sexta-feira, 29 de junho de 2012

Personagens Indistintas IV

Sim, elas me doem como a última expressão da liberdade que será perdida daqui a uns dias. Elas corroboram a minha condição sem mais nem menos, sendo apenas aquilo que eu não sou. Suas perguntas, minhas ofensas. Minha senha para a traição. A mentira de querer voltar para reparar tudo, pela última vez. Tudo isso me dói como se fosse uma mulher encravada no canto mais inflamado de minhas unhas. Queria me livrar delas, mas parece que estão nos meus átrios e ventrículos. Queria expeli-las tosse afora, mas estão oclusas em meus bronquíolos, em minhas vênulas. Mais secretas e artistas do que eu poderei ser um dia. Estas linhas delas. Minha rudez e preconceito se esvaindo pelo amor gutural que me preenche quando elas chegam. Aquela impressão de instantâneo que tem o filme recém-apresentado à luz. Tudo o que é delas me retrata, tudo o que eu sou já foi nelas também. E mesmo assim, secretamente fico incrível ao topar com uma novidade que explode num novo beijo. De dentro de um nome descoberto, de um adeus dado com mais entusiasmo. Essas mistura indivisível que nos torna elementos combinados da mesma substância. Procurá-las, vê-las, magoá-las e depois sofrer mais que antes é simplesmente ser homem. Função demais para alguns. J.M.N.

Lealdade

Eu não existo
Compulso
Réquiem do desejo

Eu não me entrego
Evoluo
À solidão acedo

Sou mínima aqui
Sozinha e láctea
Áurea

Mas não pura
Puta de mim
Primeira e última

Eu não canso
Possuo
Inimiga íntima

Morro
Na mesma boca
Que me promulga

J.M.N.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Isso é de quando eu morri

Eu inventava mundos. Era divino
Mamãe me passava pimenta para não roer os dedos
Eu chupava o ardor dos dedos que não roía
Eu matava a minha mãe, já muito pequeno
Não de ira, matava de horror. Ela não me sabia
Nem Ela nem ninguém me sabe. Isso é de vida
Minha dívida para com a sorte
Ninguém saber de você é não existir – diziam
Mas como eu vivo?
Isso não faz calo na minha pensa
Não diz mais que a certeza de que é cada um por si
Isso não é de quando eu virei amendoim de tanto que doía
Isso eu não aprendi no catecismo
Minha divindade padecera
Eu já não criava mundos, eu trabalhava
Eu era fiel. Trazia alimento a um amor de prateleira
Isso não era de estanho. Não durou o que eu durei
Isso é de quando eu morri

J.M.N.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Personagens Indistintas III

Mulheres de fogo e avencas. Mulheres lindíssimas de ornadas almas e tenebrosas mentiras. Mulheres que vivem para o sonho de outrem, que concorrem com elas mesmas pela posse de nada. Eu as quero. Eu as comeria impiedosamente fossem bater à minha porta. Sem demanda preestabelecida eu daria minha pele para segurar-lhes o orgulho no cimo de seus mistérios e a orfandade da beleza que os outros oferecem e tiram ao bel prazer. Eu calibraria todos os espelhos do mundo para evitar que sofressem com o tempo. Àquelas que estivessem de bem com os gracejos da derme, do desalinhar dos traços divinos, eu agradeceria a oportunidade de vê-las segurando suas maquiagens. Preparando-se para sair. Ir à missa, mais recatadas ou à noite, mais perigosas que nunca. Sim, eu esperaria as eternidades sonhadas pela volta do primeiro olhar e seria aquele caderno da canção para receber os traços, os dramas e suportar todas as faltas e também todos os excessos.

Aos amores involuntários

Eles me acontecem. Quando vejo sou esses amores sem piedade nem controle. Fui instruída a não voltar não abdicar de minha dignidade, mas amar com voracidade é um fator de risco que poucos tomam para si. Amar acordada e reles, quase uma sem nome. Se fosse Zé Régio e tivesse parte naquele seu cântico negro, diria que minha vida é um átomo animado. De tão potente que eu amo, decifro tão pouco dos outros, mas tenho a totalidade do que eu sou na palma da mão. Ao me acontecerem os amores sou completa. Sou toda. Permanente e mais dura que as rochas lambidas pelo mar. Cheiram tão bem esses amores urgentes e platônicos que eu não controlo. Que quando me escapam sou melhor do que eu costumo ser e a vida ganha matizes mais vivos e sagazes, estou pronta para as novas latitudes. Mandada para fora de mim. Ser do outro completamente é ser poderosa em tudo quanto não sou na solidão pretendida e difícil. Não sei para onde vou. Não sei se te direi quem sou. Não sei, sequer, abrir mão do anonimato que te invade e ocupa. Mas sei que não vou por ai. Ser involuntária no amor, não quer dizer estar perdida. Sei exatamente onde anda minha alma e minha harmonia. Dá-me um beijo e saberás o que eu digo. J.M.N.

Música de amores involuntários acontecidos…

sábado, 23 de junho de 2012

Personagens Indistintas II

Fedem nas manhãs em que acordo violado de bebida, as narinas cheias de acordeons e suficiência. Uma a uma me pedem abrigo. Eu dou tudo o que posso. O que devia guardar, inclusive. Estão lá, como montanhas ardilosas que me fizeram obstáculos no passar do tempo. Insuportáveis que me têm mais do que a mim mesmo. Sou delas, enfim. Ensinando e aprendendo. Lambendo os dedos pelos prazeres ofertados, pelos roubados, pelos inalcançáveis. O que querem de mim? Meu traseiro? Minha história? Querem ter esperança novamente? Eu pergunto isso com tamanha piedade e sou tachado de arenque, pervertido, um borra-botas que não teve coragem nunca de ficar. Às favas é o que eu digo. Estou com todas elas em meus cemitérios, na beirada de meus abismos. Estou colado a suas fotografias desde que os primeiros beijos surgiram e eu pude soprar-lhes um punhado das coisas doces que aprendi e faziam meu mundo melhor.

Personagens Indistintas I

Alumbram minhas noites as desgraçadas da ponte. Aquelas mulheres dependuradas. De umas vidas imundas à beira do mundo. Meu mundo as colhe e rapta para dentro do tesouro da letra. Viram Margaridas, Tulipas, Mirabilias, Vitórias. Mas a coisa feia de as ter comprado tão barato se insinua perpetuamente. Esfregam em meu rosto as minhas escolhas. As feias com as abandonarei se de seu amor sem rosto eu me venci e acordei para o mundo. Como negar as empregadas suspensas nas porções mais nostálgicas de minha adolescência. Todos escondiam ou preservavam-se para a pessoa certa. Sempre achei que a pessoa certa não viria. Como não veio sempre e como continuará sem vir. Pois certo mesmo é que aquelas mulheres me culminam. Admiro-as todas em seus corpos bem feitos, mal feitos, corpos esquálidos, corpos de sirenas, alados corpos de aves fugitivas.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Tomara

Sim, por causa da música do Vinícius
Porque a vida só acontece uma vez
E porque se não fosse isso, eu não estaria aqui.

Tomara que incerteza venha cada vez mais potente e que as palavras me vençam todo dia. Que sempre possa procura-las no correio pela manhã, nas páginas do jornal, nos lábios de quem eu amo.

Tomara que a ineficácia da clausura não se estenda e eu vença essas paredes frias com a mesma violência com a qual te possuo. Pois ver ceder um corpo ante a bravura de um amor indômito é o que me faz continuar. Quero o pó das paredes vencidas.

Tomara que a pouca idade na qual te encontras, dê a chance de enxergar que não deixei de lado tua companhia, apenas quis me encontrar para ter meios de te dizer quem sou. E saibas de uma vez por todas que o Pai é um Deus terreno e que o Homem, este sim, divindade.

Tomara que as ideias e as pessoas que me cercam sobrevivam para contar que eu não fui o único. Que não estava só quando chegaram os mais de mil ávidos e errantes. Quando chegaram aqueles que não tinham outra coisa que dar ao mundo, senão suas palavras de amor e as cores de seus quadros.

Tomara meu amor, que a distância de agora não seja eterna e que ainda possa te cantar aqueles versos que tanto gostavas antes de chegar o fim desse tempo em que pisamos a mesma terra, banhamos no mesmo rio e ouvimos o pôr-do-sol cantar, apenas porque acreditamos nisso.

J.M.N.

Trilha sonora obrigatória…

Cartas a ninguém (11.06.2012 – 03:32 a.m.)

Caro amigo,

Tudo dará certo. Não há com o que se preocupar. Ainda temos esses incríveis anos de juventude pela frente. Somos os legítimos herdeiros de Cronos, não os que lhe calaram a boca, nossos irmãos onipresentes, mas os que se salvaram da divindade a peso de letras, rosas e um bocado de dor.

Não peça nada a ninguém. Esses pedidos são indelicados, de todo. Ademais, ninguém está pronto para dar além do que pode como queres. Ou como queremos nós. Preciosos filhos de um poder ser par que arranha a vida com sua língua férrea e malina de poesia. Ora vinga, ora executa. Diante do medo, a maioria simplesmente fecha os olhos e come as unhas.

O que queremos é demais, tens de entender. Não pelo preço em si, pelo valor. É demais porque temos de pedir. Nunca esqueça que o que se ganha de presente pode ser tudo o que o outro tem para nos ofertar. E se a tudo temos, podemos estar com os monóculos da impiedade. Olhos vidrados na inconclusão do outro. Uma má ideia, afinal.

Dá de si, meu caro. Não pede. Dá até que a manhã seja o mesmo tempo do teu sono. A frente da nau imperial da solicitude te entrega, mostra tuas habilidades. Não pede perdão antes do tempo. Perdão indevido é a morte anunciada de qualquer amor. Perdoa-te a ti, primeiramente. Pelo quê? Ah meu caro, sempre temos o que perdoar em nós mesmos.

Não antes do fim do ano nos veremos. Sei que reconhecerás a semelhança do que te digo nestas linhas com o que te contei do meu último sonho de amor. Faço assim agora. Entrego. Minha entrega. Meu amor cuidadoso e o lascivo. Entrego a pele e o escoadouro da alma, meu olhar pasmado sempre pelo que sinto de novidade, na novidade da presença dela. Entrego os pontos. Vou a festas terríveis e até o que não sinto, entrego também, pois sei que ali fecunda.

O resto é o resto. Literatura. Livros estocados. Uma casa que não cheira a nada senão à presença dela e a onipresença dos amigos. Mais que isso não suporto. Mais que dar, ter de pedir, é um ofício do qual desisti sem remorsos.

Sinceramente,

J.Mattos

domingo, 10 de junho de 2012

Bö Dohida

 

Amo em ti essa festa que fazes ao acordar, como se o sono fosse uma jornada para a fora da vida, e vivesses a celebrar o teu retorno incontáveis vezes ao dia. Eu faço morada em frente à nudez do teu sorriso, pois diante dele não há tempo, só memória. Essa tua risada me devolve o dia em que meu irmão me levou pra conhecer o centro; me transporta à quietude de um lago em Minas; me embala nos colos de mil avós.

Amo essas imanências lácteas que se desprendem das tuas dobras quando te pões em movimentos descoordenados à busca do teu alimento. Amo te ver interrompendo o banquete pra usares a linguagem primeva dos homens. Balbuciando vais dando notícias do teu mundo e sentido pra vida dos que esperam pacientes os teus dentes nasceram, teus cabelos crescerem, os teus ossos se fortalecerem e a tua cabeça se fechar.

Amo ter certeza que eu não tenho dons de Abraão. Que não ouço vozes divinas e que não cederia aos caprichos de qualquer deus que me exigisse ficar longe de ti. O meu lugar é aqui, na órbita da tua respiração. Guardião dos teus panos e dos teus segredos. Balançador de redes. Palhaço e malabarista de um só expectador. O meu lugar aqui, e te amar me faz ter raízes onde pousares os teus pezinhos. WDC

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Saudades intrusas

Chegaram sem aviso, nem à porta bateram. Teriam entrado pela janela? Ah essa minha janela sempre aberta.
Vieram insuspeitas, trazendo de borla todas as vozes caladas das bagagens que deixei por ai. Minhas cidades invisíveis e desertas é o que me diziam as vozes silenciosas enfurnadas nas sacolas e mochilas.
Cheiravam à alfazema de uma avó muitíssimo amada. Ora os odores eram a pura madrugada ou fruta mordida ao meio, deixada no campo depois do revés da sorte.
De repente moravam todas dentro de mim, mais uma vez. As fotos regressaram lagrimosas e empoeiradas. E do fundo das gavetas soltaram mais intimidade do que eu estava pronto para sentir. Noite sozinha.
Primeiro foram as mais antigas. Tão ancestrais que os nomes não haviam sido escolhidos, porque as palavras não tinham sido inventadas. Temi a tristeza das coisas e das pessoas sem nomes e utilidades. Só eu sabia o que eram para mim. E esse egoísmo de gente me deu uma dor por nunca sumir inteiro. Fica voltando.
Nessa visita inesperada, todo mundo que zunia fininho e tinha de lidar, vis-à-vis com a verdade de meu choro, de meu luto ainda por muitas delas – deixaram a sedução. E tive medo pelo animal indefeso no qual me converti para receber as saudades intrusas de uma vida inteira e de mais as outras vidas inteiras de quem as dividiu comigo.
Tomaram meu vinho, comeram minha comida e até sentaram à mesa para olhar bem no fundo dos meus olhos e requerer explicações.
Por que não vêm mais frequentemente? Por que foram deixadas? Por que havia tanto silêncio?
Eu não sabia responder. Cozinhei-lhes o tempo até o cansaço da manhã chegar. E enquanto rasgava as frestas, o sol matinal, foram embora. Desatendidas as saudades intrusas. Morrerei entre os indiferentes? E se não suportar tal destino, posso pedir perdão? Foi tudo o que pude pensar depois que se foram juntas encontrar outra janela aberta às perguntas que não calam jamais. J.M.N.

De manhã

para Iva

Sua carne se anuncia. Existo levíssima
Manhã bem cedo. Ela me invalida
Sou água. Todo escorrido. E ela me lambe
Líquido. Açúcares. Vaidade. Ela aparecida
Bem na porta do dia. Madrugada vencida
À flor da pele – alegria. Eu peço mais peso
Quase escapo de mim. Ela me beija.
Azul, seu gosto. Do mar ao firmamento.
Tão leve. Seu corpo me golpeia de canto.
Por toda parte sou seu. Tão leve.
Líquido suspenso por sua pele que pergunta.
Sobre nós a única benção possível.
Selados. Conjuntos. Desavisados.
Tão leves como alguém que acaba de nascer.
Para o bem e para o mal. O amor não escolhe.
Como acontece é próprio de seus segredos.

J.M.N.