segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Micro-romance XV (ou “não se retornam os heróis”)


O tiro veio não se sabe de onde, mas lhe acabou a vida no mesmo instante em que o estampido embaralhou a gente que lhe arremedava os gritos de ordem no centro da praça. Fim. A cara da revolução estava morta. As pessoas ao redor corriam sem paradeiro, entretanto, estranhamente, em silêncio depois de uns breves minutos. Tudo cheirava a pólvora e desespero. E, quem sabe, a certezas. A revolução de tenra idade acabou às vinte e duas horas de um dia chuvoso, com a morte por assassinato de Cardinas Alverde, o romântico que inspirado por canções, panfletos e pelo manual do guerrilheiro urbano de Marighela, sacudiu o pequeníssimo município do Grão, anos atrás. Eu era apenas uma criança. Certamente não o vi cair, não estava nos protestos que ele comandou e não conheço a cidade inflamada e vicejante que era transitada por artistas, intelectuais e pessoas de aqui e acolá que adoravam vir ao Grão ver o rio e as mangueiras, assim como saber as novidades da vanguarda revolucionária multiplicadas no coração da floresta. Cresci com essa história contada às vezes com glórias, às vezes com ódio, mas sempre com boas doses de lirismo e até saudade. O que ficou de Alverde? Um misto de sentimento de liberdade e coragem – entrementes a sensação de que a coragem sem um plano cheira mais à inconsequência, um viço de anos bons e vida farta além da certeza estranha de que nada dura e a relatividade é mesmo um conceito muito mais próximo de nós do que sequer supomos. Hoje as coisas andam por si mesmas. Não há mais estado de exceção, apesar de achar que as exceções que o estado abriu, tornaram-no mesmo o monstro do iluminismo e mais o palhaço dos programas infantis de uma infância já quase esquecida. A liberdade é proclamada em camisas estampadas com frases feitas e ícones do agora mercantilismo revolucionário. Nenhuma rima sobre Cardinas e seus seguidores, nenhuma música de protesto sobre seu suposto legado. Ninguém fala mais de sua morte. Ao pó voltou. Aliás, ninguém fala nada as mortes diárias de inocentes na guerra não declarada de uma cidade no fim do mundo, no limite de seu tempo. E todas as vezes que eu passo pela Praça da República, lugar da revolução e da morte do herói me vem potente o sopro da sabedoria dos tempos... O herói foi aquele que não teve tempo de correr. O que mais teria feito aquele revolucionário se tivesse corrido? E morto, de que nos serve a figura do herói? J.M.N.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Notas sobre um certo tipo de amor I

O amor me beijou e teve desde muito cedo. Não ficou em tantas ocasiões. Não me deixou em tantas outras. Como um suor, uma carcaça, acomodou-se sobre a pele e ora regula e tempera, ora me pesa e impede os passos. Olho-o como fosse o ponto fino no fundo de binóculo ao contrário. Que de tão perto, mais parece um ponto cardinal na distância do horizonte. O amor sabe a gerânios. E sabe igualmente a espinhos sobre minha pele. Perfaz minhas saudades, atina minhas faltas. Encobre minhas distâncias e ao mesmo tempo as denuncia. O amor tem a chave para minha tristeza e a ama com a febre de um primeiro. Deixa marcas, mete facas e transmuta felicidade em espera, beleza em traste. O amor que me acolhe é completo. Como os deuses pagãos de antigamente. Cuja bondade tanto ampliava quanto mordia. E aos mortais, feridos, esperando ir, só restava amar.