sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Coimbra

A pessoas que não me saem jamais da memória:
Alexandra Pereira, Noemi Cubas, Jonas Zavala, Pedro Hespanha,
Fernando Ruivo, Kika Freyre, Margreet De Looze, Bo French Baizas (Mel),
Ana Sofia Clareu, João Porfírio, Fernando Paixão, Elias Oliveira
Iver Moller, Alexandra Felipa, Stuart Holland, Inês Cerca,
Daniela Veiga e José Camilo Silva.

Ela me caça. Astúcia secular em suas ruas, as vias de meus encontros. Eu cedo. Vou aos cantos de sua tristeza nua, seus tijolos desgastados pelo ar do saber – há um peso de sabedoria em cada animal que transita pelos escombros, em cada pássaro que remonta a dança suave de seu céu tão anil. Sua sujeira ensinou-me quanto.

Ela me viola. Violenta e suja como uma qualquer. Sou perdido nela, com vigor de quem retorna sempre à mesma alcova, repetindo-se. Deu muito mais do que tomou. Na verdade não tomou nada. Ofertei-lhe o coração em pedra, a flor muito vermelha da lapela, meu sangue de estranho. Ela acolheu. Chorou comigo os últimos dias à capela.

Ela tem mais encantos na despedida. Tenho mais dela na busca que faço dentro de meus labirintos. A cidade inchada como uma vulva que parindo. Sangra um pouco cada vez que choro minha saudade. Sei disso em segredo. Como em segredo sei que as suas ladeiras me têm por certo. Cada beco em que me encontro, cabe nela.

Ela pousa na minha calçada todos os dias. Ativa, cercada e fortificada por seus segredos, por seus vãos onde os homens que a protegem deixaram as peles. Pétrea e fixa em seu patrimônio, tem meus espólios. Fina e fluida pelo Mondego, tem meu soluço. Sou-lhe a parte viajante e acidentada.

Em minha morada a cidade toda se conforma. Minha Coimbra sem tempo. A saudade vive a caminhar sobre ela. J.M.N.

Meus medos

O que faço com o que fica?
Essas chusmas de toadas e trovões me alteram
Alteram a face de como, antes de dar, eu recebi
Eu me escondo do agora. Esse tempo que carcome minha digital
Está o volume dos exemplares aumentando
De amores, os melhores; dos beijos, os mais molhados; está sobre mim o que eu fiz de errado
O muito de endereço, onde mora minha desculpa. Longa sala de espera
Os ossos culminando minha estrutura desde sempre abalada
Nasci, quem sabe, com um pedaço faltando
O que faço com quem me deu seus quartos, esperanças;
Com quem me deu esse lago de água mansa que eu não cuido?
Sou de lança e ruptura, não sufrago penas, as escuto; cumpri-las é outra coisa
De quando o vento assoprou os termos do absurdo, me sobrou a tinta
Com a qual traço o indigitável artifício de amar para sempre
De tudo o que ficou, das sementes, apenas a clareza é que cultivo
E ela não funciona quando, de olhos, fechados, peço perdão pelo que mais me assuta. J.M.N.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Micro-romance XIII (ou “Silogismo”)

Não, eu não disse nada a respeito, no início. Apenas sua presença aconteceu. Meu sorriso envergonhado porque ela estava ali, ao alcance do meu precipício. Mas não deixei escapar nada. Ela estava ali e era o bastante. A noite nos presenteara com um calor de conforto. Eu não tinha razão para sentir frio ou tremores, portanto. Mas ai ela saiu do carro. Íntima de toda minha saudade, essa estranha que elege os piores momentos para me lançar suas escrituras. Tenho certeza que meu rosto corou. Eu não sabia o que dizer e troquei seu nome. Ela riu. Mas, afinal, qual a razão dos convites? Enquanto eu repassava três tomos de um tratado qualquer em revista – um tenebroso exercício de medo e astúcia – seus braços me fizeram algo. Tomaram minhas certezas, escavaram os limites de meu canteiro de obras – reparos na estrutura mais profunda. Seus braços foram até o portal da minha entrega, e não ousaram ir além. Ela sabia. Sentiu no mesmo instante a fúria perigosa daquele apego repentino. Seu hálito me fez primaveras. Eu seria dela sem som algum. Próprio e completo como um ser que já viveu várias tormentas. Ou podia ser o que fui depois que sai de seu toque – alguém que a quer. Que ocupa o mesmo lugar comum daqueles que a veneram de longe. Que não sabe se isso chegará a se chamar amor um dia. Entretanto, alguém que seria dela caso seus braços ficassem ali por mais meio segundo que fosse. E ficaria entregue àquilo que seu código pessoal ainda não permite atinar sobre o mundo, sobre o cerne e a margem do leito, sobre a honra molhada do mais incrível beijo de amor. Aceitei seu convite. Com o temor de quem teria de conquistar um triunfo para voltar e ser aceito em Esparta. Aceitei o apreço fulminante que a idade imputa à debulha dos sentidos. Me vi saindo das favas, núcleo de alguma coisa que alimenta e deflora. Essa mão mágica da descoberta sobre o que não deve acontecer. Os mil tópicos da moral que se cobra por ai. Lambi os dedos, depois de enfiá-los na textura suculenta do que senti ao seu afago. Essa calma dominante e progressiva que não paralisa e dá mais certeza ao que virá. Depois do adeus, aquela orquestra imaginária que desanuvia. Altissonantes os acordes do impensável. Um sobre o outro imitam o que não foi dito, mas houve. Todos os sons apontando incertezas e todas estas descascando a fina pele protetora dos meus estragos recém-vividos. Não houve beijo, não houve muitas cores e, certamente, não haverá sossego até revê-la. J.M.N.

domingo, 12 de agosto de 2012

Dos pais, um dia

Para o Cauê, meus Josés e o Leon

Meu filho tem quinze anos. Metade dos anos quais contava meu pai, quando nasci. A mesma idade em que eu descobri a ferida eterna de um beijo não acontecido. Disse-lhe algo sobre isso. Ele assentiu. Fez que sim com o dedo, meu menino. Hoje ele me chama pela palavra. Ancora-me sujeito. As três letras mais íntimas e divagantes do mundo. Ele me chama de seu para os amigos. Falando mal ou bem ele se instrui daquilo que pega nas minhas falas, nos meus erros. Ele se equipa do que eu sou para não ser repetindo as mesmas bobagens. Assim eu espero. Espero que de todo corte que lhe infligi, de toda ausência que eu tenha erigido e de toda resposta que não lhe tenha dado, ele passe por sobre. Faça suas pontes, descubra como cruzar lamaçais. Que eu tenha um dia a mais sobre este mundo. Mais um ano em sua admirável pergunta de sempre: quem tu és afinal? Que é a questão a interpelar minha inconstância. Recorrerei a mitos, a passados. Buscarei nas bocas que me pecaram as cotovias poéticas que resignam toda sorte de tragédia, pois suas asas batem ao por do sol. Escreverei, até que murchem os dedos e sangrem meus pulsos, os romances que inventaram quem sou, e soltaram mundo afora o personagem intranquilo que muitas vezes me cumpre. Quero que ele e mais ninguém sele meus olhos no dia final. Sopre em minha boca a palavra fim. Que seja a sua mão e de ninguém mais a me tirar os laços das garras para que eu toque a gente que talvez me espere do outro lado. Ele um dia me trará notícias. Farei como sempre fiz ante qualquer impacto. Um sorriso pequeno, essa glória nostálgica que é a constante vida que me executa, meu coração batendo a mando de um punk muito antigo. E direi resumido, como tem de ser: esta é a única coisa que te fará ser ainda melhor! J.M.N.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

A arte de esperá-la

Toalhas e lençóis limpos. Sabonetes. Ligação dela informando “estou saindo”. Cálculos mentais. Preocupações com a estrada. Ligar para a pizzaria. Pedido: uma pequena de frango com catupiri e dois refrigerantes. Entregar apenas daqui a hora e meia. O jantar precisa chegar meia hora antes, pra que ela encontre a pizza ainda quente e o refrigerante gelado. Espuma de barbear. O passear lento da lâmina pelo itinerário que a língua dela encontrou no rosto dele. Banho. Desodorante. Roupas de aguardar. Folgadas pra que ela veja que ele a aguarda de corpo inteiro. TV. Jornal para mantê-la informada. Um pouco da novela pra puxar assunto antes do sono. Relógio e celular sempre na órbita da cama. Ansiedade pela chegada daquele segundo exato em que ela chega e sorri, e o tempo vai embora. WDC

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A rua continua escura, minhas certezas é que encontraram a luz

“É noite. A noite é muito escura.
Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.”

A Noite É Muito Escura, Alberto Caeiro
em Poemas inconjuntos

Não quero eucaliptos no meu banho quente. Nem esfoliantes ou coisas de cuidado, riquezas não quero, as possessões de minha pele. No ato, quero tocar e ir. Ir até os confins do mundo é o que eu quero. De lá para o sono, um pulo, e deste para a alegria, uma única imagem, a imagem da tua forma torturando minha espera em lindas saliências. Não quero contrastes sutis, nem esperanças morrendo, lascas da árvore dos meus genes ou dos teus, nosso dilúvio arcaico, não quero. Estou apto para revirar noites e esperar a poeira sentar sobre teu colo moreno, dormindo e se transformando em areia para castelos. A água os lamberá, nossas terras, teu raciocínio tão pronto e irredutível. Não arderá a pose para os retratos, minha postura, minha guia que não condiz com a tua religião não verá impiedades. Tua mãe preta assobia bênçãos e eu as elejo com a firmeza da entrega. Faço parte dos teus. Estou perto do achado, uma memória, meu melhor romance. Quietudes podadas, bocas serpentes. Não as quero. Não quero o mel duvidoso da paridade, do que só é igual quando me anulo. Semelhança impossível. Quero ser o que pretendes e até onde eu possa te seguir que quero ir. Quero esse rumo incerto para dentro do tempo e de mil álbuns com as fotos seletas de nossas aventuras. Quando chegar a noite e andarmos por ruas absolutamente desertas e escuras, começarei a te contar nossas histórias. Todo o horror passa. Passa inclusive o frio que por ventura caia. Em carne e ossos e urgência, encontraremos o fim para qualquer escuridão. J.M.N.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

[...] que seja de amor

Se vires minhas garras, meu pelo eriçado, é sinal de que parto ao ataque. Se vires meu pranto, meu medo ou minha pata partida trata-se do preço que pago de olhos fechados por ser quem sou. Se antes da linha, por trás do desenho entrevires um igual é capaz de eu ter acertado no ponto, ter feito a escolha certa e a tinta do que somos é própria pra nossos rastros. Se de repente sentires vontade de perguntar, não faça. Saberás a razão às portas do céu. Se és quem dizes ser, presa fácil para essa totalidade que nos escalou e botou frente a frente com vidas sucessivas, aguarda, sente. Vibra estarrecida por termos a mesma frequência, sermos feitos da mesma carne. Se torceres pelo fim dos receios, pela compra de supérfluos ou viras a noite cantando velhas músicas que ninguém quer mais ouvir, dispara. Meu peito tem um alvo posto para esse teu tiro. Passarei devagar por tua mira. Acerta o que vires. Se sou o que sou, podes ser quem és. E se assim pudermos ser e sustentar juntos, que seja demais e absurdo, como apenas os desguiados e estúpidos poderiam querer. Ninguém mais merece explicações. J.M.N.