quinta-feira, 25 de junho de 2015

Quando vier

Um dia quando quiseres vem e me toma. Não por apenas uns momentos como tem sido até aqui. Toma-me definitivamente. Leva tudo quanto eu tiver no momento. As roupas, as páginas, as letrinhas perdidas entre meu choro. Quando vieres não faça barulho para não assustar os brincantes. Não, não será uma festa. Será o mundo ele mesmo girando. Será esse rebotalho de guerras e farsas gritando de medo por tudo que todos fazem uns com os outros. Chega como uma pluma para que só o vento da tarde te denuncie e vejamos eu e os demais estúpidos tua chegada leve, teu flutuar tão fino. Quando tomares a decisão de vir passe na borda mundo e cura a tensão do tempo com uma antiga canção sem refrãos. Uma que diga várias verdades e não prometa nada além dos acordes cadentes e íntimos que mudam a ira para o amor e deixam insensatos todos os dedos. Desalinhados. Incorruptíveis. Buscando nada mais que o toque e a sensação de pele nascendo, tornando táctil todo o corpo de uma só vez. Faz esse minuto universal de sentidos. Tirando-me do mundo na mesma proporção em que o mundo se retira e fica em toda a gente. Faz isso por mim. Traz uma guirlanda e os bolinhos de tudo que só minha avó sabia fazer. Pensando bem, vem mais rápido que a luz e a conta dos meus pecados. Já devo a eternidade pra tanta gente que nem compensa descontar as bondades miúdas que eu tenha feito por ai. Vem para que eu possa contar como é existir desde antes de pisar no mundo. Desde que o tema da noite era a escuridão confusa sem leste ou oeste. Eu que juro ter visto a estrela primeira apontar o rumo de tanta gente, que afirmo sem restrições ter criado a felicidade e a ternura. Vem e me leva para contar que de tudo o mais bem vivido, de todas as comidas e cheiros e visões que eu tive nesta e em outras tantas vidas, nenhuma supera em verdade ou emoção a figura de um homem sozinho, fitando as rugas e o sorriso cansado diante do espelho. Sabendo ou não sabendo quem é esse homem fala consigo mesmo e só escuta que está sozinho e internado em si mesmo. Como se o corpo fosse uma cela e o pensamento um mero visitante da razão. Quando vieres quero te contar em primeiro lugar como é ver dentro da gente e descobrir que mesmo não tendo estado em todos os lugares, todos os lugares cabem na gente e que, afinal, o infinito pode ser cada manhã. J.M.N.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Esse tempo que é depois

Hoje é depois de nós. Quem sabe o que vai ser? Uma benesse, uma desgraça. Polainas e memórias espalhadas pelos porta-retratos. Tudo fora de ordem, porque hoje é depois do que fomos. E a bagunça oriunda desse simples fato é como uma guerra recém-acabada no meu coração. Nem presente nem passado. Apenas derrota e sangue em todo lugar. Estamos dentro da garrafa? Ou sou apenas eu me endereçando errado mais uma vez? Tiro por mim o que eu queria que sentisses e nessa, vais conseguindo ser mais tu. Do que eu. O certo é que o dia raia, a morte se achega, as coisas são como são e eu quero tudo de volta. No rastilho do que acendemos. A náusea, a fedentina de nossas brigas. O gozo. O Cuspe. O choro. Por tudo e todos com quem acabamos eu quero a honra de poder dizer mais uma vez o teu poema em voz alta. E acabar cansado e tonto em meio às rimas. Quero a tralha toda que juntamos. Especialmente nós dois. Hoje é mais um dia do que não cometemos. Estamos ilesos? Vai ver que passa. A hora passa. A ferida passa. A passa (uva) é comida e adoça um pouco minha boca com saudades. Mas isso não. É tudo teu. E foste minha. Foi tudo nosso. Confusões. E digo isso passando a escritura do que não tenho. Meu destesouro. Minha arrogância em achar que somaria muito mais pontos se te tornasse o centro do meu universo. Rodavas sobre um eixo que eu não compreendia. E não podia compreender, pois minha astronomia desajeitada te entendia unicamente como estrela. Um corpo celeste, cheio de luz, entrementes desabitado. Mas acontece que uma imensidão de espécies morava em ti. Fui dos últimos, o primeiro. Antes de entrar em colapso. Hoje é depois de nós, eu aviso. Que mesmo deselegante, mesmo tosquiado, depois que me soltarem pelas infrações acumuladas, eu volto. Para te tocar primeiro os seios em manga, as mais rosadas coxas, a densidade macia de teu vértice castanho e ralo. Volto bandido e indigente procurando a cura pro que restou. Depois de nós é o catso! Tudo ainda me acomete. A perfeição da dança naquela chuva de dois dias. Tua rosa tatuada. Andar sob o céu de quatro cidades com teus braços me guiando. Anda tudo muito tramado, diminuto. Quieto feito um quarto sem pessoas ou som. Anda tudo ardendo como as questões que não respondemos e no meio de tudo, meus anos se passando e as linhas acumulando na mesma página. Porque não sou desses de querer de menos e pedir permissão. Vou-me aproximando com essas confissões e cartas. Fincadas na palidez de um dia sem nós dois. Iníquo, anestesiado. Sem nervos fervilhantes ou retesados. Inferno mesmo é não sentir mais dor alguma. J.M.N.

Para ler escutando...