usava naquela manhã de sábado em que os dois ultrapassaram juntos os limites da cidade pra que ela pagasse contas. Meia garrafa de vinho na geladeira dela. O desejo compartilhado de que um dia a geladeira fosse deles e que aquela garrafa enfim se esvaziasse. As fugas. A timidez da mão dada no meio da rua. A lasanha que ele não esperava tão gostosa. O corpo dela que devagar se convertia no seu templo mais que sagrado.

A saudade lhe passava rasteiras, batia-lhe a razão, a estética. Afinal sentia falta de suas imperfeições. O nariz torto, o cabelo ralo, o lodaçal das palavras quando tomada pela ira, a bizarra capa amarela ocultando o estranho hábito de vestir-se no trabalho nos dias de chuva. A tolerância sempre ínfima com horários, com mensagens, com ligações, enfim, com o tempo que restava para os dois se pertencerem. WDC

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Não fosse

Não fosse eu ter sonhado aquele tempo, não o teríamos
Não fossem meus primeiros passos, não darias os teus mesmo me seguindo
Não fosse a canção no escuro que dispersou teu medo, não dormirias
Não fosse eu, colado ao pé da cama enquanto tremias de febre, não estarias mais aqui
Não fosse eu ter sonhado o que não terias, ganhavas mais tempo
Não fossem teus passos prisioneiros, os meus não acampariam nos sonhos
Não fosse teu dormir mais que sossegado, não teria eu o medo de cantar no escuro
Não fosse teres estado aqui, a febre de viver colado não passaria, seguiria
Não tendo teus passos bem juntos, dei os meus passos sozinhos, pela primeira vez
Não dormisses sempre ao pé dos sonhos, cantar-te-ia mais o que me cantavam os meus
Não fosse ter sarado nosso tempo, ainda estaria colado, ao pé da cama, em silêncio
Esperando ter as respostas que nunca viriam

J.M.N.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O cacto

Vi o cacto morto, tombado desde o parapeito de sua janela até o vazio da área entre os quartos, espaço de nada guardar, de nada ser, sem serventia para a casa. O cacto partido com seus espinhos feridos e as fagulhas da tarde ensolarada lhe mordendo as últimas expressões de resistência. Tínhamos nos amado indecentemente naquele dia.

A plantinha tão dura e desértica que bebia tão pouca água estava morta. Não se sabe quem a jogou por desafeto aos seus espinhos. Jamais se saberá se decidiu levar seu tempo, por si mesma e atirou-se. Se assim foi, peço-lhe perdão por qualquer desgraça que lhe tenha feito. E entendo seu gesto como a última fortaleza do seu espírito de cacto.

Morria com seu verde desmilinguido o meu amor, morria. Naquela tarde de farpas heliocêntricas sobre o silêncio de nosso corpo único e desalmado em cama dela. Consumíamos um ao outro e ao lado, a dotação verde da esperança encarcerada de espinhos, falecia. Tão frágeis as nossas vidas no tempo em que o amor respondia por toda ferida, toda dívida.

O cacto se foi sem nome, sem deserto próprio para viver condizente. Foi ter com seus outros pares, as verbenas, os xique-xiques, outros cactos. Foi ser da aliança insuperável da vida eterna que se não nos chega. Deixou seus espinhos.

Quando me levantei de dentro dela para lhe sossegar o cadáver de planta banida, os seus espinhos ainda presentes perfuraram minha carne. Doer não doeu. Não causou uma assim ferida ou chaga. Mas um fio de sangue. Solitário e retinto de memória e nunca.

Aquilo devia bastar para que eu soubesse que “eu e ela – nós os dois” já era uma coisa só, que ia saindo gota por gota de dentro do peito. De seu último préstimo como ser vivo, o cacto, fez afluir o quilate sangrento do que morria. E deu sua vida para que eu compreendesse esse mistério.

O segredo de quando é o espinho que indica a validade das coisas.

J.M.N.