quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Nunca sabemos que coisas serão deixadas para trás

O tempo passa e as coisas se misturam na decomposição das memórias. Aquilo que fica já é imaginário, nasceu dos escombros do que se viveu e por isso mesmo, nasceu puro, reinventado. São imitações do que se passou. Café coado em pano de linho, o melhor gosto, sempre com sobras no fundo do tacho. Tudo que ficou ainda me acompanha. Como amigos segurando a minha mão por essa estrada incerta e derradeira que cruzamos. Os cheiros, os gostos, as pernas adoradas, as mãos macias que me acalmavam na infância – tudo fica, tudo vira reboco em nossa casa de carne e ossos e significados. Tudo quanto se foi me volta agora que mais um ano acaba. E volta na fuzarca das desistências, na vertigem da entrega. Indecisas coisas entre minha loucura e a infinita mansidão do que procrio, essas linhas sedentas, alugadas como alegria de dia inteiro. Vêm diante dos meus olhos, confrontam minhas covardias, as coisas que nasceram mortas em minhas lembranças. Vêm desculpadas e bandidas, evocadas no esquecimento de quem mais amei. Guardadas nos abraços dos amigos reencontrados. As coisas que deixei para trás vêm logo depois dos meus passos, reinando soberbas pelo caminho que tento mostrar aos outros. E estes pisam por sobre as tais coisas. Não importa, elas sempre seguem adiante. Durmo envolto nelas. Acordo com seus restos nas minhas lágrimas matinais. De tudo o que fiz, de tudo o que conquistei ficou muito. Frações de dias felizes, somas de terríveis finais, múltiplos do amor que me inventa e redime, todas as vezes que me deixo para trás. J.M.N

De certezas e algumas culpas

p/ meus pais e meu irmão

Quanto mais tento esquece-los, mais me tomam. Quanto mais grito independência, mais desalinho o pêndulo do que sou e do que fui. Tantos anos a procurar as conversas que não tivemos. Tantos desatinos tentando buscá-los na dor das perdas. Estou cansado. E sinto que é assim que deveria ser. Este cansaço é por saber que é impossível. Que não se separa a biologia dos feitos de amor. Queria dizer que sou deles, como as rimas são próprias dos versos. Quero dizer que meu lugar no mundo é um mirante de onde enxergo o que não tive, mas encontro tantas e mais razões para saber que fui amado, que não importam as distâncias ou os anos engaiolados nas displicências e dúvidas. Sou muito daquilo que eles não queriam que eu fosse. Mais imprudente que alguns meliantes. Mais pela metade que certas frutas colhidas. Sou de tantos modos um estranho que nem sempre os espelhos me acolhem. Quanto mais insisti em diferenciar-me, mas me igualei ao que não queriam que eu fosse (em parte o que são, em parte o que jamais quiseram ser) e sei que os silêncios não são de abandono. Sei que as ternuras são sempre escolhidas e que, às vezes, dói mais neles do que em mim. Digo-lhes para não chorarem em ombros estranhos, as suas dores. Não buscarem o conforto dos claustros para fugir do que não sabem responder. Também sou inconcluso, sou raro com cada qual neste mundo. Às vezes queria perguntar-lhes quem sou, mas prefiro saber o que não sou e nessa conversa solitária, mas feliz, encontro a única resposta que me vale, a única sentença que jamais me escapa: meu lugar no mundo sou eu que faço, graças ao que aprendi com eles. J.M.N

Ao ano que fica

Do ano que fica pouca coisa é certa. Talvez agora eu use mais escudos. Talvez o sol seja mais meu amigo. Do que ano que esteve em meu calendário ultimamente, muitas verdades, muitos sorrisos. Houve um tanto de desmatamento em minhas áreas ainda virgens. Deixei sonhos pelos almanaques, retóricas pelas agendas e silêncios foram inaugurados. No rodízio dos dias que termina um ir e vir de sentimentos atônitos, febres de amor, paixão e labuta. Muitas noites e estrela e idéias perdidas. Do no que fica um punhado de mim vai para a caixa de surpresas, para o porta-jóias com uma bailarina, para dentro da caixa em que esteve a chave da casa dela. Muito de mim pelas esquinas, pelas avenidas e calçadas. Do ano que se desinstala agora, muito dos suores de prazer e dor, muitas cartas na manga para os jogos que não se devem jogar jamais. Uma idade se inaugurou, mais cabelos brancos, mais inflamações e perdas de humor. E uma tranqüilidade recente que me instiga e perturba. Ao ano que fica minhas desculpas, meus vinténs. Um tanto de maneiras indevidas, muito mais de amores e liras. Ao ano que fica um adeus de acúmulo e saber, um prêmio por se estar vivendo a vida. J.M.N

Entre o sono e a aurora

Chegou em casa e se sentiu vazia. Depois do beijo, depois da noite, apenas um corpo sem habitante. Fazia frio a despeito dos quarenta graus da cidade. Liga o som. O CD ainda estava lá. A música dizia: In my imagination/You're waiting lying on your side/With your hands between your thighs. Ela pensa nele, de olhos fechados deseja estar ao seu lado. A música avança. Depois dos solos, a melodia volta uma oitava acima. É hora de se entregar. O choro vem como uma revolta. Ela pensa em tudo o que passou. Pensa que jamais irá olhar para os seus olhos, nem que seja para dizer os piores desaforos. O frio aumenta. Ela canta junto o refrão. Olha pela janela e pensa novamente que não se sente confortável em seu próprio apartamento, como disse a ele, meses antes. Queria fugir dali. Acende um cigarro e lembra que ele havia pedido que parasse. Ela apaga, mas não por causa dele, não para satisfazê-lo em silêncio, apenas para aviltá-lo, para saber que quem toma as decisões agora é ela. Vai até a janela e começa a contar os carros. Sem razão de ser segue um deles e lê a placa. Reconhece-a. Berra a plenos pulmões um impropério. Era ele. Passava devagar. Maldita hora que foi à janela, pensou. Repetiu a música mais duas ou três vezes e voltou à janela, desta vez estaria pronta se ele passasse. Sabia que ele passaria. Queria que passasse. Mas ele não veio e o dia finalmente desabrochou. Ela começou a adormecer com um cigarro apagado em seu peito, pensando que ele mais cedo ou mais tarde passaria novamente. Começou a imaginar o que faria e quando finalmente a resposta ia se formular ela dormiu, sem contar a si mesma o que faria. J.M.N

O destino de um só

De sonho e poeira de estrada. Jaz em mim o que não queriam os loucos. Mora em meu corpo o austral das galáxias. A expansão dos universos mais senis. Tenho trunfos e segredos que guardei. Aos quais ouvi como súplicas de alcova. Guardo-os para o dia que tiver que saldar minhas dívidas, esperando que os que me julgam entendam do que sou feito – entrega e gozo. Estou distante de suas dispersões. São e salvo de suas injunções de ódio e clamores de exclusividade. Venho aqui certo de que nada mais me atrai, senão o que proponho em segredo, senão aquilo que ainda sei estar em ti, por dentro. Não contaste a história toda. Não ousaste admitir que não foste suficiente para contigo. Minhas linhas ainda estão ao teu dispor, mas mentes identidades por não saber servir, entregar-se. Meus primeiros anos esqueceram em mim as eloqüências, as tiranias. Tenho a posse do lugar mais secreto do mundo, tua loucura. Tenho certeza de que ainda me respondes na imensidão desses meses. Tenho certeza de que escondes para não ver. J.M.N

Estudos em prosa e sentimentos II

Já gastamos as palavras todas, meu amor. É chegada a hora de amarmos em silêncio. O vento foi um bom amigo, mas levou os rascunhos do livro, as linhas de memória que eu escrevi a teu respeito. Gastamos todos os suspiros e efeitos dramáticos, querida. Gastamos nossos olhares, gastamos a amizade dos outros. Enquanto a lira desses anos se reconhece, nossas distâncias estão postas em cartografias. Sei em que ponto da cidade te devo alcançar, mas nunca tento. Sinto que gastamos toda a possibilidade de nos perdoar, minha amada. Sinto muito. E agora, por isso mesmo, sinto que estamos prontos. Gastamos todos os sumos, todas as desculpas todo o desconhecimento. Não podemos dizer que somos santos, ou alheios um ao outro. Sinto que ninguém mais me entenderá tão no íntimo como tu. E sinto, de fato, que assim o sentes também. Gastamos os dinheiros. Gastamos a fome dos alimentos naturais. Não tenho nada para te dar em verbo, prosa ou rimas e, justamente por isso, agora tenho mais o que te dar. J.M.N

Reserva de chuva

Tenho em mim uma porção de chuva guardada para os dias em que o sol me enfeza muito. Tenho essas gotas que recolhi em muitas tardes durante a vida. Elas têm a força de conter os fogos, de acabar com as velas das promessas sendo ao mesmo tempo duras e frágeis, posto que deságuam para um lugar qualquer. Guardo essa chuva em segredo e quando o verbo me falta uso dela para acordar meu dentro, banhar minha saudade e me fazer lembrar que sou feito dela também. Ela é exclusiva de minha cidade, conforma-se nas nuvens de minha floresta e traz a história de meus ancestrais, daqueles que foram aqui gerados e dos que decidiram morrer por cá. Minha chuva interna não é triste, não vem apenas quando está nublado fora de minha janela. Ela vem, inclusive, quando lembro de seus olhos me mostrando a alegria de me receber, quando penso no desatino de quando dizíamos estar tudo acabado. J.M.N

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Todos os sentidos

Todo amor tem duas versões. A de quem fica e a de quem se vai. A de quem conta e a de quem cala. A de quem suplica e a de quem não se humilha jamais. Todo beijo tem uma ponta de amargo. Nasce do outro, nasce de quem se dá. Pode nascer do fim do desejo, pode crescer no incêndio do ato. Todo sorriso tem tristeza embutida. Poder explodir de nervoso, de cansaço. Pode florescer do abandono ou numa comédia barata. Todo carnaval tem seu fim. Toda mulata cheira pro bem. Todo passista é eterno nos pés. Toda promessa tem juros e mora. Tem passado e perdão consumados. Tem culpa e gozo no não pagar-se. Toda distância tem um logo ali. Pode ser um passo pro nada. Pode ser a corrida para o fim. Quem sabe um erro nos mapas de quem as cumpre? Toda loucura tem sua razão. Assim como toda razão é louca em si. Cabe uma na outra, ressaltam-se, enfim. São gêmeas de sangue quente e ignorantes de sua completude. E toda música tem notas que não lhe pertencem, como em mim tem tanta coisa que deixou de tocar. J.M.N

Quem tem sonho vai à lida...

...não espera ocasos, não depende das vontades alheias. Quem sabe encontrar as linhas, quem se atreve nas distâncias improváveis, não rasura a vida. Vive. Enquanto roda o tempo. Enquanto tudo é sopro e vontade, quem define que é presente, sabe estar conjugado na boca que ama. Desejável nunca ter dor alguma, nunca rosnar de raiva, nunca gritar de solidão. Impossível que não aconteçam essas coisas. Impossível que se passe o tempo sem essas vivências. Quem tem olhos e enxerga o fundo de outra pessoa, tem de estar pronto para se ver desta distância. J.M.N

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Te quero

p/ Edna

Te quero mesmo com teu anjo às costas me pedindo auxílio na tua proteção. Mesmo com teus destinos tão precisos quanto o das nuvens no céu. Te quero com teus queijos e rezas. Mesmo que a maré não suba e o rio te despreze com arraias e peixinhos espinhosos, mesmo que os teus passos na areia ao lado da minha quietude ensolarada não inventem danças até o entardecer. Te quero mesmo dispersa antes do café, mesmo estabanada no almoço, mesmo dormindo antes da minha chegada. Te quero mesmo com os papéis que dizem vagamente do nosso futuro. Mesmo com a tua exatidão e com a tua mania de transcender a tudo. Te quero com essas coisas que me enervam: a predisposição para o perdão, a palavra macia nos dias de trabalho e solidão, a superproteção, a lágrima que desmancha os dois. Mas o que mais me exaspera é querer acreditar que estes são os entretantos, sendo eles os motivos.WDC

Uma vez apenas

Por que meu corpo não consegue ocupar toda a extensão dessa cama? Ela parece tão grande durante a chuva que chego a pensar que o espaço vazio nunca se acaba. O edredom há três semanas não forja enredos suficientes para amainar os meus medos. Talvez não seja desse calor que meu corpo tenha sede quando começa a tremer. Talvez se eu fizesse um café. Como meu avô fazia, forte apenas o suficiente para que o cheiro sirva de convite aos vizinhos mais próximos. Será que dessa vez quando meus dedos pousarem a xícara no pires e atravessarem a mesa encontrarão uma mão amiga que os enlace? Queria uma vez apenas, no caminho até a pia, pisar em um brinquedo que apite debaixo dos meus pés, e que o dono do brinquedo sorrisse da mesma forma que eu, quiçá tivesse os meus olhos e o cabelo de um homem que estivesse sentado na sala. E que este homem, por trás de sua placidez, estivesse inventando mais uma forma de me surpreender.

Ainda não aprendi de que natureza ácida são feitas essas bodas que hoje comemoro em silêncio com a solidão. Essas núpcias que não produziram no meu ventre as raízes do meu prolongamento neste mundo. Não me trouxe paz nem mansos amanheceres. Ainda espero aquele que batia palmas na porta e que, pela envergadura do meu abraço, descobria se eu estava alegre ou triste. Aquele que protegia meu sono com as frases de bravura de guerreiros ancestrais.

Uma vez apenas queria acordos com o tempo, que não fossem só o insistente eternizar-se ou desaparecer. Queria uma vez apenas repetir os mesmos rituais de entrega de meus avós e pais. Queria, como meus vizinhos, ter alguém que perguntasse como foi meu dia. Tenho certeza que, se me inscrevesse nessa tradição ao mesmo tempo lateral e vertical, seria feliz por pertencimento. Uma vez apenas queria aquele assomo de amor próprio de uma adolescência desejada e invejada por secundaristas. Queria esse carinho interior imenso, sem a necessidade de avistar uma outra margem, como esses rios da cidade onde moro. WDC

domingo, 27 de dezembro de 2009

No verde do mar dos olhos dela

No verde do mar dos olhos dela encontrei novamente os meus abismos. E me soltei no tempo, nas profundezas do que me define amiúde. É a loucura de estar sempre a procurar as fontes, as verdades, os adjetivos para formular versos e espirais. Um dia apenas, apenas o estar por perto. O casual encontro de amigos e aquela presença transpondo-se em deslumbre e distância, como fosse tão de longe a beleza que emanava dela. O suficiente para engendrar planícies em minhas linhas. O soar desconexo das letras aninhando-se para saudá-la, sabendo não ser comum aquela cor no olhar de alguém. Nunca soube que eu estivera no mesmo ambiente, cuidando que estava de tantas fomes. E o melhor de tudo, foi que pude visitá-la nesta distância aceitável, porém difícil, de não conhecê-la. Enquanto todos esperavam saciar-se, ela desfilava intocável por entre as mesas, dando bons dias, aceitando o soldo do trabalho, conversando com amigos, dando ordens graciosamente. Chegou sua companhia, uns dizeres animados, nenhum olhar percorreu meu espaço. Pude continuar na ausência. A primeira dessas linhas surgiu ali mesmo, paralisado que eu estava no verde daquele seu mar. Seu telefone toca, um puxar no canto da boca, a voz reduz, parecia alegre. E que agonia de querer saber quem lhe arrancava os sorrisos. Sugeri que ela fosse um de nossos retratos e supus a timidez da luz ao encontrar os olhos dela. Talvez fugisse – luz envergonhada. Talvez se tornasse um pequeno eclipse o flash da máquina. Seu retrato ficaria bem em minha parede, assim como sua existência fica bem em qualquer lugar. Ainda me encontro no verde de seus olhos enquanto escrevo. Ainda sinto o cheiro de sua existência em todo lugar. E isso, simplesmente, faz os dias serem mais acessíveis, mais ricos e suaves. Quando sinto falta de águas claras e de um susto que me hipnotize, penso naqueles olhos com suas imensas ondas a me molhar, trazendo-me o sal para a pele, o vento para afastar tristezas, a beleza, a distância e a suavidade de quem existe para encantar. J.M.N

[...]

Só o contrário disso se torna tão avassalador. Tão intensamente impróprio às normalidades cotidianas. Quando nenhum domingo se encarrega de aquietar o turbilhão de lembranças, as mágoas das asperezas trocadas quando o que se queria era deitar e dormir sossegado. O amargo do café da manhã toma formas impensáveis e tudo que é diminuto e sem peso ganha ares de catástrofe. Isso acontece quando estamos longe do grande amor. Ponto final. J.M.N

Outra menssagem perdida

Ontem me peguei passando pela portaria do teu prédio, apenas para sentir que meus caminhos mais adorados ainda existem. Não tem graça. A cidade fica triste. As madrugadas então... Volta logo. Acaba com esse mês indevido. Senta comigo e diz que me precisas como antes... Como nunca... Como jamais... J.M.N

Uma menssagem esquecida

Não vejo as horas como de costume. Como já te disse parece que, longe de ti, as coisas ganham densidades improváveis, duplicam, matam a razão. Nunca a espera foi tão longa, nem os dias tão obsoletos. Quero estar contigo a toda hora. Criando coisas, risadas, lugares comuns e incomuns... Estar. J.M.N

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O protocolo do distante (ou a faculdade de esquecer-se pelo caminho)

“Restos de pessoas saindo delas mesmas
aos tropeços, aos esgotos […]”

Manoel de Barros - Gramática expositiva do chão, p. 40.

Tempos depois ele se descobre no mesmo ponto em que se entregou. É noite, o calor é o mesmo. Nada de frágil, apenas um ardor na euforia. As pessoas sãs de sua vida em hospitais vendo seus corpos mentirem virtudes. E ele encostado na mesma árvore. Brincando com o tal aparelho da mesma triste maneira. Decidindo se entregava os pontos ou se despedia para sempre. Fechava o ciclo. As letras dela ainda pairando sobre sua casa de vento. Ruídos se encostam nele e fingem brincar de razão. A fuga dos pios e latidos o estremece. De repente, a volta se completa. Seu organismo animalizado naquele instante, implode. Ouviu que sonhar é despertar-se para dentro. Ouviu mais, que a tintura que cobre a noite é apenas a resultante das manhãs não usadas e que os olhos mentem a cor do luar, constantemente. Desesperou-se por um instante. Teve comportamento de finitude sua pupila. Encontrou-se no cisco. Diminuto e recolhido em coisas que apenas incomodam. Chega dava áspero em seus beijos. Chega trituravam-se as vaidades de suas roupas. Mas a razão dos loucos o resgatou. E ele premiu os botões. Manteve-se em segredo, todavia. Amputado deste mundo, num passado irrestrito e claudicante. Atirou-se das culpas. Mostrou-se todo para as incertezas e fez um vento forte neste instante. Foi reconhecido pelos astros e tropeçou na desesperança por um segundo, mas seguiu em frente. Contentou-se em mostrar-se sem seu nome. Um toque apenas… testou-se. Mas decidiu-se por dois. Não houve eco, não ouve universos partilhando a nova noite no lugar de novo. Não houve respostas e verbos para sangues. Por Deus, não houve a admirável estrela do encontro. Mas riu-se assim mesmo. Primeiro de si. Depois por sua condição de homem. Riu-se do mar de sentidos desencontrados, da figura que nunca lhe sai das costelas e calabouços obscuros dos fatos diários. Morreu um pouco. Mas só o suficiente para sentir saudade de si mesmo e optou por concluir sorrindo que ela jamais fazia trégua. Era afeita aos combates de morte. E o dia amanheceu num de seus suspiros e seus passos andaram mais rápido que suas incertezas. Lembrou-se que ela existia em sua lousa, como um rabisco por finalizar. Na explicação de seus desatinos, na imagem do filme antigo. Lembrou-se que ela era mais coisa dele do que um ser propriamente dito. J.M.N.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Enquanto o sol não vem

Lá fora a chuva cai e deflagra aqueles sentidos esquecidos – tranqüilidade e adensamento. Algum conflito, necessário confessar. Sinto o espírito quieto, mas atento e quase posso ouvir a algaravia dos meus porquês. Acompanho as gotas dilacerando-se no caminho à calha da janela. Existe algo de muito próximo nesse movimento. Como uma encenação do que me aconteceu. A água chega tão forte ao vidro e logo se recoloca, perde a força e se torna um filete sem rumo, a cair pelo efeito da gravidade e sumir, algumas vezes, antes mesmo de chegar ao fim. De repente alguém bate à porta. Tenta entrar. A porta está trancada. Levo alguns segundos para entender onde estou. O trabalho me consome (ou seria o vício?). Corro para abrir. A funcionária esquálida me entrega um monte de papéis e diz que estão todos esperando por mim na presidência. Digo que já vou. Ao sentar, encontro coisas rabiscadas no bloco de rascunho. Uma nota me chama atenção: retornar, desfazer a impressão de que deixei de querê-la. É possível escutar o mar em conchas? A chuva continua. Penso na reunião. Risco a nota encontrada e escrevo ao lado: preciso escolher melhor os dias de chuva, de modo que não seja tão triste essa chuva em meu coração. E como se isso fosse um poder meu, saio convicto para o andar de baixo. Ninguém imagina o que se passa entre meus olhos e a existência diminuta de gotas de chuva morrendo na janela. J.M.N

Belém, 23 de dezembro de 2009 - 15:39

domingo, 20 de dezembro de 2009

Estudos em prosa e sentimentos I

Eu amo a tudo o que me deixou. Todas as pessoas, todos os cães e jasmineiros. Amo as palavras que me percorrem e o erro de seus caminhos. Amo decerto a letra morta, os que vieram antes de mim por este caminho de descortinar-se através do verbo. Amo os sons e objetos de meus quereres e suas sombras. As mais valiosas relíquias das perdas e dos naufrágios. Amo as exéquias de meus ancestrais e as inaugurais filantropias que herdei. Amo o barroco, as filigranas e a fé, ciência mais que humana. Amo Borges e seus radicais limites. Amo Bogart e seus três whiskys a mais. Amo Cardinale e Martina. Em meio à sesta da tarde, amo as avencas, as imagens que me ocupam o longo espaço do que sou. Amo estar, ser, produzir. Amo, ademais, o que não era para amar e neste reino antiqüíssimo e distante, encontro razão nos dias, horas que passam sem sequer notar. J.M.N

Ela me vem quando a chuva cai

Nem cedo nem tarde. À hora dos ventos. Quando se anuncia o dilúvio e as janelas se fecham, as casas e apartamentos vão engolindo as pessoas, as garagens vão tragando os carros e só os necessitados, os imprudentes ou os loucos de amor mergulham em seu tecido híbrido – água, raízes e a maré do tempo. Só quando tudo está espesso e líquido e as coisas ganham os matizes translúcidos é que ela me surge. E vem com cheiro de asfalto molhando. Com os humores da terra dos pequenos cantos da cidade que resistem à nossa ocupação. Ela vem desajeitada e contente, sempre no sorriso que me desmonta. Justamente quando a pele das ruas e das calçadas se renova escorrendo seus dejetos e pegadas, ela surge em minhas tentativas de sanidade. A água da chuva lavando tudo é como aquele primeiro despertar sem culpas que tivemos. Irretocável. Insubstituível. Quando cai a chuva me ocupo daquela mulher sem presságios ou derrotas, sem diásporas ou multidões. Acerco-me de seus olhos, de sua ruptura com este mundo, de sua tragédia pessoal e imposturas. Ocupo-me de seu desterro, de suas cicatrizes. Ao longo dos fios líquidos eu penduro minha desistência, teço minha fábula sobre o que fomos e reformulo a química de meus lamentos. Quando a chuva cai, ela me vem desnuda e serena, nítida e impossível. Agravada por minhas sinestesias mais antigas, transportando meu evento de existir para um útero ou uma escolha, para entre o sim e o não, o pecado e o perdão. Quando a chuva cai, abro os braços e espero que sua presença me encharque e violente, até me sentir banhado e renascido. J.M.N

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Estranho eu

Quem é ele que parece não me dizer respeito? Que anda há meses espreitando minhas fraquezas, minhas arritmias? Não sei se cabe perguntar. Não sei se o que ele traz é algo já escolhido pelos meus desenhos e resenhas. Algo tão íntimo que já se sustenta sozinho e procura uma porta por onde passar, por onde se dar ao mundo. Quem é ele que freqüenta as mesmas razões suicidas que eu, que se aflige da mesma ferida maneira quando confrontado pelas impossibilidades do querer? De onde vem essa insistência hercúlea, essa dinâmica atormentada e atraente? Ontem diante da insônia confessei e se ele quiser saber, direi que já não era sem tempo. Já me havia chegado ao cúmulo esse incômodo, esses lampejos. Não sei quem é. Não sei se devia falar e ousar esses horizontes na sua presença. Quando voltei do exílio auto infligido e dormente, vi que me era proibido o salto sem aparatos de segurança – bastava de quedas. Não pude ir a passos largos atrás daquilo que deixei. E o que mais me supera agora, o que mais me constrange é que pressentia sua presença e estranheza. Quando voltei a mim, depois de tanto me abandonar, foi ele quem primeiro encontrei. Um ser montando guarda, esperando para dar um recado, para esclarecer as cartas deixadas, os dias sem trégua deste circo sem futuro, daquele amor apoteótico e estrangeiro. Foi ele quem abriu as portas de minha casa. Foi ele, ao fim de tudo, quem aparou minha primeira lágrima de reencontro. J.M.N

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Caminho anoitecido

"Quando partiu olhou o porto e atestou
delícias. Estava vivo. Estava indo.
A partida lhe deu o caminho.
Não se sentia mais um vencido.
E este foi apenas o começo."

O Oráculo do Grão - Texto XLVIII

Assustado e esquivo. Um ruminante dos poderes do corpo e dos sentidos. Caminhante das ruas onde acabam os caminhos, onde se põem placas que nada indicam, nada alertam. Descobriu sozinho que passar por sobre as pontes é um endividamento eterno. O que mais impressionou seus olhos foi a gota explodida na folha caída. Era afeito ao minúsculo, ao firmamento do ínfimo. Sentia tudo como um tocar de peles ou despertar de cravos. Dobrava esquinas de olhos fechados e confiava. Tudo estava tão dentro dele que não precisa carregar bagagem e se perguntava sobre a necessidade das lembranças. Dormiu em casas de estranhos. Cuidava de sempre arrumar a cama para que recebessem outros necessitados. Sua cor preferida era sangue. Ouvia o ruído celular gastando suas energias. Capturava penínsulas na boca dos outros. Confundiu beijos com andorinhas e fez versos para os circos e seus trapézios. Discute a liberdade no cume dos abismos. Aberto e acontecido como o passado. Deixa apenas o sabor do vento aliciar seu tato e o retrato dela, no balcão do hotel, consumir toda a distância, todo o ermo do caminho anoitecido. J.M.N

Excertos Terapêuticos XIX

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. […]

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água. […]

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."

João Cabral de Melo Neto - Os três mal-amados (fala de Joaquim) - Obras Completas, 1994.

Para ler no fim de dezembro

Inspirado na música Famous Blue Raincoat, Leonard Cohen
E na vida, como um todo.

O relógio marca uma hora da manhã. Resolvi te escrever uma carta e publicá-la. Quase fins de Dezembro. Um ano acumulado de argumentos e descobertas. Antecipado em desastres e alguns tipos de registro que preferia nunca ter feito. Queria te perguntar se aceitas ser minha mulher e estrear as qualidades que guardei de mim mesmo durante anos. Trago a rosa que pediste, as promessas que ensejamos. Vejo que não te exaltas e eu ainda tenho estas coisas avariadas em minhas gavetas. Como brinquedos destruídos pela curiosidade infantil e inconseqüente. O mais que gostaria de dizer é que tinha vontade de te matar. Que te chamava de minha na mesma intensidade que me entreguei e fui teu. Mas fizeste meus inimigos virem à tona e revelaste o que podia ter de pior em minhas entranhas. Finalmente os perversos se mostraram. E estavam tão perto de mim que foi impressionante eu nunca os ter visto. Acho que posso te perdoar. Disseste tantas coisas sem futuro e eu tantas mentiras sobre meus atos que nos tornamos inviáveis. Incríveis mistérios. Acrobatas das razões de seguir em frente, de construir os antigos refúgios em braços amigos, os corpos mutáveis. Sinto que vives por nada agora. E lembro repetidas vezes de como nossa história era como uma espécie de entalhe em pedra. Deveria ser descoberta por arqueólogos eras adiante. A última vez que te vi parecias tão inteira e composta que me senti violentado e tive vontade de entrar lá e ocupar tua boca como fazia. Ao te ver distante e calada, senti um frio miúdo que se gera no medo do esquecimento e te mandei saudações e pedi em silêncio que reconsiderasses teus passos. O que posso dizer agora que o frio da solidão me encontra dormindo? Escrevo por que ainda tenho contas a ajustar, mais comigo do que contigo. Pode ser por nossa história, pode ser por tuas lendas. Escrevo para agradecer a lembrança de que eu ainda estava vivo, de que eu ainda era capaz de amar como se fosse o último dia de minha existência. E se isso não bastar, tenho ainda azaléias e poemas, prontos para dissolver os prantos, infinitos, feito nossa entrega de ontem.

Sinceramente,

J.Mattos

 

Para ler escutando...

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Bem amado

O que tenho de ti dissolve meus lamentos, desdobra meus segredos, inventa as minhas eras. Recompõem meus genes à medida que desaprova minhas prudências. O que sobrou de ti em meu corpo nutre o apreço da primavera por minhas janelas e preguiça, acalanta minhas metades deixadas em prateleiras, invade os desertos mais distantes e sobrevive. O que me negaste com fala tão dura reveste o abraço do olhar, a descoberta daqueles caminhos, inventa abrigos onde eu não posso ficar. O que carregas de mim não é sobra, não é vento, pérola talvez em redoma de vidro. E te engoli afoito e sincero deixando de lado ordens médicas e outros avisos. O que depositaste em mim nenhum exame acusa, nenhuma entranha delata, nenhum abraço ou beijo ou furor executa. Estás em minha penteadeira, na solução com que limpo as narinas, no remédio para as ânsias e medos, em minha carteira de motorista. E vens e vais como dona, como a figura que os pintores todos buscam. Tua existência conflitou o menino ruído, o frasco de lágrimas e tormentos negados ou escondidos. Tua existência aparou meus cabelos, cuidou de feridas e abriu outras mais. Enquanto morriam os peixes no aquário imaginado, em nossa sala ampla e com lugares para a entrega, enquanto o verde da grama se nos ensejava esperanças mornas e bandidas, estive inteiro, encravado nesta vida, à deriva, mas tão tranqüilo. O que deixaste em mim veio e comeu minhas linhas e me deixou estes excertos, nunca mais amedrontados ou senis. O que deixaste neste corpo que se desgoverna agora bebeu a água de meus olhos, desvencilhou-me das memórias mais brutais e sozinhas, abriu espaço para outras formas de ver o mundo. É como o oposto de minha fúria. É como um fogo sem controle. É um tempo adiantado em sentidos, saudade e amores de manhã cedo. J.M.N

Palavras de Ontem

Sou grato à brutalidade desta escrita

por me deixar preso ao nó da gravata,

bordejado entre o enforcamento e o sustento.

Se não me mato ou surto

é porque assumo esse desatino de entranhas,

a estranha ostra do avesso que se consome e se engendra.

 

Se perco tempo em demasia

a procurar todos os sentidos da palavra caco,

é pra que num mosaico se organize

o que não é mais inteiriço

desde que partistes.

 

No mastigar sempiterno

destas palavras de ontem,

reconheço as mãos que levantam os esteios

[das manhãs de segunda-feira,

são as mesmas que afundam os dedos

nos pêlos tensos de um lobo insone.

WDC

domingo, 13 de dezembro de 2009

Notas de rodapé #6

Incluo neste capítulo, o frêmito de há poucos meses. A fúria desconcertante. Tantas coisas feitas para que eu me envergonhasse e depois entregasse o ouro feito um mendigo. Um desapropriado e mim. Bons os ventos que colocam estas coisas nas linhas nascidas de bem aventuranças e tempo. J.M.N

Alarde

Agora ela se acostumou com a ausência. Vive cáustica e ousadamente no interstício do vento. Ao suspirar, rouba afetos dos demais como que por ofensa, rudez. Detida, ávida e insistentemente. Ignora as vistas espetaculares, os prognósticos de dor. Sentenciou algures que o som que ele emitia assemelhava-se ao de um velho lobo doente. Intrigante personagem aquela mulher. Numa semana estava deserta, acometida de solidão. Amena, fugidia e desimportante para os demais. Noutra semana despontou esquisita, universal, como os mitos de outros tempos. Seus argumentos e trejeitos enganaram aos mártires, aos desumanos e olha que só aponta suas verdades depois de olhar-se no espelho, em busca de verdades. Impressionante a sua presença. Mesmo aviltante, conseguiu muitas fugas depois de seus beijos e deixou um cheiro de eternidade que varreu a cidade das brigas e dos despejos por brigas de amor. Há que se ter cuidado com aqueles humores. Há que se ter cuidado com o que nos vai por dentro. J.M.N

Em resposta ao que eu não disse

O silêncio existe e procria. Falsa a esperança que se desespera, inalcançável. Duas coisas que são tão impossíveis. O restaurante sem cheiro. O piso estalando sob meus paços. Inseguro e com fome de dias caminho por toda a cidade perguntando por ela. Apareceu-me, mas era uma miragem. Um devaneio no calor sem requintes de minha casa. A massa percebe que me distancio. O banquete começa. Não tenho o poder dos tolos. Aquele que nasce por não saberem. É constrangedor o fato de eu ter perguntado. Mais ainda esta sensação de pudor em tudo o que faço. Não sou assim, não caibo. Morre noutra parte um sentimento. De certo não aquele por que me esforço. Ao tempo entrego cartas e retratos e memórias. Apago as luzes, deixo meu rastro. Ando por cima do que foi nosso. Se eu canto as serenatas para as moças e senhoras é para não sucumbir ao que temo. O único e maior dos medos. Que nós não tenhamos passado de promessa e assassinato. J.M.N

Das lembranças que me devoram

Ouço as gotas que caem numa pia, em algum canto da casa. O único som que preenche o ambiente. Por fora em letras a forma frágil da obra de arte, a cadeia dos sentimentos de ainda há pouco. Vejo a lua nascendo e indo embora por uma pequena janela nesse meu estado – cárcere. Obrigo-me a idéias de soltura. Rasgo o poema antigo. Não era bom o suficiente. Mais um gosto nascendo acre em minha boca. Mais uma gota explodindo no fundo de algum lugar em mim. Lembro dela a perguntar sempre. Querendo saber de eternidades e tratamentos de beleza. Lembro dela andando na chuva, provavelmente. Lavando-se do que disse sentir nojo. Uma perda. Perda de si. Quando escapei não fui a Praga ou Bolonha. Fui direto para a copa de uma macieira. Esperando os evangelhos me salvarem. Esperando a boa nota da canção feita para ela. Sempre ela. Vaga a visão que tenho daqueles dias. Dias de ontem e sempre. Dias em que fui mais guia do que mensageiro. Dias em que a razão abandonou completamente a minha derme. J.M.N

Reconhecido

De volta a realidade. A vida engrena novamente. Já não estou com a responsabilidade de cuidar. De olhar os detalhes do dia para saber se eles estão bem, ou se as coisas que conversamos foram demasiado duras para provocar mudanças positivas em vez de fortes sentimentos de culpa e frustração. A menina triste que se encanta com sua descoberta. O cara mau que de repente derrama um choro represado de anos e põe-se a dizer que precisa de alguém. As pessoas vindo até mim, dizendo que fiz um bom trabalho. Conseguia dormir em paz? Ou era apenas o cansaço esparramado na cama? Que outras coisas eu ouvi naqueles dias que ainda não me chegaram à razão? De todos os olhos senti gratidão. Em todas as bocas um leve frescor de conhecimento e reconhecimento. Nas despedidas, os pedidos de voltar, as solicitações de encontros particulares. Estive longamente envolvido em minhas próprias coisas hoje. Dormi e acordei uma dúzia de vezes e em cada uma delas havia razão de encontrar a luz. Em cada reencontro meu com a vigília, lá estava um daqueles rostos contentes, acenando para mim o meu lugar nessa engrenagem. J.M.N

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Um passo além do amanhecer

Inspirado na música, Until the morning comes, Tindersticks.

Não, eu não a matei. E não há nenhuma glória nisso. Como não haveria no assassínio. Apenas uma constatação. Tive tantas chances que chega a ser ridículo pensar em covardia. Seria apenas fácil demais. Ao contrário de acabar com sua vida, pedi que me amasse, que cuidasse de mim. Pedi para que ela me acordasse daquele sonho constante, para que eu pudesse acreditar finalmente no que me acontecia ao redor. Foi o que eu pedi. Foi o que ela fez. Fique em silêncio, deixe-me segurá-la, até a manhã chegar. Minha doação foi necessária. Apenas até a manhã chegar. De tantas maneiras ela me despertou e me chamou atenção para o furor de escravo que eu cultivava. Algo acorde com as vontades de um preso em cárcere eterno. Uma vontade de redenção, mas sem trabalho. Ela me livrou da antiga obrigação de me desculpar por tudo. De insistir nos pedidos de atenção. Ela me serviu de bandeja aos meus demônios. Aos inimigos inomináveis que se disfarçavam em minhas figuras públicas. Ela me devolveu o bloco de papel onde eu escrevi pela primeira vez sobre o amor. Não a matei porque ela tinha de sobreviver a mim, a nós. Ela tinha de contar uma outra versão da história. Eu fui uma sua criatura. Me fiz em seus braços, muito mais do que nos braços de qualquer outra. A única crueldade da qual não abri mão foi de deixá-la saber que em tudo há um preço. (Se eu a matasse, ninguém saberia, ademais). Que por detrás de toda fuga existe alguém que fica sem respostas, para sempre. Ela me salvou de minhas sabotagens, de meu ímpeto sem prudência. Não importa que não acredite, que me deteste com todos os seus músculos e nervos. Não importa que ela grite que sua profissão é esquecer. Ela me salvou de ser muitos personagens sem um criador, o pesadelo dos incógnitos, daqueles que passam a vida à margem da luz. Sem ela eu não comeria o fruto. Eu não partiria com Aquiles. Sem ela eu jamais seria meu novamente. J.M.N

Para ler escutando...

sábado, 5 de dezembro de 2009

Refazendo

Hoje ele cuida mais de si. Jamais sai de casa sem olhar pela janela e sentir a correria de fora. Confirma que já não é a mesma de seu dentro. Chama-lhe atenção o que os outros dizem e fazem nas esquinas por todo canto da cidade. Os homens nos canteiros de obras. As obras mesmas a redesenhar a cidade. Cachorros ladrando para a chuva insistente. Novos olhos nos lugares que costuma freqüentar. A leitura continua aflita e insistente e a pena trabalha em dobro, sem buscar realizar-se. Deita-se por ai, em colos emprestados. Ninhos momentâneos para aquelas coisas que acontecem apenas uma vez ou duas. Assim seja. Ainda sente pena de não ter dito certos segredos. De não ter usado a circunstância para aprender a lidar com suas impossibilidades. Mas já sabe se perdoar. Em todo ato um cuidado. Em toda escuta uma gaivota e a casca da lua em alba contingência a descortinar os caminhos da noite. Miriápodes se aproximam. Faz poesia nos confins da terra fazendo-a respirar. Come os suplementos de alma desconhecidos e finge. Finge ser o que já foi. Coloca-se no lugar daquele que se foi e que sorria mais, entregava mais e se banhava livremente no amor de outrem. Hoje se entristece por um dia e engendra outro para compor uma sinfonia de imprecisos equilíbrios. Sempre mutável. Não precisa de tantas certezas, nem pretende saber de tudo. Desta criança o tempo cuida com mãos de pano e travesseiros. Usa o verbo como uma vulva ou uma oração. Comunica-se engravidando a si mesmo com a voz. Arranha a ostra das pessoas. Têm inclinação para esfínges derrotadas, as suas vontades mais terríveis. E só pelo tato esse homem descobre se as tais fantasias são desejáveis. J.M.N

Noah and the Whale – The First Day of Spring

It's the first day of spring
And my life is starting over again
The trees grow, the river flows
And its water will wash away my sins
For I do believe that everyone has one chance
To fuck up their lives
But like a cut down tree, I will rise again
And I'll be bigger and stronger than ever before

Versos são areia. Moldam-se perfeitamente à palma da mão de quem os apanha, mas o tempo suficiente para escorrerem para outra palma, ou para o vento, ou para o fogo. Ainda não sabia disso quando dei esse álbum pra um amigo. À meia luz de seu escritório vi muito claro esse desejo, esse direito de recomeçar o qual todos devemos nos permitir. O mais engraçado é que no disco anterior, essa banda iluminada já cantava, numa cadência ao mesmo tempo despreocupada e feroz, And if there’s any love in me / don’t let it grow / and if there’s any love in me / don’t let it show. Mais uma vez tudo fazia sentido.

Passo, tardiamente, a fazer um rol dos álbuns que mais animaram esse ouvido cansado. Tinha que começar pelo Noah and the whale – que o Neto já havia feito o comentário aqui, inclusive me chamando a atenção para a preguiça que me assaltava.

British Indie folk, esse é rótulo que a Wikipédia coloca neles. É inquestionável que eles são britânicos. Entretanto esse rótulo não nos deixa ver a relação de intimidade com a natureza que, diga-se de passagem, sempre é usada como metáfora de uma tristeza sutil. As letras são povoadas por imagens de rios, passeios, caminhos e estações. Todas essas paisagens parecem nos impregnar pelos olhos, como uma praia vazia sob o sol de julho. Há sofrimento, há solidão, saudade e desencanto, mas tudo sem desespero.

Nesse álbum, talvez até mais que no anterior Peaceful, the World Lays Me Down, os instrumentos e os arranjos são absolutamente servis aos sentimentos. Como os sentimentos são vividos todos sem urgências, o disco é quase todo calmo, com exceção de Love of an Orchestra, opereta na qual um coro dá a exata dimensão das intenções dos versos I'm carrying all the love of an orchestra/gimme the love of an orchestra.

Tudo termina em lições de desprendimento e esperança. De feridas entradas em processo de cicatrização. Ou como diz minha mãe: agora que tirou o carnegão, melhora rapidinho. A redenção vem suave no verdadeiro achado que é a voz de Charlie Fink. Acompanhado apenas de um violão e uma guitarra steel ele canta numa alegria de alívio e liberdade, típica de um sobrevivente:

Yeah I love with my heart and I hold it in my hands,
but you know, my heart’s not yours.

Que assim seja, pra todos nós.

Excertos Terapêuticos XVIII

"Quando entramos no quarto e começamos a tirar a roupa, ela me perguntou se tinha alguma coisa especial que eu gostaria que ela fizesse. Eu disse: tem, sim, quero que você me faça esquecer uma mulher."

Marçal Aquino - Sete epitáfios para uma dama branca (O amor e outros objetos ponteagudos)

Retomada

Sinto que retornas. Aos poucos te assenhoras de minhas tarefas diárias. Existe uma cumplicidade inconsciente com tua vontade. Sinto às vezes que não me pertenço, tamanho envolvimento com tua satisfação. É substancial o que vejo se estendendo a ti. Não obstante meus avisos de pare. Indiferente a tudo o que já sei. J.M.N

a Saber

A primazia do encontro é que me enfada. Não há outro rumo possível. Destreza nenhuma recupera o norte diante dos afetos, dos arroubos e insultos de paixão. E atirados de peito aberto, andamos. Serão as nossas, direções fadadas ao encontro perpétuo? J.M.N

I.

Escrevi esse texto em 1992 e o fui modificando ao longo dos anos.
Esperava poder incluí-lo num livro, dia qualquer. O livro está pronto.
Esperando a coragem para publicá-lo. O texto não entrou.
Senti vontade de dá-lo ao mundo. Diz muito de tanta coisa vivida
e se repete como uma estilística de existência, tantos anos depois.

Precisava como nunca do teu vulto, do teu beijo, tudo teu. Mas na hora certa não estavas. Nem como fala, nem como eco. Enfadado e um tanto negro chorei. Precisava como sempre de um cigarro, mas eu não fumo. Não importa, sinto náuseas e nem sequer estou vivo! Rascunho um dizer imoral e assim, dispenso minhas vestes e assinalo minha dor. Teu sorriso não me sai da boca. Rumino abobalhado teu riso de mundo, mudo feito um frade refletindo, cabeça baixa diante do altar. Num segundo impreciso me agride tua forma incomum, tua aparição, feito um clarão de bromélias amarelo-sol. E eu solando feito um piano triste numa noite em que não te tenho mais. Como se canta em francês a dor bilíngüe minha e tua? E, senão for bruma, o que mais condensa no espaço? Há uma gota de alarde nisso tudo. E quanto ao que condensa? Condeno ao esquecimento todo o cristal de choro que caiu de mim trajando uma fé tardia. Fé de menino encantado com o pecado. Ai de mim que te precisava o quanto antes, com urgência divina. Compulsivo te quis infame, fria, sigilosa – arcaica mentira da existência. Te quis e quero feito dança que não sei, mas tem por ai, cuja pureza é feita no arfar da espera. Espera que ainda tenho o que te contar. Espera que nessa hora cabe em mim Tordesilhas, pois sou muitos, divido à revelia, e nem sei a quem pertenço. Sei que sinto. Como ousas um silêncio de rima? Como aglutinas minhas células às tuas? Como envergonhas a lua com tua presença? É capricho. Deixa disso e vem desnuda, com carne e pele de dia, aturdia de silêncio e nervura. Venha a mim mesmo dura, festa incerta, arlequim. Venha em valsas vienenses atrás da última aurora. Seja cálida, indigesta, seja estúpida e faça raiva como trevas – absurda. Por mais que vás e fratures minha coluna, imobilizando meus movimentos, ansiarei mil dias por tua reticente alegria. Mais ainda, num pequeno ato de amor costurarei o que vestes, pois sei que quando voltares, te surpreenderei rasgada e com a boca fingida. E com ungüentos e choros, com quantos encantamentos, te recomporei da vertigem e resgatarei tua forma de gente. Se não, na feliz explosão do encontro, te chamarei simplesmente de meu amor. (Cantídio)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Os Ecos da Lapa

"Seus pios enramados
de muito se sonhar
Vêm ferir sobre mim"

Manoel de Barros - Noções sobre João-Ferreiro
Para a Clara, a Lala e o Tom, cujas vozes sararam as feridas do dia.

Meu ânimo às vezes mói a carne, faz sujeira. Ultrapassa os limites. Engana as receitas médicas, trapaceia em ressonâncias. Acho que morrerei de engano, ninguém saberá dizer. Mas hoje não! Não nessa noite memorável em que cheguei em casa com o mais fundo dos desejos, com a mais rouca das saudades. Velando as lombadas dos meus livros preferidos e esperando me transportar, como numa mágica, para entre os arcos da Lapa. Foi de lá que me veio um sopro transformador. Uma revelação. Na voz de quem eu jamais esperaria. Declarando saudades que eu demorei alguns segundos para compreender que sim, eram minhas também. Um desfalque de razão, neste preciso momento. Mais um, aliás. E depois foram elas e descortinar minhas vontades de ser de alguém. Sem saber, eternizaram cinco minutos de um dia cheio de trabalho e dúvidas, rudeza e apaixonamento. Uma me contou a impressão de que a cena esdrúxula era cabível. E mais, lembrara de mim. Depois foi a vez da dona da voz. Parte integrante desta minha ontologia de raiz tapajônica. Diz que quer escrever nossos símbolos na pele. Faremos isso. Meu ânimo, às vezes, me destrói. Mas hoje não. Hoje eu tenho o riso e o pleno sentido de que pertenço. Hoje eu ouvi as suas vozes e suas vozes couberam em mim de ponta a ponta. Completando o mais sem jeito dos meus fins, o mais arriscado dos meus intentos. Emprestando seus tatos para minha caça aos ventos velozes da existência. J.M.N

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Sobre quedas e silêncios

Disse que lera nos livros serem as mulheres diabos disfarçados [...]; elas desgraçavam, arruinavam, sufocavam, escravizavam com feitiços, eram más e interesseiras, por elas se faziam as guerras [...]. Traíam e levavam a alma do homem ao inferno. Mas nada havia de tão doce quanto essa tirania.

(Ana Miranda – Boca do Inferno)

Uma mulher tem me tirado o sono. Não se trata de uma vizinha barulhenta. Antes fosse. Esta que não me deixa em paz é silenciosa e está a quilômetros. Ri quando deve falar o que importa, cala quando as palavras começam a vir aos borbotões. Me afaga às vezes, me abandona muito mais. Me faz cair a pior das quedas, aquela que não encontra o chão. Nessa sua marcha ébria, ela dá um passo pra frente e dois pra trás e avança senão sobre mim. Abre picadas no selvagem que ainda sou. Dia desses, vasculhando a minha urbanidade, ela achou aquele campinho de areia onde fui feliz depois de driblar o Colega, o Quebrado, o Abuti e fazer um gol memorável. A minha biografia vai sendo descascada e fixada em quadros de scrap e litanias solitárias. Assim ela vai me descobrindo, sem despir-se, sem despojar-se. Também sem descanso vou me cegando em uma devoção sem trégua. Há dias que não faço a barba ou corto as unhas, há tempos que não sou mais meu. WDC

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Comemoração

Ela chega. A um minuto do fim diz as coisas mais horrendas: vou sair para ver o sol, tua vergonha me cansa. Inusitadamente um beijo apaixonado. Depois o vaso estilhaçado sobre a cabeça dele. Desculpe, não sei me controlar muito bem. Tudo bem eu entendo, foi o que ele disse. Ela se foi. Voltou meia hora depois gritando coisas incompreensíveis. Outro beijo apaixonado. Um soco que o deixou atordoado. Em vinte minutos vou sair da tua vida para sempre, esquartejá-la. Vou te deixar mais raso que o pátio chão. Já estou lá baby, ele disse limpando o sangue. Seu imprestável. Ai foi a vez dele. Pulou em sua direção e quando estava pronto para destroçar-lhe o rosto, disse com a voz mais terna que podia: hoje fazemos quatro meses, não devíamos estar comerando? J.M.N

As coisas

O edredon, a camisola, tuas roupas esquecidas. Notas de terna escrita para coisas que me farias. O dom, a sorte, os desígnios e a esperança. Todas as palavras de malefício e crença. Outro beijo, tua nuca, a tatuagem que pediste para eu desenhar. Um cheiro de ventre, de semente germinada, de loucura atrevida. Lavoura de epitáfios. Um calor como nunca, um tempo enorme entre ser e estar. As taças não estreadas, estradas não percorridas como deitadas num sol de veludo, tarde triste em que te vi andando para longe. A seda dos beijos, o céu de tua estrutura, um vento de velocidade branda – chamo de brisa. Quantas coisas adernadas, estapafúrdias e por sobre todas as lembranças pólen e orvalho, uma tez de divindade. Escrevo e não sei por que o faço. Saem de mim essas coisas, tamanhos vários. Isoladas ou pertencentes. Aniquiladas ou potentes. Minha pudica e violeta ancestralidade a derramar-se ante teu fogo e estupidez. Uma hora dessas precisarei te chamar em socorro. Espero que precises também. J.M.N