sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Últimas palavras

Não sou mais teu. Não és mais. Não há mais a última lembrança e os panos de nosso sono dançam mortos no varal. Sobre eles o mesmo vento morno que nos venceu. Não há mais teus argumentos no centro de minha boca, calando-me confuso por tanto e tanto querer. Engolia em grandes nacos tua autoridade. Não és mais a razão de tudo, o furor dos dias, a décima potência de meus cálculos. Não posso mais com essa cruz de desespero, com a mortalha branca que pousou em cima das melhores lembranças. Há o mau cheiro do tempo infestando o olhar que vigiou por tantos séculos o que não éramos. Não ou mais meu. Não serves mais. A amplidão da novidade me redimiu. E vi o quanto eu estava seco, pele curtida, andando vago sob o sol dos trópicos. Vou-me correndo. Não paro mais. E quando ao menos pensares que te maltratei, perdoe-me ou mate-me de vez entre teus verbos. Não quero mais fazer coisa alguma por ti. J.M.N.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

enquanto as coisas acontecem

A dor só se arrasta. E lembro todas as coisas mortas que me fazem. Digo mortas porque soam como mortas. Estão lá, mas não têm vida. Jazem muito tempo depois de irem. Implicam luto, ausência, desesperança e a certeza de que ainda estou or aqui. Às vezes cheiram mal. São coisas do dia-a-dia. A sopa fria que me fazem engolir, lençóis e livros despedaçados por mãos descuidadas. O poema que nunca chegou às mãos de ninguém. Ademais, as vinganças por tudo quanto não reclamei. São esses eventos de metal e vidro. Que ferem e se estilhaçam como algo muito comum e tão frágil. Sinto o desespero daqueles que me estão ao redor, esperando meu próprio desespero, que eu os marque em uma lista de nomes que odeio. Mas não. O ódio não é para mim. Não este, corriqueiro e deselegante transmutado em caridade ou martírio, em pedidos de estar e bondade constante. Isso não soa bem. Sequer parece uma solução ao fim e o cabo. No ônibus, pela manhã, indo para o trabalho, a velocidade de fora e a mesma do esquecimento, e, ao mesmo tempo, a mesma velocidade da culpa – que me chega e os alcança a todos no mesmo piscar de olhos. E quando miro novamente tudo é tão rápido e tão permanente. Ao mesmo passo que absorvo os acontecimentos, passo-os a um ponto negro da memória, desejando tê-los como amargos desaparecidos. Mas o que acaba de ser imagem, ainda que borrada, tem cheiro, adere aos costumes e vira história, passa ao livro dos dias. Ando mergulhado na compreensão de que também sou feito dessas mesmas coisas doídas e feias as quais procuro repelir. E se consigo é como estivesse saindo de cena, indo aos bastidores da cômica tragédia cotidiana. Meus pares, ancestrais e rebentos são fotografias numa parede branca. Chamá-los de pais, irmãos, filhos, amigos, inimigos, seja lá como, é parte da grande e única verdade que me resolve. São todos parte de mim como sou parte deles. Pertencemo-nos na mesma medida em que amor e ódio se completam, transmutam e viram lágrimas, saudade ou uma obra-prima. Fico com os primeiros já que não sou de me sujar com paisagens impressionistas ou o pó do mármore de estátuas. Sujo-me com a vida e com a mistura obscura do que sinto e do que sentem por mim. Do que sou, do que os outros pensam que sou, daquilo que no fundo, nunca serei. Daquilo que não quero ser jamais. Prefiro o cheiro diário do fim a uma eternidade de bem aventuranças. Sou mais para o inimigo respeitável, cujo amor desmedido do oponente será tanto capaz de uma trégua como de um tiro fatal à queima-roupa. J.M.N.