terça-feira, 17 de setembro de 2013

Receita de um suicídio quase

Não estava ligando à ferida. Cuja dor ia e vinha ao longo dos anos. Já era a porção indicativa de minha paciência, a linha de base da história que eu não contava aos outros. E doía. Como o guarda roupas que perdeu as cores dela e se tornou pura madeira de guardar o ar e as misturas de lembrança e antipatia de nossas brigas. Em seus cantos, lugarzinhos de acomodar sua falta. E ela me faltava em todos os mínimos espaços daquele dentro. Dentro de casa.

Não estava mais acostumado a perder as peles. De tanto que meu choro e impertinência tinham embotado a porta da rua da minha inconstância. Estava perdido. Detido em calabouços de entranhas, fotos velhas, arrepios. Abri a janela naquela manhã. Ninguém passava lá embaixo. A rua desejava ser trafegada e acho que isso iniciou meu suicídio. Comecei perdendo o tato. A boca secou e se encheu de gretas. Os olhos não viam; a língua não sabia gosto algum.

Não havia meu semelhante junto de mim. Parti de meu corpo. Debulhado no parapeito da janela. Choro não vinha. Morte, apesar de certo desejo, não era. Algo dava lugar ao novo. Foi o que senti. E era como um fio bem fino e afiado me passando pelas veias, pelos nervos, desligando antigos preceitos, circuitando novíssimos esquemas. E ganhei sinônimos, novo prática para a oferta. Refez-se o centro infante que esperava sempre meus pais voltarem para casa, independente se vinham inteiros ou aos pedaços por causa da vida.

Úmido meu lábio soltou um beijo. Tesos meus músculos me recolheram. A rua começava a correr em dois sentidos. As pessoas e eu mesmo ganhamos densidade, ossos, viramos pessoas em si. Ampliados os sabores na língua, pareceu que o mundo todo me entrava pela boca. A vista limpa e renascida encontrava a beleza do pequeno ninho de sabiás que fizeram do concreto seu útero a céu aberto. Podia ver, enxergar, a pele retornava à minha estrutura.

Alguns disseram que se tratava de um surto psicótico como poucos, outros ainda me benzeram por quebranto, mas um amigo meu me abraçou e pediu a receita. Queria saber como era se perder e se encontrar assim. Eu não sei explicar como se faz. Como se volta de um mergulho desprotegido como aquele. Sei dizer que sou eu novamente. Que voltei. Ou quem sabe, sou simplesmente eu, o que devia ter sido ou ser, finalmente. J.M.N.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Sobre o que nos move

Vim aqui não sei razão. Certo que algo me força, cutuca. Acho. Uma noite como a qual, não ando por ai. Dá frio só de pensar o mover dos dedos.
Mas hoje me deu de fazer isso.
Coração em dois, batendo, chutando. Meu peito é pura pergunta.
- Quando posso deixar que venha? Esse não tenho ao certo que me eleva? Esse nada que ao receber meu grito me viola de tanto silêncio?
Mais não sei. Ou não posso.
Que quando perguntei a mim mesmo, durante o banho de mar dias atrás, eu tive a impressão que podia ser coisa de uma saudade que guardo em muitas gavetas. Por onde vejo, saudade não força a gente cair na rua. E ficar parado. Endereço alheio. A noite forçando uma vida que não é mais nossa.
Mas se não é saudade é pensa.
Ou mais grave – querer.
Alfinete púrpura no centro do que nos ata à nossa história. Que quando se acha estar livre, mais preso se está.
Então eu estou aqui por querer.
- Mas querer de quem e quanto? É o que me pergunto.
De em redor recolho a fina e cheirosa paciência do destino. Perfume de quem se achegou de esperança. E mesmo não sendo o caso, a calma com que um ato íntimo se transforma em feito, tem esse poder inquietante, mas tranquilizador de deixar um bem em vez da dúvida.
No que penso nisso, cessam os chutes, as ínguas.
Sou pleno e solto como antes do desatino.
Estou aqui, aveludando a palavra ontem com presenças.
Vejo aquela que me trouxe, finalmente. E compreendo.
Ela entra certificada de que ninguém a espreita.
Sinto o vilão que me socorre de um mundo reto e sem alegria. Vilão de menor calibre, como vô Capitão que andou nu, cidade adentro, pois foi preso assim banhando-se do rio em frente.
Ela chega a casa sua. Insuspeita. Então entendo.
Estou aqui por um chamado.
Do mesmo silêncio que me grita quando pergunto sobre tristeza, desesperança e finitude. Foi o termo de o destino dizer – viveste! Ei-la prova.
Dou a partida no carro.
Abaixo de mim sua potência mecânica gira o mundo.
De minha vista entusiasmada ela saúda.
Acena, mesmo sem gestos, à minha presença – que desconhece.
Em feliz me visto, rumo ao fim do dia. – Terá mesmo esse meu íntimo levado a ela?
Se sim, deixa-me claro que existo. Se não, fica a memória como prova do havido.
Confio em cada qual com veemência, como alguém que atravessa a cidade durante o frio, apenas para saber o que nos move em segredo. J.M.N.