segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Descabido

E agora, meu peito?
São apenas minutas as cartas de ontem
A entrega morreu à sua porta
De tão desfeita e ignorada
Minha velocidade desperdiçada
Enquanto corria perdi o rumo
Dos teus calcanhares, mendigo
Era eu ou nós dois
Onde ficou a noite que era nossa cola?
Deitou-se no mar de perguntas
Nas costas de deusa nenhuma
E eu que estou sozinho
Tossindo risos sem nada mais que expelir
É tudo duro e seco e sem lábio
Um beijo áspero que machuca e consome
Onde anda a sensação?
Enquanto invento essas maldições
É tudo um só desespero na carne
Enquanto a porta denunciava a partida
Eu ficava sem chão para sempre

J.M.N.

Brasília, 20 de agosto de 2010

Serventia

Teu beijo é uma gaze pra mim
Sabe à cura para ralação de corrida
Tua boca é meu prazer em corpo alheio
Meu firmamento, meu desassossego
Teu abraço é a cela eterna que me caçoa
Me prova que será extinto só bem depois de mim
Teus braços em arco me envolvem
Perpetuamente; são carne, prisão e continente
Teu olhar é a estrela mais amanhecida
E teu olho a própria história do universo
Serves a mim como o caibro ao frechal do telhado
Como estrutura de abrigo
Mas me colocas em perigo
Pois contigo entre meus dias
Fico mais perto de mim do que deveria

J.M.N.

O corpo da gente

Refeito das misérias, dos tempos sem toque, aflora vermelho e quente
Quem disse que só se pode amar de um dos lados?
Quando vi a moça vindo, sorridente e pensativa tive um cheiro de imaginação que dizia:
- Coisada de amor toda essa daí
E voltei a sonhar com alfazema e uma cama de seda enfeitada com ela nua por sobre
A tarde já era um desmaio só e a preguiça reinando, descascar do dia
Quando vi tinha um vento soprando na nuca e a palma da mão fazendo água que nem canoa furada
A moça veio de novo na cabeça. Era aquilo que eu queria
E fui correndo pela cidade. Crispado no pezinho de noite que se arrumava
No coração um só agosto palpitando
E na velocidade dos pés, a agonia de chegar e ficar coisado eu mesmo
Todo beijado de suor e praqueissos. Todo enfeitado dela.

J.M.N.

domingo, 29 de agosto de 2010

Contos da paixão corpórea (II)

Reginaldo Machado derrubava castanheiras. Quando elas acabaram sobrou mais tempo para dedicar-se ao amor. Descobriu-se presa fácil do ciúme. Mais ciumento que cobra de reguardo, diziam os poucos amigos. De tanta desconfiança adoeceu que precisou ser internado. No seu prontuário constava, à guisa de diagnóstico, esquizofrenia paranóide. Uma noite fugiu para dormir em casa. Voltou pela manhã dizendo que fora ver o que a namorada aprontava. Desconfiava que a moça andava a enfeitar sua cabeça com vexames. O médico, representante da razão e herdeiro da objetividade, levantou-lhe o boné e, depois de rápido exame, informou-lhe que ali só havia cabelos. Reginaldo olhou o homem de branco e, professoral, ensinou: Doutor, chifre não aparece, só dói. WDC

sábado, 28 de agosto de 2010

Nada foi em vão

Para… Ninguém

A mordida aconteceu. Tirou pedaço. Foi mais forte que o aço que escora a estrutura desse meu abandono latente e familiar. Foi bom saber que estava tudo errado. Mesmo com a dor. Nada é em vão, senão morrer sem ter tentado. Eu quero sim todos os créditos por tuas feridas, para estarmos sempre reconhecidos nas costas um do outro. Para sabermos sempre que feridas abertas são vias de mão dupla no caso do amor. Hoje faço as escolhas. Não ando mais à deriva de mim, acontecendo nos espaços ínfimos e devastadores de meus desejos adormecidos. Hoje trago na vigília o saber olhar para frente. Passado desfeito e tênis de corrida. Não encaro a estrada com cansaço. A primeira geração dos românticos se contorceria para me ter, tamanha esperança de amar desavisado e pleno. Louco em agravar as mesmas feridas que queres curar. Um mal amar de candeia, de portas fechadas e camas aflitas. Um amor de egoísmo e seita, ocaso e fração de verdades. Um amor que mesmo da deserta solidão de tua indiferença atingiu as palavras mortas. Vê, nada que sai mesmo no ódio da agonia é em vão. Mesmo as traças que destroem os livros têm uma razão. Ao comer as palavras, elas forçam a gente a trazê-las sempre na boca. J.M.N.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O cão demente

“Este de quem te esboço o vulto
E que, com sua arte ferina,
Rir de nós mesmos nos ensina,
É um sábio ao qual se deve o culto.”

Versos para o retrato - Charles Baudelaire

Fazia coisas próprias da espécie: ladrava, cheirava mal e tinha orelhas que arrastavam pelo chão, os passos atordoados pelo desencontro do seu corpo. Quase se podia ouvir as coisas desfeitas em seu ar desistido, entrando todas na mesma interminável agonia de despedir-se dos iguais.

Estava entre este céu habitado e confluente e as cerejeiras das quintas do Ribatejo. Crispava suas ferozes falas ao vento furioso das montanhas. E corria sem qualquer senso de direção ou liberdade, pois que ainda não sabia conquistá-la e era, por isso, impróprio para acontecer livremente.

Por todo canto de suas voltas, iam e vinham pessoas que o beliscavam, acolhiam ou atiravam pedras. Por todos os lugares por onde passou houve préstimos e maldades e esquecimentos, untados em olhares famintos, às portas de uma casa qualquer. E quando chegava o inverno era esperar que algum andarilho lhe tirasse para dançar sob a chuva de janeiro.

Fazia coisas próprias de um ser sem circunstância, desonerado das tarefas meticulosas ou duras: pequenos ossos empilhados em frente de si, buracos escavados para enterrar seu destino a cada nova primavera. Era um cão solto e enciumado. Detentor de combinações de raça e puro abandono em seus risos.

E por isso ficou logo esquecido, como se fosse um acontecimento inesperado. J.M.N.

Construção

Mirava Longe um enfeite no céu. Uma nuvem que tinha forma de sorriso. Suas memórias elevadas em arquétipos celestes. E ela. Existindo ainda no barro de suas roupas. Agregada como um resíduo, como uma segunda pele indesejável, mas persistente.

Era como se o trabalho cada vez mais crescente lhe enchesse de energia. Multiplicava-se. Ia e vinha das lembranças a cada tijolo preso, a cada punhado de massa misturada. A vida sendo reconstruída. Suas mãos ásperas e a pele moldada em sulcos pelo sol daquele lugar.

Quando a noite chegou e não havia mais nenhuma nuvem sorrindo no céu, lavou o sujo do corpo no pequeno banheiro improvisado do canteiro de obras e a cada enxaguada tirava mais uma de suas dores. Veio um presságio. Sorriu e acabou o banho. Sabia que dali em diante, era só esperar pelo dia seguinte e se não houvesse alegria no céu, riria com os amigos de trabalho a certeza de alguém estaria abrigado sob um dos tetos que construíra. J.M.N.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Excertos Terapêuticos XXIII

"Eu a amava, em suma. E era infeliz. Mas como poderia ela algum dia entender essa minha infelicidade? Há aqueles que se condenam ao cinzento da vida mais medíocre porque tiveram alguma dor, alguma desgraça; mas há também aqueles que o fazem porque tiveram mais sorte do que poderiam suportar".

Ítalo Calvino

Iluminar-se

É assim que nos visito. Lugar diverso em minha memória, a tua lembrança. Lugar de vagas e lacunas, tudo quanto falta, tudo quanto ficou sem saber à realidade.

Volto aos lugares em que pesas mais: dias de domingo, espera pela comida, a saída do banho, sempre esperando mais espaço para teus lápis de olho e batons. Nosso passado maquiado de eternidades.

Do mesmo jeito pasmo que me invadias, eu me invado. Agora é coisa minha toda desgraça. Mas também toda alegria. É coisa encontrada minha reticência. Dou-me a quem tiver de dar. Meus sorrisos abrem portos, amansam vendavais. Os meus, especialmente. É como um corsário que volta a casa, entretanto sabe que haverá de partir novamente. Não há mais culpas nisso, tornou-se certo, esperado.

Tem gente que se encontra de verdade. Como eu agora em espelhos. Como ela, ontem de avental, fazendo nosso almoço. Essa tez de realidade me apreende, me deixa surpreso. Sou um fato. Um prego com sombra na parede. De tão bem cravado, suporto agora os futuros.

Pela fresta da porta te vejo banhada de luz. Agora sei que é apenas meu olhar. J.M.N.

Para ler escutando…

Coisa Pop Apresenta

COISAPOP 4

É isso ai! Nosso parceiro fez o generoso convite e nós aceitamos.

O belo cartaz diz tudo. J.M.N.

sábado, 21 de agosto de 2010

Perguntas devastadoras

Aconteceu alguma coisa? Isso nunca devia ser dito, jamais deveria sair da boca de alguém, quanto mais da mulher de nossos sonhos. Claro que aconteceu! Claro que existe uma razão para não querermos falar naquele instante. Tudo ruiu. Um medo incrivelmente abrasador e ininterrupto nasceu bem ali, quando pela décima vez no dia dizemos que ela nos faz falta, que tudo estaria melhor se a correnteza dos beijos pensados na distância fosse acontecer dentro de dois ou três minutos no máximo. Claro que aconteceu. Aconteceu que agora tudo se sabe mais frágil e tortuoso e as distâncias, em vez de martírio, pensamos poder fazer as vezes de abrigo. Claro que mudou alguma coisa. A pele não tem mais o brilho denso de anos antes e o cheiro insidioso das fantasias agora marca também lembranças nascidas dentro da perda, nas bordas do sofrimento, recente ou acumulado. Qualquer coisa que se diga vem pensada em pretéritos protetores, como cartilagens extras para proteger as juntas do corpo. Aconteceu que a velocidade do querer foi superada pela o querer-se e o abandono não é mais visto como um privilégio, mas como uma ilha deserta em cujas entranhas muitos exploradores se perderam pelos séculos. Aconteceu que quando menos se esperava veio a vontade explodir a razão mais uma vez, porém a cova imediata daquele solo se abriu feito uma ferida cálida, lembrando que o solo e de cuidado agora e que uma noite a mais sem ouvir confissões de amor, pode servir para que este venha mais denso e infinito do que antes. J.M.N.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

De dentro para fora

Ainda espero. Esperarei sempre com a tranqüilidade de quem se banha de sol toda primeira hora da manhã. Esperarei que as coisas ruins saiam de ti. Que saiam de mim e tomem rumo ignorado. Estou pronto para esta espera. Julgado por mim mesmo a pena deve ser violentíssima, mas não te prometo a morte. Vê, até as rosas têm suas pétalas renovadas. Estou pronto para teu tudo. Para que deixes a informação chegar até tua boca e lá coloque o que certamente ainda tens a dizer. Estou pronto para o interior de tua carne. Riscada, ferida, alinhada com os versos de sangue que aprendeste com teu pai e a dura indiferente por quem tu és realmente, a qual, aprendeste com todos. Estive cego é verdade. Não mais. Não mais. Espero te ver um dia ofuscando a luz que nos rodeia. Estou pronto para te deixar com tuas próprias invenções agora e te esperar por dentro novamente. J.M.N.

Para ler escutando…

Quando cai a distância

Cai a lágrima, cai a máscara e ela finalmente aparece
Fazendo os mesmos caminhos longos
Deitando os mesmo tortos sonhos sobre minha alegria
Seus planos igualmente apenas dela, um silêncio para os outros
Voltada para si ela tem um susto
Tudo que vai, um dia volta
E se arrepende e diz jamais voltar atrás
Cai um peso em sua consciência, sua face silenciosa mais limpa
Respira por voltar a falar com ele, mesmo que para desejar-lhe a morte
É um desejo, enfim, deve ser dito
Enquanto isso, à procura de um bem, descobre que nada tem apenas dois lados
E quando parece que estamos fazendo um bem com tanta loucura, com tanta entrega
Podemos estar completamente enganados

J.M.N.

Ao som de Silent Face, New Order 1984.

A indiferença provoca guerras

O som do vale explodindo é indisfarçável agora. E eles que diziam ser apenas animosidade entre antigos vizinhos. Culturas de mesma raiz e crenças. Era um silêncio falso, de espreita e armadilha. Continuo escrevendo de meu bunker, esperando a redenção ou o cansaço. Cheiro de pólvora e ácido e corpos por toda a parte. No canto de meu refúgio, uma rosa. A beleza sobrevive dentro do caos e apenas ela é capaz disso. Não fosse por aquela pequena porção de vermelho, já tinha renunciado à resistência. No final das contas todo bem nasce dentro de quem o vê. De quem tem um canto que mesmo cinza é capaz de abrigar uma flor. Saber-se amado e não possuído. A noite corre lá fora. Estou prestes a ouvir as sirenes. Alertas para que saiamos das ruas e escondamos o amor rasgado pela vida. Eu me recuso. Preservo a vida para retornar e gritar aos ventos que vale à pena. Por mim teria apertado a mão de meu inimigo caso fosse possível ver sua face, caso não soubesse de um espelho que às vezes o inimigo sou eu. Ou apenas o teria chamado para uma conversa. Afinal, antes de as circunstâncias dizerem o que seríamos não atentava para o fato de ele me ser perigoso. E, de seu lado, provavelmente ele também não me via assim. Todos lavraram os autos. Ademais, detonamos bombas e disparamos as armas de ambos os lados. A primeira baixa sempre será a verdade. Dos que invadem por não terem muito tempo para efetuar seus saques. Dos invadidos por não saberem se defendem sua casa ou conquistam a do inimigo. As intenções derivam. A rosa que me traz a pergunta sobre minhas saudades ainda está lá. Mais uma bomba explodiu. E de repente me deu uma saudade de quando ainda nem sabia que tinha um inimigo, de quando poderia ter feito amor em sua cama, mas preferi deixar para depois as perguntas que realmente importam. Sinto falta de não ter sido eu desde o começo, de ter deixado a xucros e inconstantes, a chance de me soprarem suas verdades, alvo exposto à indiferença daqueles que pensam não ter pares. J.M.N.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Parabolé

Para um comentário anônimo que resolvi deletar
e encher com minhas próprias palavras.

Ser palavra é dívida eterna. Mil faces sob mil outras intenções de uso. Quando usei tua linda presença para viver, apalavrei tudo quanto jamais senti. Em minha boca ou em minhas linhas as palavras que te representam formam mundos. Fazem ser melhor o caminho. Ao te ouvir de longe tão ferida ainda, fico mudo, pois tenho as palavras para deitar minhas dores. E o secreto escutar dos livros para morrer um pouco. Posso-te os emprestar. Diz-me imundo, traiçoeiro, indevido. Diz-me superado, ínfimo, péssimo amante, pois ao dizê-lo volto a ti. Assim como quando digo o que és em palavras, voltas a mim. Não foi um convite. Não há celebração de nada. Há palavra. Há vida compulsória, que é assim que sou ancestralmente. Sim, são apenas palavras. Como doença, destino, loucura, amor e perdão. São apenas letras enfileiradas num sentido, dando sustento às marcas de solidão – não esqueça, a minha e a tua. Prismas diversos. Dando alimento ao pensar e aos olhos para evitar o incômodo de não ter. Sim, são apenas palavras. As minhas, feitas da minha carne, passadas pelo que eu passei. Vida acontecida, nada mais. Terás razão quando perceberes, o acontecido tem sempre a densidade do que somos e não do que dizemos ou fizemos momento sim, outro não, depois de novo e, talvez, tantas vezes quanto for necessário para aprender. Minhas palavras são de reconhecimento e amor ainda hoje. E as tuas, de que são feitas? J.M.N.

O que não guardo

Eu não guardo tua coisa qualquer. Não ficaram discos, camafeus, roupas de festa. Nenhuma porcelana fina ou guardanapos de linho;
Eu não guardo tua uma telepatia sequer, um convite para chegar mais cedo em casa e viver todo restante da vida num único beijo de amor;
Eu não guardo teu um relógio com nosso tempo, nossos horários. Não guardo nem telefonema de boa noite, nem boa sorte no novo emprego;
Eu não guardo teu nenhum cobalto, elemento de radiação intensa que dura séculos. Nenhuma linha imaginária que me mostrará o caminho de volta aos teus braços;
Eu não guardo teu nenhum cabelo branco, nenhum resultado de exame. Não guardo a cura do teu silêncio ou do teu vício de demorar para sair;
Eu não guardo teu nenhum rompante. Nenhuma travessia de oceano e surpresa de chegar para tomar teu espaço. Não guardo o calor dos sonhos em camas deitadas no meio do frio intenso;
Eu não guardo teu nenhum lugar secreto, nenhum cansaço mais. Não retiro o que duramente disse com plumas em teus ouvidos e fome e fúria sobre teu corpo;
E mesmo assim amor, sinto-me tão bem guardado nestas lembranças que é como se tudo quanto não deixaste, já fosse meu a vida inteira. J.M.N.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Questionamento

Para Lícia

Não cuidei de ti. Fui um sentimental de mim mesmo. Um estúpido tentando sustentar em minha voz o que o tempo me mostra agora que é insustentável. Aforismos.
Não consegui ser menor para aumentar o amor. Não houve espaço. O único tempo em que eu cabia em nós era durante teu sono, cuja placidez me encantava de tão contrária.
Não passei correndo por tudo que me irritava em ti e, por conseguinte, aquelas tão miúdas coisas não se tornaram uma brisa fresca que refaz a gente do calor da estrada.
Não te entreguei o rol de minhas roupas.
Não te passei a tarefa de zelar pela casa.
Não perguntei que sofá preferias ou qual seria o tapete que usaríamos para os primeiros convidados.
Deixei de cumprir tantas promessas que já estou endividado por duas gerações.
Nem orações, nem a unção dos enfermos me salvarão.
E por fim não entrei em tua dor. Não apelidei o dia final de nada. Sem créditos para qualquer coisa que tenha feito de errado, restou um longo silêncio de mar tranqüilo depois de uma bruta tempestade.
Precisava da brevidade da indigência. Queria que passasses por mim e me descartasses.
Tornei-me invisível, sórdido. Não preciso que entendas ou aceites, desde que seja um adeus tua certeza.
Soa o sino. A cidade está terminando para mim. Caem as casas, os abrigos. Lá de cima as ruas são tristes. É apenas ausência. Só isso.
Lembro da escarpa altíssima de onde deixei cair minha razão, há muitos anos. Só o mar lambe seus restos e não devolve nada. Assim seja.
Deixei de fazer tantas observações que não há no mundo cadernos de nota suficientes para retomá-las. Sei que estive entre nós. Talvez como um passageiro, talvez como um visitante.
Agora que abro a janela para antes de deitar ter a certeza de que tudo está diferente, nasce uma pergunta. Uma só... em qual das tuas mãos escondeste meu destino?. J.M.N.

Batismo

Nessa nossa andada, irmão, já tropeçamos em troncos, pedras, distâncias. Nossos próprios pés. O adobe de nossas moradas trouxemos dos quintais dos teus dois manuéis. O Lúcio ainda tinha aquele sítio com pomares de onde roubávamos o azedo das carambolas. Amanheci dourado pelo mormaço da tua letra e tu velastes os meus dias de caramujo. Isso nos fez pertencer como se pertencem os desencostados da razão. Construímos essa puxada de desabrigos que bordeja nossos relentos mais antigos. Por eles inventamos amores reais, irmãozinho. Por eles o nosso batismo sem empetecamentos nem roupas de domingo escorreu no entre pedregulhos e guiados pelas mãos de nossa madrinha. Palavras iam e vinham sob nossas cabeças. Um abraço de um inaugurou os dois. Veio-me de súbito aquele setembro em que te dei um poema onde descobristes ametistas afundadas. Faz tempo que estamos por aí forjando risos e esmorecimentos alheios, irmão. Lavrando silêncios em pastos ressequidos de poesia. Apesar de tudo, nunca abandonamos a candura de sonhar um dia dividir a mesma varanda, relampejada de tosses e histórias recontadas. WDC

Castanho

Sabe Deus que angústias te seguem e causam esses pequenos redobros de alma que apensados aos teus olhos, em vez de matá-los, tornam impressionantes, comoventes. Os habitantes de meu corpo se aquecem, soltam-se loucos diante desse espelho magnífico. Teu olhar é como um poema que fui buscar no mais fundo silêncio da adoração. Que passem já as horas em meu relógio de pulso, para que eu sinta vindo de minha mão esquerda diretamente à minha engrenagem reticente, tua presença. Essa cor que provoca choro em minha pele, que perturba as minhas mais sozinhas horas. Esse castanho deserto que é capaz de avenidas para perseguir meus desejos e me entrega frutos dulcíssimos. E tão distante de mim, agitado, esperando que as horas passem, penso no que escrever para celebrar teu olhar que me refez, que me adornou em minha própria solidão, impertinente e bem vindo. J.M.N.

domingo, 15 de agosto de 2010

Máxima explicação

Sinto que as coisas passam e já consigo declamar poemas em aramaico antigo, como antigamente eu fazia nos seus ouvidos. Sinto estes segredos crescendo novamente rimados. Cheios de densa esperança e espera farta. Estou na linha do tempo andando. Equilibrista de alturas urbanas. Utilizo minha perícia para ornamentos em frente à sua janela. Uma lua cheia, redondezas por toda parte. Daqui a pouco cairá meu sono, porque toda escuridão chega antes do mais veloz feixe de luz. Em seu nome não encontro mundo. Que se exploda então. Sinto coisas naturais, outras nem tanto e minha língua pede a morena pele. Nova raiz no meu canto. Novo mundo dentre mortais. E vejo e claro que sigo de pronto. Aquelas pernas desenhadas com perguntas sobre a razão de ser. Vou lamentando não andar bem perto. Suo em bicas e disparo grávidos olhares a pedir para que chegue o dia. Sinto a manhã violentando o neutro de apenas pensar. Já não estou sozinho. Houve uma criação enquanto eu dormia e enquanto escrevo e deixo pistas sobre o que não fui encontro milhares de razões para tê-la esperado. J.M.N.

domingo, 8 de agosto de 2010

Um tiro dentro do espelho

Para todos os pais do mundo.

Eu fui ali reconhecido, fui deflagrado. Como um fogo que inicia estava claríssimo o fim daquilo. A chama ardente do último olho por olho. Eu tinha de matá-lo. Para o bem de todos, enfim. Para o dele por não saber-se superado. Para o meu próprio bem por nunca antes ter tido completa coragem para o ato. E tudo começou pelo passado. Pelas esquinas dobradas em tudo quanto cuspi no rosto da sorte entre meus anos. Não haveria fantasmas que importassem. A única face era a minha. Com todas as marcas, pronta e oferecida. Sem espelhos para guardar a culpa, meio a meio. Esquisito confinamento de nossos olhares. Uma ternura tensa de havermos nos atraído para as mesmas armadilhas. E tudo era amor e medo e fogo intenso. Como haverão de ser todas as despedidas, todos os destinos cumpridos a ferro quente. Nosso couro cheirava. Os olhares à mostra e finalmente o nascer das sílabas. Uma sobre a outra cavalgando a tempestade, cada qual destronando a anterior num ritmo jamais pensado. Como passos primeiríssimos nas terras conquistadas, fomos sendo. Vorazes conquistadores dos pesares, do ensinamento. Incompletos e antigos. A herança combinada de uma tribo que perdera o tato, o sentir tecido em cantos, glórias e mordomias. Barões de nada nós dois. O cansaço extinguiu a fome, deixou para trás a mentira. Trouxe violento, anos que já não cabiam e as memórias daquilo que ficou nos dormitórios do mundo, na folia de descobrir um filho por ai. Sentinelas dispensadas, as armas sem munição. Eu sabia que um dia tudo haveria de ser só perguntas e respostas, desconhecimento e tragédia, fome e paixão descomunais. Precisava partir, mas antes, matá-lo. E ele não esperava que a dor que descia de seus olhos, fosse também a minha. J.M.N.

Em nome do Pai, do filho e de todas as coisas que valem à pena

A mesma inconstância. A mesma suprema força que cala toda fúria no momento em que devia nascer o grito. Sua beleza era exatamente aquela. Trair-se para amar do avesso. Como se disso dependesse a vida inteira. E dependia. A dele e de quem estivesse circunscrito nos seus quereres. Não sabia muito mais do que aquilo. E estava certo que sua loucura seria recompensada, pois acreditava que devia extravasar-se, continuar-se dentro dos outros como se fosse a única maneira de sentir-se vivo. Seus miasmas avançavam perdidamente. Como nele avançava a certeza de que estaria sempre perto de Deus, caso fosse mais amor do que outra coisa qualquer. J.M.N.

Refúgio

Quando tudo é certeza e a tarde conspira para um céu limpo e de poucas nuvens, eu gosto. Gosto de tocar grades de casas que estão perdidas. Pátios de antigos amores. O espaldar da cadeira onde ele sentava a hora do almoço. Quando tudo definha e parece flor de deserto superada pelo sol descontrolado de um meio-dia violento, a única sombra que protege a vida encontra-se nos braços de quem me chama pelo nome e ama além de minhas letras confundidas. Ela sempre me chamou. Chamou para perto dos seus mistérios, dos seus santos, dos seus humores. Aquela mulher que pouco dava e amava com a palmatória em riste foi-se dando a mim. E eu, espantado, fui sendo dela como a exceção de uma noite sem estrelas. Fui me dando até ser menos eu do que queria. Fui entregando cada hemisfério como se fosse a totalidade do que sou. E senti as vertigens que advém desse tipo de entrega, para a qual menos que tudo é nada e um abraço de minuto é um continente inteiro. Quando tudo se encontra na extrema ponta das minhas lanças, sei que é hora de desistir, porém aquilo que ela me deu, impede. Não tenho bem certeza, mas nas horas em que recordo de seu rosto antes do fim, tenho a impressão de que algo dela ficou em mim. Como uma proteção costurada com sangue. Como uma saída para todos os becos onde me perdi. J.M.N.

Mais um poema acontecido

Há um mês não havia esse respeito

Essa disposição para a espera do momento alheio

Essa falta de loucura

Só agora vi

Que o transbordo é que sustenta o amor

E o que excede é o que dá sustança.

WDC

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Beijando estranhos

Noite tristeza apertando as pálpebras. Canção fazendo ponto na saudade que emana. Estou como um preso, debruçado entre as grades esperando o tempo lentíssimo do cárcere, passar.
E não prometo quase movimentos aos músculos. Ando todo endividado. Antes era o tempo em pessoa, sempre correndo, sempre andando.
Não deito mais. Conforme a quentura do leite desfaz meu receio, vou tardando em morrer.
E vejo sua imagem passando. Subindo escadas em um supermercado. A noite ainda vai dar cabo de toda minha bebida estrangeira.
No escambo entre esta vida e minhas dádivas e trapaças e responsabilidades de humano, sai perdendo uma vez que a soltura não esteve jamais em questão. Ando tapando buracos.
A cordilheira de seu corpo. As dúzias de dor de cabeça. Poeira enfurnada nas estantes. Quando haverá outro dia esperança? Morre o registro do seu cheiro. Quero ir também.
O beijo tem gosto de abuso. Violência. Gratuidade encontrada dentro da noite, do intervalo das festas. Abraço nenhum reporta segredos como aquele primeiro abraço que te dei.
Sempre fechando as portas. Como estarei cumprido no final de tudo?
E se for para esses beijos nascerem assim, que venham, ao menos, lembrando o sussurro de minhas primeiras vontades contigo. A eletricidade contida no céu. Céu de tua boca.
Hoje os beijos são emancipados e perdidos e a felicidade que me causam está aprumada na conquista da carne beijada. E nada mais. J.M.N.

Para ler escutando…

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Quando tudo é novo, mas dói antigamente

“[…] escuto essas canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.”

Noturno – Ariano Suassuna

Tornar posse o que se revela intimíssimo e volátil dentro do que penso, custa caro.
Custa um dia inteiro de ferida.
Um travo permanente na boca, entre a decisão de dizer e o momento da entrega à verdade.
O que vai nascendo no dolo da auto-intimidação é a pronúncia rasgada das coisas mais difíceis, das ruindades mais despertas em meus atos diurnos.
A coisa em si de ter prazer nos avessos, na sangria da cortesia, de tudo que aprendi ainda muito novo no colo de minha avó.
Vai fazendo cascata e dobra a força ao despencar dos olhos à ponta do verbo.
E quando acontece de partir para o cume dos dedos e das estações abertas em minhas decisões febris, a coisa que me formula tem o peso de um arranha-céu.
Ocupa uma quadra, mas invade a linha do horizonte para o alto, apontando como uma lança pronta a ferir o firmamento.
E calculo a proximidade do agudo que me exaspera em porções cada vez mais furiosas de saudade, de desacontecimentos.
É coisa perpétua essa fadiga da loucura que chama, que me deteriora, porém faz a grande matéria da vida soar menos fina e menos desgastada.
Em meio disso, inaugura-se a busca pela sorte que nunca vem.
É como a beirada do esgoto que dedica às nossas convenções e boas paisagens, o cheiro do que se foi pelo ralo.
É matéria nossa esse organismo pútrido que se arregala em rios sob nossos pés.
Já não penso em formidáveis tratados. Os romances estão muito além das minhas possibilidades e quando a casca que me protege quebrar serei eu de novo.
Um resumo de unidade, um pescador de divindades terrenas escassas. Muito escassas.
Quando já não suportar partir e me refazer, voltarei então para o silêncio que nos antecede a todos, sabendo que as mãos dos anjos estarão sempre prontas a reparar as feridas e que talvez cobrem uma dor a mais pela petulância de querer tudo de novo. J.M.N.

Desconhecido (ou palavras dedicadas ao teu medo)

“Sempre soube que estavas lá
Eu é que ainda não havia chegado”

Cantídio

Se quiseres saber de qualquer gente à distância, então não precisa perguntar por mim. Basta gritar da janela, mandar carta ou usar o telefone para ouvir minha voz com um atraso de milésimo de segundo. Posso me encarregar de contar estórias. Grafadas à maneira antiga. Remendos de fábulas e desejos imemoriais.

Se és do tipo sofrido que ainda se ressente de ter quentura nas veias, esquece. Podes muito bem comprovar a anatomia da distância com precauções de ódio e curiosidade arfante. Para isso, não precisas da opinião de ninguém. Posso contribuir. Posso enviar mensagens de socorro e te contar de meus romances como se não soubesse que te feriria.

Às vezes me chamam desaparecido. Jamais soube terem me dito canalha por sobre palavras alheias. Prefiro sentir o som das verdades diretas, aquelas que dizem respeito apenas a ti, como toda boa verdade. Sei que posso reverter isso. Mas terás que querer. Terás que dar com os olhos no vento contrário que é o ritmo das coisas que se nos acometem por inteiro – como as curiosidades. Posso te desejar de antemão, pele encantada, coração rupestre.

Quando chego a certos lugares, acontece amiúde de me encontrar sozinho. Quando sinto raízes se desdobrando no terreno espero, se elas fortificam me envolvo e algumas vezes, algumas poucas vezes, estanco no lugar encontrado, independente de tudo. Independente de chegadas ou partidas antecipadas. Independente de mim até.

Se não és como me disse uma velha amiga. Se ainda estás no campo devastado a vicejar atos e medos e misericórdias de si, então não posso te fazer promessas. Jamais poderei definir o que te espera depois da ponte, o que te imprime o ritmo tenso de se dispor – dar-se.

Se és quem eu esperava que fosses, saberás que estas não são palavras de um fantasma e sim, de alguém que está tão mais próximo de ti que o cheiro modificado do teu corpo nesta presença, deu alarme, e junto com o encontro esperado, acalmará a impressão de que ainda tens monstros e entidades pelo caminho. J.M.N.

O que não disse

Ela fez caso sobre o que escrevo. Disse que não precisava, que as minhas palavras são para coisas passadas. Ela cerrou os olhos e perguntou se eu queria que ela acreditasse que tamanha intensidade era coisa do passado. Eu disse que sim. Preciso dizer a ela que minto de vez em quando. J.M.N.

Propriedade

Vou escrever o nome dela em mim. Vou ter um nome. Meu corpo vai ter um nome. Vou desfazer tudo o que me ensinaram sobre ser de mim mesmo. Não sou, entrementes. Nunca fui. Jamais planejei ser. Vou crivar a parede de balas e ter no formato dos tiros as suas iniciais. Um amor violento e desconforme, como são aqueles amores interrompidos ou suspensos. Não podem nunca encontrar-se em paz. Vou ser dela por sobre a pele. Vai estar escrito. Vou para baixo da terra informando aos vermes que tenho título de posse, que sou de alguém. Mesmo que não me respeitem ou facultem suas fomes, saberão que darão de volta aos elementos naturais e que no mundo de cima, apenas ela poderá reclamar meu fim. J.M.N.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Oratória do estalo (ou “o berço do meu conhecimento, e dos meus limites”)

A minha mãe e minha avó Virgínia
que nos criaram dentro da maior proteção.

Vai te ajudar com os meninos, ela disse. Sabia muito bem o que estava fazendo. Não fosse o cheiro de memória do pequeno artefato, poderia dizer que era novo em folha. Mas havia dor nas ranhuras. Sabor de derrota e contentamento. Havia manha de contar as repetições em dobro. Sua vida era jacarandá, uma peça inteira. Minha avó deu forma ao maior medo da gente. Passamos a assumir as culpas banhados em sonoros estalidos de madeira nobre abrindo na pele tanto as questões devidas, quanto aquelas que nem eram merecedoras de atenção.

Nossa mãe acertava em todo canto. Arrependia-se. Fazia questão de dizer que era necessário. Nosso pai estava ausente. Talvez achasse merecido, talvez quisesse apenas esquecer que aquela herança de lei e pena, havia sido dele um dia. E fomos moldados dentro do razoável acesso de fúria de quem melhor nos conhecia. Havia complacência é claro, mas tínhamos que contar as palmadas. E era ai que nascia nosso saber. A cada estalo o reconhecer de que havíamos escapado à regra, de que tínhamos merecido o castigo. E mesmo não havendo razão, reconhecíamos assim mesmo.

Melhor seria uma sessão de reza com as caras voltadas aos cantos da sala. Mas elevávamos a impressão do riso até os píncaros insuportáveis da paciência dela. E tudo extravasava. E tudo zunia dentro do ouvido que era a forma de empatar a dor de crescer no dentro. Mas quando acabava, tinha o abraço e a insustentável culpa de quem batera. Na época sentíamos raiva, porém sem saber por que, sofríamos o choro dela também. Que nos agüentou como somos desde sempre. Que tentou e rugiu o controle que precisava ter, junto aos seus e que com a ajuda de justiça anatômica formou tudo quanto mais prezamos hoje.

Mesmo com as palmas marcadas, com virtudes dormentes ou entristecidas num mundo que não resguarda ninguém, existia santidade no castigo. Amor e culpa na postura da força e dentro desse fino equilíbrio de carinho e força nasceram outras tantas possibilidades de amar e fazer justiça. Quanto mais avançam os anos, mais a memória dá peso àqueles dias. J.M.N.