Aparece-me
no sono. Um vulto, uma presença. Enquanto a obrigatoriedade da vida transita e
apenas a respiração é certa, ou quase. Flutua no argento da lua, nas camadas do
tempo. Com algumas doses de insônia e desrazão. Essa fibra que faz meu pai
decorar muitas páginas e se corresponder com a gente declarando seu amor. É uma
coisa, latente. Um fungo, quem sabe, uma erupção de pele. Essa marca tão funda
me fica nos olhos, transbordados de alguma forma quando eu a digo. Estou no
carro dirigindo preocupações quando ela chega e me faz ri. É fêmea, frutífera, uma
lança quando em vez. Alcança o pátio da antiga casa e farfalha indiscernível,
um garimpo de vozes dentro da saudade. Aparece-me na estrada. No meio do rio. Quando
sigo sem destino, fugindo dela e de minhas responsabilidades. Quando sou mais
eu e menos mundo. Mais próximo do eco das galáxias e das desimportâncias dos
sapos, das corujas e sua literatura de ave. Liga-me ao que é mais real. O corte
pelo acidente, a árvore que foi decepada, a história com mais versões que
vencedores. Mete-me em curto com a energia que me trespassa e anima. A poesia
me funde com tudo de uma vez. Povoa, projeta, vitupera e escarra. Põe palavras
em minha boca que é sua função. Fá-las escorrer para o branco da página, que é
seu vício insuperável e me corrige das insuficiências, dos desesperos por que
passo em ser apenas um homem diante de um mundo de homens trocando-se por patacas
ou minerais. Mas, sobretudo, não me deixa no desalento do quarto, surrado com
dor de cabeça pelo que não se pode voltar. A poesia me viola. Fecunda. Abre as
juntas e os alicerces e refaz o imponderável. É do seu impossível que me
alimento. Torna-se qualquer coisa. Qualquer idade. É esse vento que sinto agora
perto do mar. É o beijo desesperado da partida. São meus avós sozinhos no natal
de 92. São as pernas em falsetes de quem se esforça às muletas. É o lítio, a
venlafaxina, os benzodiazepínicos dos quais saltei. Promove litígios. Fez-me
perder a mulher certa. Deu-me outra possível. Posso fatiá-la, tê-la em
redondilhas ou canções. É a língua que me opera e induz. Lida, corpo, demência.
É tudo de exceção no que não tenho. Tudo quanto posso quando a dor é demais.
J.M.N.
segunda-feira, 23 de março de 2015
quarta-feira, 11 de março de 2015
Repetido
Finalmente a noite chega e quero dizer tudo de novo. Fazer
tudo de novo. Encontrá-la ao pé da escada de seu edifício, leva-la às compras,
encontrar coisas em comum nas nossas falas. Mas ela não está. Não há sinal de
que esteve. A não ser tudo o que me vem em golfadas de um lugar qualquer da
memória. E é como um velho disco arranhado que na melhor faixa, estanca as
vozes gravadas e repete infinitamente sílabas sem sentido. Pensar nisso me
causa ao mesmo tempo satisfação e incompletude. Escrevo sobre essas coisas. Com
a mesma tristeza das descobertas perto do fim. As pequenas mentiras, a negação
de carinho, seu estojo de maquiagem perdendo itens dia após dia. Era mais do
que a beleza indo embora. Era a ausência acontecendo e se encarregando de me
ensinar a ser só de uma vez por todas. Um espaço vago, sendo preenchido pelo
que não havia mais e meu sistema nervoso cumprindo a saga de criar memórias e
distorções sobre o que fomos. Solidão tornando-se solidão. Até que eu mesmo me
despedisse da saudade e não restasse mais nada. A não ser as palavras que vêm e
formam frases e as frases que juntas contam histórias e o sentido das histórias
que vem, mas se despede antes se cumprir. J.M.N.
quinta-feira, 5 de março de 2015
Em voz baixa
Enquanto acordo e as coisas ao redor
ainda repousam e a pluma do quase dia flutua, nascem as melhores memórias. Vão
preenchendo os pequenos vazios. Alvorada acontece e o degelo da ansiedade
ocorre. Liquefaz-se a presunção de existir sempre demais, sempre ao extremo. O
que resta do gelo absorvido pela lentidão do despertar é esse fóssil
tristíssimo de forma indefinida, em cujas estrias e sulcos esta certificada a
saudade por tudo o que fomos. Uma espécie de dulcíssima bebida apodera-se dos
lábios. Volto a sentir os gostos, a tatear a pena, a ouvir quem suspira ainda
manso ao meu lado. As coisas tomam forma. E finalmente vejo o dia. É como um
grande espelho limpíssimo que me encima. Sou, do grego arcaico, ídolo. Reflexo
sem circunferência. Sou o que sou de manhã bem cedo. Parto para o dia cheio dos
sons internos. As melodias dos clássicos, as odes de Homero, ancestrais
reinando ensandecidos seus infernos e, claro, a paixão natural pelo que não é
definido, nem puro, nem pouco sofrido. A cadência das notas vai se formando. Ao
fundo o som do que vivo é algo entre indie e Rachmaninov, pouco sentido, muita
paixão. Fica de tudo esse rastro de bonomia e vinho tinto. As pernas morenas que
me procuram para proteção. Fica na carne a véspera do que não foi dito e
trêmula, a posição de nascer acontece entre linhas. De manhã, bem cedo, quando
todos dormem e ninguém se importou com meus erros no trânsito ou meus e-mails e
telefonemas, converso calmamente com minha história, que dança vestida de
vermelho, num alpendre perto do sonho, com as mãos na cintura, envolvente.
Sabendo a antiguidade, palavras e pouca vergonha do que viveu. J.M.N.
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