quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Cartas a ninguém (22.09.15 – 03:51 a.m.)

Querida,

Hoje acordei às duas. No meio da noite. No meio do nada que sabes vir com a solidão noturna. Acordei com a sensação de que tinha ido embora. Não morrido, simplesmente ido. E estava numa cama vazia, num hotel barato talvez. Longe, muito longe do que hoje é a minha vida. E lá, nesse tempo-espaço alhures te encontrei. Queria conversar. Saber se estavas bem antes mesmo de te contar que eu não estou. Queria começar as nossas falas, ao menos uma vez. A luz da lua saboreava meu peito. Via meus batimentos sob o lençol, peito desmedido. Não podia me mexer. Essa sensação de distância e quase segurança esfumou-se de pronto com os tiques do relógio soando cíclicos ao meu redor. O tempo medido me apavora. O medo aumentou quando pensei em tudo o que teria de fazer pela manhã, no trabalho. Já não sei como são os dias sem metas, planos e organogramas. Trabalho numa fábrica no fim do meu próprio mundo. Ontem ouvi uma amiga muito querida dizer que eu era um talento perdido fora da academia e isso doeu muito mais do que o pré-infarto de janeiro. Freud, Poulantzas, Pound, Marx e todos os grandes me dão uma saudade imensa. Veja só! Saudade dos mortos... Não é bem isso. Saudade de substâncias que não acabem numa máquina extrusora qualquer (aliás, extrusão é o processo de saída forçada, expulsão que um produto sofre na linha de produção). Ridículos esses termos átonos e suas definições de engenharia, métricas e modelos cuja estética encarcera a mente, os dias, o resultado de qualquer trabalho. E ai me deu vontade de chorar. Digo chorar mesmo, como quem foi abandonado no mar. Isso tudo no meio da noite, quando tudo é pior e mais medonho. Quando toda a esperança seca entre o desejo de dormir e o possível esquecimento que virá com amarelo do sol. E não dormi mais. Pelo menos consegui me mexer. Tomei água e esperei o despertador fazer seu trabalho repetitivo. Às cinco e vinte da manhã levantei e o peso de não me ter parece que ganhou coragem. Subiu-me até as faces e quando me olhei para os cuidados matinais tive um pouco de vergonha. Quem sou não sei mais. Talvez o Chaplin de tempos modernos apertando parafusos alheios, talvez o boi na fila do abate. Um urro, uma lágrima tardia numa manhã em que a vontade de correr o mundo domina até mesmo a simples decisão de vestir minhas calças. E tinha esse sentimento de que não estava mais aqui, como te disse no início, entrementes preso ao fato de estar. E coloquei as roupas, triste e envergonhado por constatar que estava indo no mesmo rumo. Fazendo a mesma estúpida coisa de todas as últimas novecentas e tantas manhãs. Pensando em voltar a dormir por puro enfado ou atirar nos transeuntes que perguntam se ando feliz. Ponho a chave no tambor da fechadura. O clique é como uma arma engatilhando e quando saio de casa uma luz me cega. Nenhum corredor à frente. Não enxergo os elevadores de todo dia em frente à minha porta. O chão some e eu caio num vazio sem fim. De novo o susto. Minha apneia noturna me chama à vida. Estranho isso de reviver justamente quando o ar me falta. Meu susto é que tudo ao redor era tal e qual acabava de ocorrer. Foi tudo um sonho. Os próximos minutos me renderam o mesmo pânico de antes de pensar em você e na rotina estéril que logo me alcançaria. Levantei-me o mais rápido possível e comecei a escrever essas linhas. Queria que soubesses que o final ainda não ocorreu ou eu ainda não tenho suficientes palavras para terminar. Então... Mais uma carta. Foi isso o que aconteceu esta madrugada. E no fim, queria mesmo que estivesses lá para dizer calma! Foi só um sonho ruim, talvez assim a rotina fosse menos fictícia e meus sonhos, quem sabe, pudessem enfim me levar embora.