quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Desassossego (ou “Das minhas posses”)

Para o Wagner que sempre me
incentiva a seguir sendo eu mesmo.

Não guardo em cofre meu desassossego, pois dele quero a presença. Quero sabe-lo
Ocultar o que se sofre não é sanar a dor, é escondê-la. Dor escondida se enfurece
De tal maneira que amanheço perguntando as coisas ao que me desassossega, e ao próprio desassossego
Vou querendo saber quem sou; por quanto tempo escreverei assim, sem ouvidos
Quero, sobretudo, a palavra dentro dele – a voz esgarçada que inocula o perigo de viver bulindo o que me atormenta
Quero essa divisa inominável que é a pele; quando tocada, eriça; quando esquecida, esgota-se e resseca parecendo idade bem avançada dos dias
Trago pra junto do fogo de casa o que me fulmina
Dou-lhe o mesmo chocolate quente que ampara o sono de meu filho. Somos íntimos, quase amigos e o sentido do que me trucida ao mesmo tempo em que me mastiga – conforta
Só por estar livre, fora de um cofre, sem grades ou vigias
Às vezes quero curá-lo do que se investe – tanto delírio. Meu desassossego sofre com o que não faz comigo. Deito em seu nome um poema e novamente o guio
Ele vem para dentro da minha felicidade e, parcimônia à parte, revira as cinzas do que eu disse. Faz meu pranto ser bebido pelo pó do que torrou
Eu o aguardo no fim do dia, para depois deixar-lhe seguir seu rumo
Me dá um sonho, ou, como se diz, um pesadelo. E sorri
Sua mão costurada à minha faz meus traços
Ora vejo que sou seu amigo, noutras, escravo
E nisso, como bem sabe quem já viveu entre grades, sonho com a liberdade que redime
Pois que na rua, no meio de um dia bem quente, com a luz por todos os cantos, posso simplesmente chamar um nome ou dizer um poema
Não fosse o que me consome, nenhum grito me ocorreria
E eu seria apenas um silêncio, sorridente e interminável.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A posse do nome

Para o meu pai, meu filho
e para o tio Moisés, que partiu recentemente.

Trai-me o coração infinito
na entrega
A mão, cumprindo à pena
abraça
Fujo do filho, mas sou o mesmo
A mesma medula
O medo
Seus dedos me amparam
e dobram
Trai-me a solidão escolhida
E do abraço, devolvo
a medida
Sou filho de um novo pai
Sou mais ele do que temia
Sou mais meu do que presumira
Possuir

J.Mattos – Belém, 29.11.2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A vida só tem um round baby

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Mais um texto de livro que deveria ter nascido anos atrás e não nasceu. Como as coisas andam agitadas nas gavetas do tempo, ultimamente, este, escapuliu.

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As perguntas estão molhadas de chuva. Assim eu as deito fora. Não guardo.
Bebi apenas uma, a mais doída – a pergunta de Adriana, por que és assim?
Bebi sem sentir gosto.
Talvez fosse a única água da estação. Única fonte de onde me tenha vindo algo mais que perguntas. Sim ainda sinto os mesmos medos.
Sofia parada no Ribatejo, como uma memória esgotada. Ainda me assalta a forte impressão de que eu devia ter dito sim. Não há hora certa para estas epifanias e, afinal, os sobressaltos, as bravatas, as tesouradas que sejam, a atacar os velhos presentes, as velhas fotografias. Esses rituais de adeus também levam um monte da gente.
Amoras silvestres no café da manhã. Lisa chorando o uruguaio perdido em Londres. Adquiri mil panelas em miniatura para amainar sua dor. Estávamos na cidade das casas de boneca. Junto ao mar e aos castelos de Northboroughs. Ninguém descobriria. Mas fui só um ombro. O amor estava em espanhol contemporâneo e meu latim adaptado não conseguia deixar de dizer, saudade, saudade infinita de você.
Claire acordando para o café. Ninguém deveria ter esse direito. Acordar mais bonita que os raios de sol, mais ampla que minha própria respiração.
Claire cheirava a tudo o que eu queria. Nomenclatura inventada: la clé de tous mes choix. Fosse mais dramática a forma como ela me estampava a beleza de uma civilização inteira em seu sorriso, era capaz de dizer-lhe, na mais dedicada psicanálise de libertação, ma naissance, ma mort peu.
Sem sombra de dúvidas a melhor maçã.
Degustada sob a choupana perdida de uma cidadezinha no interior da França. Tudo me dói quando não tenho. Mas Claire não me traz dor nenhuma. Basta ser um pensamento.
No trem, perto do mato, na esquina de uma mansão na Covilhã. Mais além, nas galés estacionadas dos navios descobridores do Porto. O cabo da Roca. As lembranças de Pessoa, chorando ardentemente o amor que supunha estar naquilo que lhe caia impregnante dos punhos, pela ponta da pena.
Nascido brasileiro, um africano na pensa, português de veia e ancestrais.
Meu nome, o nome de outro. Uma pronúncia que nunca deixarei de ter. Estava com ela. Ao pé da viajem sem volta de um amor que cruzou oceanos, durou séculos dentro dos anos e extirpou-me uma costela para ser o início de outro homem.
Um outro homem que ao pé da serra nevada, de nome Estrela suspirava a bravura de tê-la trazido e já imaginava como seria ter de dizer-lhe o fim. Por que, além de tudo o que se passara, os nomes imortais que agora tomavam chá das cinco nas lembranças. Aquelas mulheres que já estavam. Não mais que ela. Isso jamais. Porém presenças concretas de uma seiva e substância inegável. Acordes somente das serenatas silenciosas em que se montava a pergunta que ela fizera com tanta propriedade: por que és assim?
Seu nome não seria meu. Meu nome não seria de seu filho.
Polacas, inglesas, gaulesas, francesas, mouras, portuguesas, espanholas do centro ou granadinas impressionantes erravam em mil versos e quilates e afluíam das palavras novas que eu aprendera apenas durante o caminho. Não como pouquíssimas coisas que podiam ou não podiam ter tomado parte de minha vida. Mas como as criações febris que possuiriam para sempre um pouco do que era meu. Daquilo com que me formulou Deus ou quem quer que tenha sido.
Bati uns segundos. Levei uns murros. Abri as portas erradas e o roseiral da minha infância ainda me trinca tardes a espera do além.
Meu punho serviu tanto para bater, como para defender e instruir as linhas com a pouca salvação que aprendi. Nada há que eu possa falar de mais. Arrepender-me.
Por que és assim? Ela sempre quis saber. Acho que eu também.
Talvez seja uma condição digna de compêndios ou tratados de patologia corriqueira. Doencinhas de menor calibre que não cabem nos orçamentos governamentais para serem extintas de uma vez.
Quem sabe seja uma farsa, uma mistura dela e minha por um ângulo unicamente alcançado pela vida que tivemos juntos.
Bater e apanhar. Correr e viver.
Assim, sem compreender ou responder, por que és assim, prefiro seguir. Lembrando que houve outra pessoa que perguntou. Uma pergunta quem sabe pior. E a resposta foi assim com a mesma importância com a qual nasce um romance ou se conhece a primeira cicatriz no corpo da amada. Quero tudo quanto me queira. A vida só tem um round baby. J.M.N.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Minha fêmea

Delegou-me a terra. Esse pó que muito junto me serve de piso e me suja à mesma medida que faz avançar. Ando para frente e o pó do meu piso, dado por minha fêmea, adere-se às pálpebras dos meus dias. E entre ciscos e riscos do caminho e da entrega, cujo corpo poeirento me acorre em chão agora e sempre, faço um pedido. O silencioso pedido de não ir e não voar como a mesma matéria fina que se atraca à roupa. Não quero que ela vá. Soprada pelo vento não quero que ela viaje. Cuspida em gotas de chuva não quero que ela se estrague ou se transforme em estiagem para que eu nunca mais a possa decantar e encontrar meu passo a passo. O lado a lado da história. Minha fêmea que me deu um medo estúpido de ser só. Por ser o que eu quero o tão querer dessas palavras. Ela me disse em silêncio que recuperaria a escritura das terras, a quilometragem do meu passado a rodagem marcada no meu compasso interno e, se fosse possível, adornaria com uma vela colorida um possível barco, para que eu – homem – que sem ela declarei não querer viver, mesmo assim, continuasse. Mas não perpétuo. Decerto não alguém sem endereço. E na última carta que me mandou a fêmea que eu rebatizei de costas para tê-la sempre comigo, meu dorso. Ela que escreve com letrinhas mínimas de quem bem sabe o que dizer com amor e senso, endereçou-me o coração e uns bons ventos – dizendo assim, algo que eu nunca mais vou esquecer: moras em mim quando parto e desde que me pariram. És pra mim destino e ato e, por isso, eu te preciso. Espero chegar de noite em sua presença. Seco. Ou molhado, denunciando que recebi a sua carta e que seu nome é parte de minha anatomia. Chamando-a, a partir de agora, eu chamo sempre a mim mesmo. J.M.N.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Sem chances de voltar

Se parti foi para estar mais comigo. E ver o Oceano que me primeiro me banhou por seu revés. A porta de trás daquele momento em que eu não resistia a mim mesmo e, soluçando de amor e condescendência, me perdia dentro dos meus senões, perdia-me. Por lá a voz em cordas doidas se soltou. Cantiga de sangue e roda. Várias voltas em meu coração de soldado e saudade. Preso sem ferro, mas no linho com cetim da memória. A pequena que pisava nos meus astros e naqueles dias queria mais o Mediterrâneo, era perpétua, depois eu soube. Mas quando vi o negro da noite aberta. Infestado pelas luzes da descoberta e o poema – teso e preso a Pessoa e Herculano – chorando valsas tristes que me redimiam. Saltei. Saltei com os braços do Cristo. Crucificado à vida, como qualquer ser mortal. E de lá, daquele abismo espantoso do meu sonho e do que passei a poder, continuo caindo. Caindo sem ter nada que segurar. Em pleno voo é que escarneço meu desespero e afago meus medos, sem ter chances de voltar. J.M.N.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Receita de um suicídio quase

Não estava ligando à ferida. Cuja dor ia e vinha ao longo dos anos. Já era a porção indicativa de minha paciência, a linha de base da história que eu não contava aos outros. E doía. Como o guarda roupas que perdeu as cores dela e se tornou pura madeira de guardar o ar e as misturas de lembrança e antipatia de nossas brigas. Em seus cantos, lugarzinhos de acomodar sua falta. E ela me faltava em todos os mínimos espaços daquele dentro. Dentro de casa.

Não estava mais acostumado a perder as peles. De tanto que meu choro e impertinência tinham embotado a porta da rua da minha inconstância. Estava perdido. Detido em calabouços de entranhas, fotos velhas, arrepios. Abri a janela naquela manhã. Ninguém passava lá embaixo. A rua desejava ser trafegada e acho que isso iniciou meu suicídio. Comecei perdendo o tato. A boca secou e se encheu de gretas. Os olhos não viam; a língua não sabia gosto algum.

Não havia meu semelhante junto de mim. Parti de meu corpo. Debulhado no parapeito da janela. Choro não vinha. Morte, apesar de certo desejo, não era. Algo dava lugar ao novo. Foi o que senti. E era como um fio bem fino e afiado me passando pelas veias, pelos nervos, desligando antigos preceitos, circuitando novíssimos esquemas. E ganhei sinônimos, novo prática para a oferta. Refez-se o centro infante que esperava sempre meus pais voltarem para casa, independente se vinham inteiros ou aos pedaços por causa da vida.

Úmido meu lábio soltou um beijo. Tesos meus músculos me recolheram. A rua começava a correr em dois sentidos. As pessoas e eu mesmo ganhamos densidade, ossos, viramos pessoas em si. Ampliados os sabores na língua, pareceu que o mundo todo me entrava pela boca. A vista limpa e renascida encontrava a beleza do pequeno ninho de sabiás que fizeram do concreto seu útero a céu aberto. Podia ver, enxergar, a pele retornava à minha estrutura.

Alguns disseram que se tratava de um surto psicótico como poucos, outros ainda me benzeram por quebranto, mas um amigo meu me abraçou e pediu a receita. Queria saber como era se perder e se encontrar assim. Eu não sei explicar como se faz. Como se volta de um mergulho desprotegido como aquele. Sei dizer que sou eu novamente. Que voltei. Ou quem sabe, sou simplesmente eu, o que devia ter sido ou ser, finalmente. J.M.N.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Sobre o que nos move

Vim aqui não sei razão. Certo que algo me força, cutuca. Acho. Uma noite como a qual, não ando por ai. Dá frio só de pensar o mover dos dedos.
Mas hoje me deu de fazer isso.
Coração em dois, batendo, chutando. Meu peito é pura pergunta.
- Quando posso deixar que venha? Esse não tenho ao certo que me eleva? Esse nada que ao receber meu grito me viola de tanto silêncio?
Mais não sei. Ou não posso.
Que quando perguntei a mim mesmo, durante o banho de mar dias atrás, eu tive a impressão que podia ser coisa de uma saudade que guardo em muitas gavetas. Por onde vejo, saudade não força a gente cair na rua. E ficar parado. Endereço alheio. A noite forçando uma vida que não é mais nossa.
Mas se não é saudade é pensa.
Ou mais grave – querer.
Alfinete púrpura no centro do que nos ata à nossa história. Que quando se acha estar livre, mais preso se está.
Então eu estou aqui por querer.
- Mas querer de quem e quanto? É o que me pergunto.
De em redor recolho a fina e cheirosa paciência do destino. Perfume de quem se achegou de esperança. E mesmo não sendo o caso, a calma com que um ato íntimo se transforma em feito, tem esse poder inquietante, mas tranquilizador de deixar um bem em vez da dúvida.
No que penso nisso, cessam os chutes, as ínguas.
Sou pleno e solto como antes do desatino.
Estou aqui, aveludando a palavra ontem com presenças.
Vejo aquela que me trouxe, finalmente. E compreendo.
Ela entra certificada de que ninguém a espreita.
Sinto o vilão que me socorre de um mundo reto e sem alegria. Vilão de menor calibre, como vô Capitão que andou nu, cidade adentro, pois foi preso assim banhando-se do rio em frente.
Ela chega a casa sua. Insuspeita. Então entendo.
Estou aqui por um chamado.
Do mesmo silêncio que me grita quando pergunto sobre tristeza, desesperança e finitude. Foi o termo de o destino dizer – viveste! Ei-la prova.
Dou a partida no carro.
Abaixo de mim sua potência mecânica gira o mundo.
De minha vista entusiasmada ela saúda.
Acena, mesmo sem gestos, à minha presença – que desconhece.
Em feliz me visto, rumo ao fim do dia. – Terá mesmo esse meu íntimo levado a ela?
Se sim, deixa-me claro que existo. Se não, fica a memória como prova do havido.
Confio em cada qual com veemência, como alguém que atravessa a cidade durante o frio, apenas para saber o que nos move em segredo. J.M.N.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Cartas a ninguém (18.07.2013 – 4:59 a.m.)

Querida,

Essa letra de vidro sempre adiantada à minha vontade é a letra que distingue em meu grito o que quero te infligir e o que quero ofertar. Em mil pedaços tanto fere quanto prisma a luz dos encantamentos. Letra polvilhada de perigo e querer. Os instrumentos de tortura, as sevícias mais desumanas de um lado; do outro lado, bem junto ao que tudo sangra: a pluma, a língua ardente, meus vasos irrigando todo sangue para ti.

Escrevo essa lâmina insegura e desafortunada em formato de carta para dizer a quem venha encontrar minhas missivas, que o desespero não é nada mais que a esperança deflorando a certeza de que não há futuro entre nós. E objeto querido, introjetado, difuso em nossas linhas, nas nossas roupas antigas puídas de tanta saudade, esse objeto segredo se instala e diz que nada passa; superar é deitar-se cada vez mais com as lembranças profundas do que acabou.

Escorre de minhas mãos esse úmido e vergonhoso inseto esmagado – nossa história. Lambuza a malha dos dias, reitera o vermelho dos dramas que escrevo. Sabe a escárnio, zombaria. Mas não deixo de te escrever, Querida. Não deixo de te quere, sobretudo no poente. Com a mesma vontade infantil de quando soubemo-nos nus no meio da noite e procuramos, antes do amor, salvaguardar a pureza que sabíamos, estaria morta no instante mesmo que nos pertencêssemos.

E, no entanto, cumprimos destinos, pisadas, objetos pontiagudos. Cumprimos exaurir a lavra de ouro. Empobrecidos, destinados aos cantos da casa. Nada brilhava, nada acendia. Mesmo assim os outros nos tocavam. E tocavam ardorosamente, com a devoção de quem toca o homem que anuncia a salvação, com a mesma intimidade alegre de quem toca a pedra do outro lado do oceano, quando chega ao destino da fuga.

Agora, contra tudo o que aprendi e urrei, contra toda vela inflada no caminho contrário do que fomos, eu retorno. Piso seguro a terra em que esmagamos a grama. Nossa passagem ainda se cheira. Voltei a sentir o corpo do que fizemos, a memória densa do que trocamos como loucura, mas que era a mesma substância doce com a qual se deleitam os recém-nascidos. E renasço, pois posso pegar entre os dedos essa euforia de ter vivido para contar histórias.

Vivi para ter uma história contigo. Vivi para ter a carga totêmica e indelével do teu ser sobre o meu. E venho aqui para te convidar a ler nossa história de novo, por uma noite, um gole de vinho, um cuspe de horror – ou um sopro de Deus. Pois há indícios disso que conto em cada uma das pedras deste lugar.

Com amor,

J.Mattos

Sem título

Tenho vontade de te enviar uma mensagem. Nada rebuscado ou poema. Essas mensagens que enviamos pelo celular agora. Apenas para se misturar aos teus contatos e às mensagens de serviço das operadoras que te convidam a gastar mais. Uma mensagem de uma ou duas linhas onde eu possa espremer toda a saudade e a raiva que sinto por ti; todo o sufoco e a literatura que foram precisos para que saísses de minha pele. Uma mensagem que coubesse esquecida em tua caixa postal. Teria o cuidado de não usar abreviações ou contrair as palavras e seus sons sinceros para não perder a chance de dizer entre as coisas rápidas que se diz em mensagens eletrônicas, que eu te amei imensamente, a despeito da razão que guiou meus atos. E te mandaria esta mensagem de noite. Num vão dos teus telefonemas finais do dia. Quem sabe estarias falando com teu pai, ou com teu novo amor que viaja a trabalho, ou com teus primos, ou com aquelas amigas chatas que peruavam a perguntar o tamanho daquilo, a profundeza disto e faziam vigorar entre seus venenos o preço das bolsas ridículas que compravam nas liquidações mensais. Um troço chato. Com uma ou duas linhas te faria lembrar, pois a mensagem teria a cifra para o olfato, a ligadura do sabor e, certamente, a cadência sedutora do que fomos. Era capaz de lamberes o aparelho, num ímpeto secreto que serviria de cena remontada: nosso fim amarrado às promessas de infinito – início e fim, início e fim. E a falta de esperanças que havia nisso. Passaria um dia compondo esta tua mensagem. E no final, depois de litros de vinho, lembranças tenebrosas, as hastes torcidas dos meus óculos de sol, seriam uma ou duas linhas sinceras, maduras, constantes como o rodar da Terra, como a expansão do universo. E cederias à vontade de responder obrigado. Sem complemento ou deixa, sem amanhã ou celebridade. Esse obrigado acróstico de onde eu tiraria significados vultosos, interpretaria os sinais e ignoraria feliz que se trataria apenas de um obrigado. Tua resposta à minha mensagem, teria a imensidão de um mar que não cruzei, teria o bege e os semitons modestos da casa velha em que morei noutro país, como o fundo da pintura que emoldurou nosso sonho. E seria a tua resposta à minha mensagem de uma ou duas linhas, a carta que espero na distância, o naco de concordância com o pertencimento silencioso de um amor que acabou. Amor cujo destino estampou-se no adeus, naquele mesmo dia em que disseste que eu nunca mais saberia de ti. J.M.N.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Por volta do tempo

Ouço o debulhar do tempo em meus amanheceres. Vem regendo o orvalho que desce ínfimo sobre as plantas, vem no mesmo passo de descoberta no qual meus ossos decidem me erigir – manhã sim, outra quem sabe. Devagar, manso. O lobo em linha reta que cose a bandeira da lida e arranha a pele suada para sentirmos que faz sentido. Sabermos por que lutamos. Suas garras esféricas a demandar minha queda. Repetem-me. E eu, repetido, indago aos que vieram antes mim que tipo de homem eu sou. As respostas sempre carnívoras, sempre ancestrais me provam aos pedacinhos. Desafiam-me. O tempo faz duvidar de minha arquitetura, de meus desenhos rupestres. Faz duvidar dos traços que deixei nos olhos dos meus filhos. Ainda os traços finíssimos de um cuidado alegre nascido do sangue que é o mesmo, feito do mesmo grená das paredes daquela barriga. De onde viemos. De quando dizia que comigo mesmo era a saída. Esse sabor de limão sozinho, no cimo da árvore. Esse isolamento que deixa o fruto mais cítrico. Experimento-o, quase ao martírio de querer toda água do mundo. Sorvo-o quase à fronteira de ser amigo com a loucura. É isso que me faz o tempo. Enverga-me. De maneira que eu sinta e habite meus próprios lugares sujos, minhas excrecências. Pois ninguém me diga que não avançamos em sua carcaça quando sentimos, por exemplo, aquele amor de megatons e fainas. E ninguém ouse mentir que ele não nos atropela quando estamos boquiabertos descobrindo que já passamos por um lugar qualquer num deserto. J.M.N.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Linha do rio

Tua linha riscada n’água
Ano a ano, terço a terço
Maré acima, maré abaixo
Aponta os caminhos líquidos
Nos quais te percorro
Vou e volto insistente
Límpido como me permites
Com teu amor doce,
De rio e cores

Úmido trajeto
Contra tudo o que aprendi
Apreendo-me
Em teus dedos sãos
Simples como todo teu interior
Enquanto o mundo explode
Em meus anagramas
Miríades e sonetos
Ofertas-me o pão feito
Pelas mesmas mãos que temo
Entretanto desejo

São mãos criadoras
Cheias de tempo, sal e piedade
Não as suporto sozinho
Dragão fugido que me enfrenta
E revogas meus medos
Estendendo os condões
Tornando o mel de tuas águas
Minhas ruas, minhas rotas
Eixos de um novo domínio
Ao qual, simplesmente,
Pertenço

Teu rio é minha última esperança
Leve-me

J.M.N.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O tempo e a saudade nos olhos do disco

“Alguém vai sambar comigo
E o nome eu não digo
Guardo tudo no coração”

Hora da Razão – Batatinha.

Ela me pede um disco de presente. Digo que sim. Dá adeus por cima do ombro, me olha de longe e talvez tenha pensado em como estamos diferentes. Eu devolvo o pensamento – estamos. Ela volta nessas ondas de estremecimento que são mais de improviso que manejo calculado do meu velho personagem.

Ela volta como o tufão vertiginoso que sua presença sempre foi para mim, para minhas identidades passadas, para meus sorrisos de fachada.

Estou ficando velho.

Ela mexeu definitivamente comigo. Deixou sua marca.

Num único encontro depois de muitos anos, arrancou-me um suor, um disco e as lembranças, desengavetou-as sem pedir permissão.

Olho-me longamente no espelho ao chegar em casa. Sim, mudamos nós dois. Eu e minha imagem. Ela e eu. Mudou meu personagem pintado, direto do passado estratosférico a que ela pertence e todas as canções que escutei em seu nome, em nome de outros nomes, noutras serenatas, em tantas operetas e peças de teatro que nunca escrevi.

Mas ainda pergunto como me fez correr atrás de seu pedido? E porque corro tanto?

É um disco. Um disco apenas, o presente pedido. Fico nesses questionamentos. Arrebatado. É um presente que eu quero lhe dar mais que tudo. É um passado que visito muito estrangeiro, mas impecavelmente curioso.

A curiosidade não me matou, não forçou arrependimentos. Ela me cheira a vida.

Custou-me, isso sim, uma pintura como esquecimento, vários dias de uma sublimação que não emplacava. Custou meu anjo da guarda, desgastado e sufocado no guarda-roupa. Umas doses de vinho. Custou-me escutar cada música daquele tempo duas ou três vezes até decidir se fariam parte do pedido.

O disco que ela quer é digital.

Cabe mais tempo de música. Cabe mais memória e posso até escrever sua ficha técnica. Produção: o tempo em que te escondeste em mim... Cabe isso de ridículo e imensidades talvez.

O certo é que porei muito passado nele, mas também um tonel generoso do que sou agora, não exatamente de presente. Se doer, se voltar a pulsar, se couber num gole de vodka ou num malte sem qualquer envelhecimento, não importa. Rodarei na superfície sem sulcos do disco digital que gravarei.

Correndo contra o tempo.

Correndo de encontro ao menino eu era quando ela disse gostar do que eu fazia.

E se fosse hoje?

Se fosse hoje, com tudo o que sei, continuaria fazendo besteira.

Continuaria sendo aquele de quem ela disse gostar das mãos, dos olhos e para quem ofereceu um bicho de pelúcia, contrariando tudo o que sabia sobre o amor até aquele momento.

J.Mattos

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Finalíssimo

Chega de temer, tremer ou acorrer-se em químicas
Chega do fino pó que em sapatos se agarra quando muito se espera
Chega de estar atônito diante do espetáculo, ancorado e submisso pela goela que não se esforça
Engolir a gente aprende com pedras
Chega de vasar em páginas apenas, apenas em prantos, sem correção ou tentativa
Chega desse sono duradouro e célebre de entidades mortas que eu amava
A prudência rasgou fora as fotografias, emudeceu os prováveis K-7 onde anuências ou medos foram gravados
Chega da multidão que espera
Chega da multitude de espantos e ocasiões impecáveis
Chega de assinar o mesmo nome
Coríntios aos que têm fé e assustam-se facilmente
Meus versos são do Irã, são Palestinos, Austro-Prussianos, como ninguém mais quer saber ou tem medo de admitir que existem
Chega do amor imprestável dos anos mofando e que entre as galáxias esperou justamente a que não tinha vida para florir
Chega dos módicos furtos
Chega da lástima em socorrer que partiu, de ventilar pulmões que secaram
Esta chuva que eletrifica
A pele que saca e renova
A rosa que mesmo aos espinhos convence de descansar
A isso me dou
Chega de andar fazendo economias
Chega do pote de certezas que pagaria minha passagem ao lado de lá.

J.M.N.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Sugestão ao teu desencanto I

Posso, nos intervalos do sono, seguir com alguma culpa
Escrevendo complexidades a dizer que a letra me redimirá
E se não acontecer, bem paciência!
Haverá licença suficiente a sustentar a paixão escrita
Haverá certamente o dolo da intenção, da conquista
Mas, entenda, nada haveria seguido sem você
E se assim nos entendemos, e agradeço
É porque estávamos na mesma frequência
No mesmo aparato lento de buscarmo-nos
O que encontramos, naquele ponto, não merece castigo
Não merece o que andas a dizer por ai
E se nada disso merece, deixo-te a oferta
Volta e lê tudo que fomos
Em algum lugar, nalguma palavra suspensa
Encontrarás a resposta que queres
Não acontecendo, continua a frase insuficiente
Até que, como em mim, diga mais sob a face do dito
Seja mais que palavras em linha
Reescreve o que foi dito
Até que se torne memória.

J.M.N.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Cartas a ninguém (27.03.2013 – 03:57)

Meu amor,

O vento sopra e a tarde tem aquele cheiro que costumavas dizer, nasce das coisas que se perdem umas das outras. Hoje entendo. A distância exala. Mais atrás do que eu vejo, há o poente violeta que sempre esperei. As coisas vão bem sim, apesar de não ter me dado com o chá de hortelã que sempre indicaste e eu levei mais de cinco anos para experimentar. Não faz mal, até por dentro eu contesto. Apenas isso.

Assisti ao nosso filme, de quando éramos. Tanto tempo depois ele me invade com a mesma violenta maneira de enaltecer e culpar. As imagens dançando sobre o que eu mesmo nem sei mais se posso chamar de saudade, tão constitutivo que é dessas linhas, dos meus trabalhos domésticos, da minha obra de esquecimento, da minha lentidão ao acordar e saudar o mundo rindo das últimas notícias, sejam estas boas ou ruins.

Mas assim vai-se indo. Ponho café demais no leite da manhã e a escuridão da xícara dá conta do meu estado de nervos. As pessoas gargalhando por todo canto e eu achando que todos são uns cretinos por não dividirem a receita desse estado de suspensão constante, onde não lhes atinge a fatal pergunta de todos os dias: e agora?

Sim esse sou eu. Ainda eu e ainda o que sou. Um otimista tímido que, apesar das desavenças com a morte, não a deixo sem um prato de comida todos os dias. Que seja a indulgência das religiões e as bênçãos dos que me querem melhor, as minhas proteções. Otimista, digo, em ter esperança de a esperança morrer com dignidade sobre o poema. De não ser sacaneada quando o resultado esperado for alcançado e um filho de chocadeira qualquer vier dizer que foi apenas a nossa obrigação.

Porque veja, quando rio, não é sempre alegria, quando mato uma personagem não é maldade nem vingança e, oxalá acredites, que nenhum de meus mortos te representa, amor, nada disso. Vou por este meio-fio a me proteger, pé ante pé dando linha ao tempo. Otimista pequeno do fim suado do dia, da esquina que não guarda o cano de uma arma, apontada para minha indiscrição de querer seguir andando.

Por isso, amor, quando a cena final terminou e todos estavam felizes, acalentados, respeitados em seus tormentos, felicidades ou incertezas, eu soltei um suspiro. Nada de se preocupar. Nada de exagerado. Mas cheio de intimidade e atávico nas coisas que me deixaste. Dentre as quais, a maior delas, a mais robusta e inextinguível: saber que pedras no caminho foram feitas para chutar.

Uma hora elas voam para o vazio do infinito e sua distância vai fazer parte do cheiro da tarde. Outra hora, simplesmente, nos quebram os dedos e temos que ficar um tempo de molho, sentindo as dores de nossa coragem ou as troças de nossa imprudência. Foi só depois de saber e viver isso, meu amor, que minhas tardes realmente puderam cheirar a esperança.

Sinceramente,

J.Mattos

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Dez Encontros I



Há muito que o acaso puiu as tramas  das desculpas dadas  pra que os dois, depois de tanto tempo,  estivessem frente à frente. Mesa de uma padaria. Território dela, uma cidade cujo nome fora dito, há uns anos, como uma fuga anunciada. Pra ele, em devaneios, o lugar nunca passou de uma reunião de praças e igrejas e da morada de uma mulher cuja alma carrega as marcas de um amor sem freio.

Pela força que usou pra assoprar o café, ele descobriu que ela não tinha pressa. O tom da voz ao falar com o garçom lhe fez pensar que seus dias de agonia mensal já se avizinhavam. O pedido... sim, ela estava preocupada com o peso – sempre o excesso de bunda e coxas.

Esse conhecimento prévio, assentado em gestos e cheiros, chegava-lhe mesmo que a contragosto. Era como um dom que ele possuía, mas que só usava quando na órbita daquela mulher.

Ele vinha com todos aqueles vazios enfeixados nas mãos tomando o lugar de um buquê. Gentileza discreta que aos dois apetecera em demasia.

Conversaram sobre o amor, o deles, seus saldos e dívidas. O que teve fim e o que restou inconcluso. Foram em cima, foram embaixo. Concluíram que uma fração de todo aquela ânsia de entrega sobrevivera. Incômodo. Franzino e irrequieto, como o filho que uma vez sonharam ter. WDC

terça-feira, 11 de junho de 2013

O ausente à espera

Agora é só esperar que ela venha. Trazendo nada menos que as peras de Lion e sua interminável irreverência sobre as merdas que o Wood Allen escreve. Sambinha no mp3 player e as conseqüências de uma puta dor de barriga. Ela finge estar inteira e eu rio da minha quilometragem. Vamos nascendo. Quando chegou só dei por ela depois de quinze dias, tão natural que ela me faz parte e seu lambido é o mesmo que a chuva do meu verde domínio. E percebo feliz que a pele dela me ensopa, que as unhas dela me arranham e que a comida que eu detestei, na verdade, era a boca dela se deliciando sobre a minha, uma mistura doida. Fertilizante. Isso é que somos. Saem plantas de dentro da gente depois dos meses, saem frutas. Tulipas, papoulas e calêndulas. Adoro dizer esses nomes. Todos a representam. E passo a escrever idiota sobre o silêncio que fere, sobre a gaze do meu curativo que escapa. Furo meus calos. Adoro os prazeres matinas de tê-la entre meus dentes. Carnívoros e amáveis, como só dementes podíamos ser. A sintaxe me falha. O verbo zera todas as ações e eu me fluido. Vou sangrando das dores dela, entre parênteses. Escrever assim só a quem sente. Escrever como se sente só a quem a dor prestou serviços. Não fosse ela minha retaguarda estava fodida. Meu dorso, meu tempo minha negra orixá, morreriam. Mas ela presente, sento como um rei. Namoro a pálida constituição dos avessos de maneira infinita. O que sai? Essas letras. Anátemas do pouco que tenho, do muito que a vida já me deu entre seus beijos. E fico simples. Passável. Instrumento para qualquer coisa que não tenha peso ou sentido ou mesmo, sequer, signifique algo nas palavras dos homens. J.M.N.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Porque vale ressaltar

Sobre todas as coisas eu te amo. Mesmo sem o brim que não compraste para minhas calças ou a proximidade da gripe que te afastou dos meus beijos. Te amo da mesma maneira perplexa com a qual descobri teus anos de aventura, de direito pessoal e intransferível sobre tuas decisões estúpidas e sobre o acerto de contas com tua família. Acordei hoje com vontade de dizer isso. Com gosto por relatar as coisas que, mesmo antiquadas ou prematuras, iminentes ou deixadas de lado, me fazem te adorar ao ponto de esquecer minha culpa neste amor de comprimento euclidiano. Mesmo sem o gato que me faria espirrar e o canário que atrapalharia teu sono eu te amo. Amor de sal e benção, mesmo que eu não creia. Dos doces com castanha de tua mãe e da presença dela engolindo nosso sossego no domingo. Por sobre todas as guerras, todos os noticiários de crianças perdidas que te fazem ir à igreja pedir por cada qual, eu tenho que dizer que te amo. Tenho que dizer que espero e esperarei sempre a tua chegada. Esperarei tua calma de antes do sono e tua ferocidade sobre eu ter esquecido de usar a aliança. Sobre todas as incertezas que ainda tenho sobre como seguir vivendo, eu te amo. E não tem rito ou crime que me façam desistir. Não há pessoa no espelho que me force a calar o que digo. Pois, se mesmo tão diagonais ou oblíquas nossas esperas se encontraram, quem sou eu para negar esse acaso fabricado tão naturalmente. J.M.N.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Sarau Palavra Nuvem

Caros leitores e leitoras,

Amanhã 29.05 (quarta-feira), inaugurando a temporada de eventos mensais, os Blogs Palavras de Ontem e de Sete Meses receberão o escritor Caco Ishak no espaço Benedito Nunes na livraria Saraiva do Shopping Boulevard. O evento inicia às 19h. Compareçam e divulguem.

J.Mattos

terça-feira, 14 de maio de 2013

Sobre o chão que não pisei

“Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre,
un tal Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo.
Y yo le prometí que vendría a verlo en cuanto ella muriera.
Le apreté sus manos en señal de que lo haría,
[…] no pude hacer otra cosa sino decirle que así lo haría,
y de tanto decírselo se lo seguí diciendo aun después de que a mis manos
les costó trabajo zafarse de sus manos muertas.”

Pedro Páramo – Juan Rulfo

Eu bem que podia ser o que diz vim aqui, pois queria conhecer meu pai. E estar na presença deste homem. Que me feriu e ainda fere. Que me trouxe consequências e recaiu sobre minhas paixões inúmeras vezes. Podia ler essa palavra curta e funda em qualquer parede cheia de apelidos revolucionários – e quem sabe tê-lo por companheiro, camarada, revolucionário. Seria, seu emprego, contra os desmandos, a violência, aquilo que escapou à sua geração e que chegou pesado sobre a minha, tardando as escolhas, macerando a coragem. Usaríamos os dois o mesmo apelido. À paisana poderia andar secreto entre os caminhos do meu filho, pesquisando suas amizades, antevendo os perigos depois de cada esquina. Mas escolhi deixa-lo fazendo a trilha, apaixonando-se pelo que encontrar no caminho. Na paisagem queria ver o pai estancado como que fotografado pela minha lembrança na melhor viagem que fiz em sua companhia. Paira no ar meu desejo sempre que penso no que não disse, na valentia que se engaveta. Vira uma espécie de dolo, ao que parece – querer me encontrar sem um guia. Alguma coisa não acontece. Minha barba por fazer, sugere o descuido que eu mereço exercer. Sem que a amizade seja uma obrigação. Sem que campainhas lhe soem preocupantes anunciando uma ou outra insuficiência minha. O nome veio e não o conheço por inteiro. Ainda falta ir e dizer o que ando deixando de lado. Por hora um gosto indeciso. Compaixão pelo que não me significa e que é necessário significar. Queria saber a hora de espairecer as ideias. Ser leve e comer devagar. Enquanto não posso, digo por ai que sou um escritor e que meu estilo não tem nada a ver com a tristeza. J.M.N.

O jogo acabou e faltou um pedaço

Foram vinte e três tentativas. Todas ocorridas durante a noite, período em que estávamos mais vulneráveis. Montávamos quebra-cabeças. Peças espalhadas pela mesa, um bom vinho, pertencimento. Às vezes uma música clássica. Acalmava. Tudo posto. Quando acabávamos de montar mais um era o que dizíamos. Assim foi. Mais ou menos dez anos. Um quadro de Tarsila, obras de Paul Cézzane, pictóricos de Da Vinci. Uma coleção de arte feita a quatro mãos. Sob as vontades da noite, as tonturas do vinho, a arrebentação da entrega. Haveria de não compreender a razão de ela não acreditar em mim. Mas depois parei de pensar. Não faz sentido. Estou aqui todas as noites, construindo, montando o espetáculo refinado de nossos polegares opositores. Tínhamos talento. Eu nunca tive dúvidas durante aqueles jogos. Talvez por isso ganhássemos sempre. A única vez em que duvidei foi por causa de um monte de peças de cor escura que não se encaixavam de jeito nenhum. Era um trabalho complicado formular as bordas daquele puzzle em especial. Fui tomado pela dúvida. Duvidei da beleza, do almanaque de nossos dias. Duvidei que fosse capaz de garantir-lhe segurança, mesmo naquilo em que ela vacilava. Te perdoo por não acreditar. E nada mais. Nesse único e triste trabalho, falhamos. Um cão comeu uma das peças. Só vimos depois. O papelão tufado e estragado em saliva. Disforme o pedaço que já faltava. Não tivemos coragem de tocá-lo. Os contornos escuros, a indecisão sobre a validade do artista que emprestou sua obra ao nosso brinquedo. Mas, sobretudo, aquele pedaço que faltava. Aquele espaço no meio da completude. Um vão na beleza deitada. Completamos o mosaico de mil e tantas peças e por causa de um furo, abandonei o que foi feito. Nem vi que a luz também cabia naquele espaço não ocupado. J.M.N.

Para ler escutando…

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Teoria Geral do Esquecimento

Esse é o título do último romance do autor angolano José Eduardo Agualusa. O livro retrata as reivenções necessárias nas vidas de uma cidade sendo devorada pela guerra – no caso, Luanda. Ludo, a protagonista, sobrevive no seu auto-exílio numa mansão no meio da guerra, emparedada e se alimentando da carne de pombos e os restos dos tempos de fartura. Se aquece em fogueiras de livros e móveis. Mantem a sanidade com a companhia do cachorro Fantasma, e escrevendo. Primeiro em papéis e, quando estes acabam, nas paredes da mansão. Agualusa pediu à poeta brasileira Christiana Nóva que se vestisse de Ludo e escreve alguns poemas pra servir de epígrafe de alguns capítulos. Nóvoa concebeu os poemas “Haikai” e “Exorcismo”. Este último reproduzo aqui, pra quem ainda não entendeu, entenda que a escrita não é hobbie, é bote, é abrigo e trincheira. wdc

lavro versos

curtos

como orações

 

palavras são legiões

de demônios

expulsos

 

cortos advérbios

pronomes

 

poupo os pulsos.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Primal

Sou um pouco de cada coisa que me aflige: a unha que soa a navalha, que risca a noite livrando o orvalho por sobre. Sou do apelo à pedra da ponte. A que segura o peso da minha tristeza quando a atravesso. Indo, as libras do abandono; vindo, as toneladas de mundo que me injetaram. Sei das coisas que me acalmam: a mão do filho igual a minha, suas notas desesperadas no caderno. Sou pelo beijo que a noite dá nos vagalumes. O lado errado do lençol na pele. Sou pelo desvio numa estrada que encima o ar. O tão longe da esperança que vai por ela. Aprendo a areia – o princípio delicado do vidro; aprendo a canção – inocência de quando meu pai era imenso; aprendo a morte – hematomas e vênulas rompidas na pele dela sem movimento, o lugar nenhum da minha solidão. São estas as coisas que aprendi. A partir das quais infiro ser deste ou daquele mundo. Dentro de onde o disfarce é meu rosto, o inimigo sou eu e a ponta da lança está a um dedo da garganta. E grito de todo meu ser – avance. J.M.N.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Reboco

Arranho as unhas nas paredes nuas
Firo, incontável
Perco o rumo, anão imenso esse amor
Me assusta e vence

Sou da parede quando ela me empresta a dúvida
A casa cai sem ela?
Subo as escadas, o paraíso
Ando por naves e níveis de pó

Oboé tocado assim quase me nasce
Mas intercalas
O suave meretrício da minha náusea
Com vícios de verme e pudor
Tuas pernas assim abertas

Comem o tato, a palidez da virtude
Expande, tudo quanto não nutre
Resseco, avassalado
A casa não cai sem ela

Eu é que não tenho onde morar

J.M.N.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Todos os nomes, toda essência

Qualquer nome te serve. Qualquer engradado te estoca. Posso te chamar aos gritos, te repetir como promessa, por vingança ou por crença na eternidade. És o maior suspeito pelos meus erros macabros. Mais ainda pelos meus acertos inteiros. Vens com lama pelo corpo. Límpido como quartzo esfumado. Vens. Alegre. Triste. Como um braço amputado que na canção padece com as fisgadas da saudade. Vens como o tempo que se uniu em minha inconsciência: ontem, hoje, amanhã e sempre. Linha junta no infinito. Fixo e enfocado como a imagem preferida de alguém. Trocado por uma carta alega distância ou medo. Covarde ou bravo. Em batalha ou calmaria surges e vens. Andando. Em berlindas. Sob o sol ultrajante dos desertos. Conquanto feliz por ser mais antigo que a antiguidade, fazes parte da primeira nuvem de poeira cósmica. Fazes parte da primeiríssima célula do mundo. Tantos te chamam de luto, melancolia, esforço sobre-humano de existência. Inalcançável te chamam outros e outras. Os esquecidos te chamam de qualquer coisa que podem levar à boca e matar um décimo da fome que os traga. Profuso, ostentando encouraçados, feito uma armada pronta para finalizar uma costa e matar todos com sua carga explosiva. Vieste desde antes de meu despertar. Vieste cheirar os restos da minha mãe sobre meu corpo logo após ela me dar à luz. Aquele misto de entes e entidades – surpresa e afeto – o só elemento que nos acomoda a todos pela primeira e última vez nas tenras horas de existência. Não dependo de ti. Mas me apresentaste a novidade da divisão, da partilha. E agora não chego a sozinho senão com esforço e faca. Eu que era só pra mim um naco de totalidade e pedra. Alguns te chamam de culpa, chamam desespero, dor que não cessa. A maior das alegrias, vivenda dos quereres e da entrega. Não sou eloquente. Não uso temas ou artigos indefinidos. Chamo-te pelo nome que aprendi ao lamber a solidão das descobertas e a quentura inquieta da carne fresca. Chamo como fosse um romance inteiro, tuas quatro letras amor. J.M.N.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Convite Especial - “Sabarau aos Vivos”


Segue o convite de nossa primeira promoção “aos vivos”. Felizes em poder realizar este momento na companhia de um grande parceiro: Gustavo Rodrigues e no espaço da Saraiva que tanto tem feito pela cultura de Belém, sob o comando da querida Tainah Fagundes. (J.Mattos)
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Sabarau III

quinta-feira, 4 de abril de 2013

As palavras a continuam

Ela sumiu completamente. Nem memória ela deixou.
Isso que se escreve quase sozinho sobre ela e o que não ficou é como um reflexo.
Incontinência das palavras que buscam significar até o que não significa mais nada.
Choveu muito naquele dia.
Choveu a chuva de dez anos.
O nível do rio subiu. Cardumes ficaram afogados.
Todas as pegadas e relíquias pré-históricas se foram. Mas as palavras continuam.
Tomam forma. Têm sequência. Não pensam, não adoram, não lambem os dedos por causa da intensidade do gosto.
Aquela chuva foi tudo o que eu queria chorar quando ela se foi, mas não pude. Porque sou apenas um homem sozinho e a água que eu tenho no corpo ainda precisa me dar sustento, fazer a maciez da pele para ser a cama de alguém.
Só por isso não chorei uma tempestade.
O que me sai quando escrevo essas linhas não é mais do que minha prisão de palavras.
Meu escravo se curva.
Sou sempre preparado para o trabalho de escrever. Por isso, mesmo não chorando, deixo derramar esse monte de letras e palavras sobre o sumiço dela e sobre o que ela nem me deixou.
Talvez as coisas sejam assim.
Uns choram e logo sua dor passa.
Uns se matam e logo viram nuvens que chovem feito a debulha de toda a água do céu.
E têm aqueles a quem não basta chorar ou morrer, torcer-se ou vingar.
Aqueles que vertem letras e escolhem palavras para fazer bem feita a ação de esquecer. Mesmo que o processo deixe o preto no branco.
Mesmo que outras pessoas se caiam sobre as teias finíssimas que sustentam esses escritos.
As intensas simplicidades escritas a respeito de alguém que se foi e sobre aquilo que não foi deixado e que, mesmo assim, incomoda e causa espanto.

J.M.N.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

cinco anos e o quê mais…

O amor nasceu na linha um. E fui tocando. Semelhante a um diário, um tratado de sem sentido, o gosto impune do beijo em cada vírgula, e, nas sentenças extremas, o tratar de feridas, costurar dos tecidos infeccionados e doloridos que ficaram ou que demoravam em cair. Pouco a pouco uma forma própria se anuncia. Novo corpo de vaidades e sentidos. Engolida a peçonha do tempo e da imprudência, nasce um furor como aquele de três décadas atrás. Um furor pelo novo, pelo nunca visto. E isso em mim foi como um banho de lavagem profunda, entre as camadas, as lâminas da consciência se afiando direto na carne. Dedicadas palavras. Palavras de cada dia e de tempos sem tempo algum. Os olhos de quem se foi, veias de quem ficou e perdeu no fim. Esse gosto de apelo na língua. Essa língua ocupada em criar a serviço da mágoa, do renascimento, da escolha, enfim, da saudade. Há quase uma era ando correndo por aqui. As letras se adiantam e como um raio destinado à catástrofe reaprendi a ver as cores do mundo, o peso das palavras, o infinito que pode ser morrer mil vezes antes acabar. J.M.N.

O homem dentro do que digo

Olhai e cobiçai minha derrota. Imolaram-me
Tornardes dente da engrenagem que me destrói
E com o corrosivo abraço, uma cadeia cinza
Envolve-me mais uma vez nos teus quetais

Tendes à boca, a víbora peçonhenta do algures
Ser nenhum assina tua obra – és um fantasma
Que quando aparece, açoita o escravo em nós
Teu pó viceja como a zoada do abate – o morto

E o morto soçobra de teus passos, agilíssimos
Embora finados esses mesmos passos, vilão
Tu és a oposta força que me escarnece, és nada
Tendes a lei e a doutrina como irmãs, e eu, nada

E teus tratados não conversam como eu, livres
Dos atentados da soberba, das miragens gastas
Internado no futuro, sou o que jamais serás
Homem, morno e estúpido, a carne simples

Feito a guisa de liberdade.

J.M.N.

terça-feira, 12 de março de 2013

Antecedente

“Parai tudo que me impede de dormir:
esses guindastes dentro da noite,
esse vento violento,
o último pensamento desses suicidas.”

O sono antecedente – Jorge de Lima

Aos que andam pela noite sem princípio nem fim, eu rezo com a voz nublada e sem limites – somos todos irmãos. Somos todos da mesma pedra no caminho de tantos.

Aos marechais das guerras vencidas por outrem, oferto meu uniforme de gala. A pose, a fome, meus objetos de pendurar luares. Somos todos, guirlandas de festa e fatalidades para algum covarde que não viu nossos sinais de alerta.

Aos homens do esgoto. Aos cérebros malignos. Às artesãs do corpo, minha coragem. Revolvem o que apodreceu, pensam em tantos assassínios que não lhes sobra vida para cultivar amigos e, por fim, dormem com tantos insones que não lhes sobra cansaço para que venha alguém e queira velar.

Aos amigos que partiram. Aos amores que morreram ou se mataram porque pequei. Aos fedores das lembranças sobre as cômodas de alguém, minhas desculpas mais sentidas. Não lhes soube as raízes e, portanto, não as alimentei. Não me soube a tempo e, portanto, envelheci.

E como aos cheiros não se emprestam carícias, sinto não ter chegado antes de ter sido usado. Apenas para evitar a lucidez tardia da derrota. Apenas para caber no tempo antes de toda a dor. J.M.N.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Desposse

Era meu apelo chamando e chamando
Agora, é o que não grita nem
Há silêncio em todas as notas
E avisto a distância impensável
Que antecede o lugar que me atém

O beijo fundo e sem gosto
Com que me gosma a língua do destino
Vai sucumbir – ferido e deposto
No que sentir a viva em seda
Nascente, doce e inteira

Do que não tenho, mas procuro
Um gosto que decerto antecipa
Lugar que não contem quase resposta
Todas as letras e, entrementes
Encontra-se toda a humanidade

Justo o que falta ao carrasco.

J.M.N.

Po(e)magem #9

Sobre foto de Affonso Romano (grupo Nanos)

image

Quando eu chego ao fim de tarde alaranjado
Venho minguado na grandeza que me alteia
Em todo canto me transformo e vou caindo

Não como os deuses de antigamente vou sumindo
Vou como homem me agasalhar adormecido
Dentro da noite que minha luz assopra e vence

Saudoso da eternidade em seu sorriso
Que ao ser solto me procura e reacende
Torna-me um sempre, ser alado e radiante.

J.M.N.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Porque voltei

Voltei por amor. Por medo. Por achar que não podia conquistar o planejado. Voltei por razões secretas, escusas até. Jamais simples ou impertinentes. Voltei porque a terra me saia da boca, porque meus olhos estavam cada vez mais admirados pelos campos de cereja em flor e pelas peles mouras dos cantos de lá. Sem mais, eu voltei.

Pisei os mesmos percalços, as mesmas intrincadas dúvidas sobre ser ou não ser. Pisei nas dores de outrem, nas esperanças de muitos, no silêncio insuportável de um. Pisei, afundando meus pés nas areias traiçoeiras do exagero, da instância última – a língua precipitada de afloramentos. Pisei meus princípios, meus medos, minha genealogia complicada. Cheio de forças, pisei no passado.

Agora a volta é antiga. A hora trágica da descoberta da solidão é um sonho repetitivo e as conversas sobre quem serei ou o que deixei do outro lado não andam mais na moda. Agora é o presente pastoso de pássaro sem grades, de monstro sem sustos e de canalha exumado. Meu amigo escravo persegue meus riscos. Agora é a memória dos amanhãs e a certeza de que muitos passos dados vazaram pelo caminho.

Voltei para repetir os triunfos sobre mim mesmo. E falhar mais uma vez às portas do tédio. Voltei para certificar os pecados mais desejados, os cumpridos, assumidos. Até aqueles, que levarei para o túmulo. Voltei, uma vez que por dentro eu era o mundo e por fora a mesma rua por onde passava a minha esperança de vê-la. Voltei para os pastos idosos dos meus campos da infância, ao choro fino pela morte de Dadá.

Voltei para esperar que meu dentro de mundo se revele e me rapte uma vez mais. Para mais um sempre medido – um ínfimo imenso. Quero que isso tome conta do que não suporto e me atire ao acaso. E me atire ao além do que é possível. Tão somente canção e poema. Tão somente o que sou mais no íntimo – tantos sentidos dentro do mesmo e finito conjunto de ossos. Um nervo percorrido pela vida.

J.Mattos

terça-feira, 5 de março de 2013

Sem defesas

Ando todo sensível.
Durmo quem nem por sobre um monte de plástico-bolha. O estalar crescendo, micro batalhas atestam-me a vida. Bolhas de ar extinguindo. Somos eu e minha ansiedade adormecendo.
Distante, o crepitar dum fogo. Lareira que dentro de casa acende o teu rosto. Venho atônito. Descambando. Tivesse escadas em nossa casa, eu teria caído. Tivesse a memória bem feita, diria meu primeiro poema como se fosse teu, que te espero uma vida e meia, inteirinhas.
Disseram que eu viesse aqui, sempre ao papel.
Confessar.
Fosse um padre, não falava.
Fosse meu pai, teria vergonha.
Fosse você, teria perigo para minha estadia. Podia afinar feito um líquido, indo seguir uma grota qualquer dentro da terra.
De tão urgente de ti, sou medroso.
De tão cheio de intento, meu tato sacode as palavras.
Elas se criam.
Comidinhas de nervoso e impressão belíssima sobre o que mais me agasalha – teu olhar me amando baixo e firme.
Não sou desse tipo que se renova.
E ao ficar mais velho, aprimoro o único sentido que me faz bem, o olfato. Com ele tuas distâncias se encurtam, os dias sem a tua presença se expandem e eu acrescento mil descrições sobre a perfeição de quando estás.
Faz-me uma certeza que seja. Morde meus livros, bagunça as fotos, termina minhas frases de despedida.
Faz isso para que eu supere a sensação desgastante de desejar ilusões. Para que não avoem as sementes envoltas de algodão – amor e medo. Fuga e fingimento.
Não que eu queira te dar todo o trabalho, mas experimenta levar um quarto do que trago nos olhos e entenderás.
Sempre que te vejo, são cem desertos que percorro, são mil as liras que me acompanham, são milhões os raios que me alertam e apenas uma a razão.
Vê o quanto o amor tem de companhia e a verdade ou os dias, têm tão poucas defesas contra sua chegada.

J.Mattos

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Pra quando a dona chegar

Sou teu de um tanto
que quando corto as unhas
faço como quem afia a lâmina
que revelará os teus confins.

Cuido dos pelos e dos cheiros.
Premedito o esquecimento dos cotovelos
só pra produzir a tua implicância,
pra que digas que tenho que me cuidar mais
e ofereça os teus préstimos.

Não te parece lindo
que todos necessitem de alguém
para se ter a si?

Por isso sou teu esse tanto.
E tomo banho como quem lava a casa
pra chegada da dona
E corto o cabelo como quem capina um quintal,
recanto de estar alheio ao tempo
E guardo lágrimas num potinho
que te envio por um conhecido
junto com um recado:

"Aqui quando chove
faz um frio maroto
que só aquele abraço de noite inteira
é capaz de extinguir"

E despacho o embrulho
imaginando que tingirá de verde
o teu olho alagado de saudade.
WDC

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Perguntas de Ontem

O carnaval passou, minha máscara caiu. Não há folia em meus salões e depois que a noite cai fica um silêncio que me assusta. As ruas não têm passistas. Alamedas não têm namorados. O som das coisas é apenas o cotidiano tomando corpo novamente – um bater de copos, afiar de facas, um sem fim de saudações sem sentido. A manhã depois de tudo acontece sem perdão. O sol é fustigante. Doem os olhos, as juntas, as paredes do coração e da memória. E apenas uma canção anima tudo. Fina, dissidente. A canção da esperança que sopra seus versos: foi melhor assim, vamos saudar o amanhã...

Pergunta de Ontem 1: o que farás agora que a tua máscara caiu?

Pergunta de Ontem 2: o que sopra tua canção da esperança?

Cartas a Ninguém (23.01.2013–19:47h)

Querida,

Há muito não te escrevo. Nenhum motivo à mão para te apresentar. Entretanto, não posso dizer que foi somente um silêncio. Existe um motivo, certamente. Mesmo que ainda me seja oculto, desavisado ou, simplesmente, reservado ao mundo discreto dos meus esquecimentos.

Dia desses fui à tua casa. Aquela sem portas e janelas. O abismo do entregar-se a qualquer preço, mesmo que seja a carne toda investida num único beijo. Fui para meditar sobre a frequência cada vez menor de minha angústia em relação à felicidade.

Como sempre, andando nos avessos.

E te encontrei por lá toda limpa, cores diferentes nos cabelos, nos olhos, no costume das roupas. Estavas na moda. Na velha vitrine que oferta e, cujo estilo, espera ainda alguém que desabotoe do engasgo finalmente. Estavas simples.

Fixei uns minutos tua presença. Não me viste. Não fiz questão de me mostrar. No fim dos minutos tudo passara. A saliva secou na boca. O vento extra da respiração exauriu. Mudou o ressonar de minha pele à tua presença. Eu estava descansado. Eu estava completamente.

Nesta hora tive a certeza de que em mim, o poeta nasceu primeiro que o homem. E o que mais o poeta encerra senão o mundo dentro de si. De maneira que minhas cicatrizes são as mesmas que separam os continentes e, no entanto, cabem em mim os bilhões de esfomeados que nos acercam. Os mesmo todos infinitos que esperam para ser o que eu já fui.

Soprei-te um beijo convincente. Passaste a mão na nuca, quase se declarando ao arrepio. De repente alguém chamou meu nome e eu voltei de onde estava enquanto te via existir tão distante. Voltei do mundo íntimo que me procria. Cheio de sal e textos e Orixás.

Sou aquele que protegido de mim mesmo, ainda comete infinitos em nome do que levo dentro. Uma inteireza por não saber nada sobre o futuro. Esta certeza de que meu passado não reclama mais o retorno dos meus passos.

Sinceramente,

J.Mattos

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Quem escreve os romances?

Ontem assisti minha terceira versão de “Os Miseráveis”, incrível saga sobre as condições de vida e relacionamento do povo francês com a justiça e outras instâncias estatais entre a batalha de Waterloo e os motins populares da Paris de 1832. É, para mim, além do mais, uma história sobre amor e revolução, esperança e sonhos maravilhosamente escrita pelo francês Vitor Hugo no século XIX. Sobre o filme-musical de Tom Hooper, diretor que já venceu o Oscar com o “Discurso do Rei”, tenho apenas uma coisa a declarar, e o farei com a mesma simplicidade entusiasta com a qual, imagino, o editor de Vitor Hugo tenha recebido os manuscritos originais: brilhante!

Emocionado pelos efeitos visuais e intenso apelo emocional que a história sempre me suscitou, passei toda a sessão em misto de enlevo e falta transido por um pensamento fixo, uma busca silenciosa por lembrança que fosse acerca de talentos contemporâneos similares aos de Vitor Hugo, Prosper Merrimée, Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Juan Rulfo e tantos outros grandes escribas. Quem escreve os romances de hoje? Quem são os sagazes observadores de nossa sociedade, que emprestam talento e tempo para delinear nossas lutas e vitórias, nossas contradições e dissensos?

Talvez coubesse mesmo perguntar: quem se importa com isso nos dias de hoje? Tudo à mão, a reflexão entocada nas gavetas, as ousadias política e social sedimentadas por discursos sub-reptícios e estéreis, a imagética bombardeada pela TV e pela Internet, disparando preconceitos e compreensões totalitárias e perigosas sobre tantos assuntos importantes, permitindo a proliferação virulenta de expressões inconsequentes, de opiniões, de gestos. E, por outro lado, tantos assuntos emergentes sendo tratados com velhas fórmulas intelectivas, escumalhos de racionalidades cristalizadas e amiúde perdidas entre os momentos da história. No caso do Brasil, a não tão longínqua ditadura e a ainda não bastante amadurecida redemocratização.

O chavão “temos que repensar os paradigmas”, talvez requeira algo mais radical – o repensar da própria concepção de paradigmas. Não estaríamos chafurdando no caos de modelos defectíveis e ultrapassados? Pior, há modelos seguros a empregar?

Os personagens de Os Miseráveis encarnam, em meu ver, estamentos sociais que necessitam nossa permanente vigilância e revisão: Fantine, vítima do abandono e da injustiça – atacada por ser mãe solteira e obrigada a dispor de sua dignidade às margens da cidade, por leitos alugados, o corpo invadido; Jean Valjean, aprisionado por roubar um pão para saciar a fome de um sobrinho e marcado com um número que o descaracteriza como humano e o transforma em objeto do estado.

Mesmo tornado cidadão exemplar, Jean não se desgarra do passado, moldando-se pela culpa de ter sido substituído em juízo por outro homem e relutante em aceitar seus bons feitos como pago da dívida sagrada que mantinha com seu Deus. O duríssimo inspetor Javert, cuja insígnia policial e o passado militar o fazem executar as leis de maneira inflexível e impiedosa. Esta é a razão pela qual, ao ver-se conflitado pela busca de redenção de Jean Valjean e o seu ato de libertá-lo em vez de mata-lo na barricada por estar espionando os rebeldes, não suporta o conflito interno e tira a própria vida. Atira-se no rio, não sem antes questionar como seria possível viver com o peso de um condenado aos seus olhos, ter sido piedoso quando ele mesmo não conseguira ser. Este não é um conflito presente? Não está sulcado na textura social dos dias de hoje?

Sem perdão para si, o personagem permite que a culpa seja mais forte do que o perdão e atualiza a perspectiva de Hanna Arendt sobre o auto perdão como uma potentíssima via de acesso para um melhor convívio com a diversidade social. Assim como o auto perdão, o reconhecimento de um ato de amor transforma o olhar exclusivamente revolucionário do jovem Marius, em um sentimento de cuidado ainda mais profundo em relação à sua amada Cosette, filha adotiva de Jean Valjean, o rebento pelo qual Fantine lutara em busca de sustento no início da trama. Perto da morte, Jean Valjean é declarado quite em sua dívida com a vida, tanto pelo reconhecimento de Marius, quanto pela confissão de seu passado à Cosette.

Nesse emaranhado de sentimentos e símbolos, o breque da revolução tira a vida de jovens idealistas e corajosos, relegando-os ao abandono da camada à qual, precisamente, destinava-se sua luta e soerguia-se sua voz contra a tirania, a exclusão, a falta de direitos e quitais. Entrementes, a mesma revolução mobiliza outros tantos perecidos na tutela de um estado opulento e sectário, cuja abandalha atiça as brasas da pobreza para servir-se do conforto dessa fogueira de perdidos. Quem são Os Miseráveis afinal?

Ao sair do cinema, uma imagem ainda me arrancaria uma última lágrima. Uma senhora muito idosa sendo amparada por duas outras senhoras levantava de sua poltrona e declarava baixinho: que maravilha, que maravilha. Musicado, filmado, encenado com cores e luxo nas óperas de Londres e Paris, a história de Os Miseráveis é mesmo uma maravilha. Ler o romance, escutar as belas músicas criadas para potenciar os diálogos e incrementar a dramaturgia da trama é um excelente exercício de aprofundamento no espírito humano para qualquer pessoa em qualquer idade. Desde as que tiveram a oportunidade de ser educadas com romances, até aquelas que esperam ver resolvidas as tramas romanescas em uma imagem, nas letras da última legenda.

Quem escreve os romances de hoje? Minha pergunta, enfim, fica aqui sem resposta. Apesar disso, ao terminar este texto, me dou conta de que o mais importante é que o romance ainda existe. Pode ter o nome de maravilha, maravilha, pode ter o nome do amigo que me acompanhou ou da pessoa amada que segurou minha mão enquanto eu chorava no escuro. Basta-nos olhar ao redor, reconhece-lo, ter vontade de questionar e registrar pequenos gestos, grandes experiências. Quem sabe assim, o escritor do maior romance sobre nosso presente tão fecundo e ao mesmo tempo tão terrível, pode ser você. J.M.N.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Contra o trágico

Dói minha mão pelo não feito
Meu peito aberto dói igual
Arpoados nos leitos, nos fins, na desgraça
Os cardumes de amor
Nadam em fuga, tão longe de nós

O mundo dói em mim
Quando a vida de alguém termina
Dói semelhante quando nasce
Ao riso grotesco dói minha língua
Há sabores demais neste desamparo

E cuido menos quanto mais dói
Meu ser finíssimo vai desaparecendo
Dói o espelho ao perder sua função
Sofre do avesso o verso que escrevo
Dói afinada e entrementes cuida.

Prescrita contra o demais, a minha solidão.

J.M.N.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Somos todos um teu poema


Hoje percebi que os anos já te pesam como segredos de ex-amantes. Que contas histórias com nitidez de detalhes: a renda do teu vestido de casamento, o nome dos teus netos legítimo e dos contrabandeados por essa tua descendência sem freios. Narradora trabalhada nos preciosismos, mas que não lembra pra quem contou as histórias, repetindo-as como quem quer se eternizar.

Afumentar, jejuar, catar, alinhavar, cerzir. Esses verbos que, de tanto uso, só a ti pertencem. Dos tempos anteriormente a nós mesmos vão saindo psicologias que nos explicam a todos.

Daí de casa nos observa, rainha, como formigas morcegando a perdição.

Esses filhos teus. Já obraram coisas que mais se assemelham a oficinagens do capeta. Mesmo assim nunca abriste o portão desse vazio pros crentes que batiam. Te reservava às novenas e Deus te obedecia (ai d’Ele!). Quando salvar era a tua súplica, ele acorria. Quando era para o Bem trazer e o Bem deixar, Deus operava bonitezas de não poder. Inclusive na vida deste um no que a tua demão parece que já se desbota.

Mas não. Não te ponhas em engano. Eu cheirava os livros do Zeca a te buscar, essa tua ternura que eu fingia ser pra ele sendo pra mim.

Queria teu olho abandonando a máquina e rebrilhando a avivamentos como quando eles se fecham na roxura do açaí. Queria tua mão pintada e o teu cabelo, mais uma vez, vermelho. Poder te dar uma última chance de reveres os teus sete erros como quem mira sete versos, e não encontra um poema. Queria essa tua liberdade de viver apenas pra quem se ama. WDC

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Fúria

“Thou therefore whom thou only canst redeem,
Thir Nature also to thy Nature joyn;
And be thy self Man among men on Earth,
Made flesh, when time shall be, of Virgin seed […]”

John Milton – Paradise Lost, Book II, lines [280-285]

O Paraíso é certamente sem sentido. Dominante o gosto pela morte. Vem sempre a despeito de tudo. Remédios, coragens, escritos. Esforço-me para usar a maquiagem de todo dia, por o disfarce e sair por ai. Hoje não, hoje não. Espalho os frascos de mentira. Serei apenas eu e minhas todas desgraças. Hoje o contato com a mais secreta estrutura me acende. O mais essencial e primitivo me expulsa da cama com a força dos megatons de Hiroshima. Primeiro, esmurro a parede. Depois decreto a morte de alguns amigos de antigamente. Execro o sorriso dos vizinhos e vejo tão pouco à luz do dia que dispenso a visão. Será, então, o que sinto. Apenas isso. Mais do que posso diminuir com eufemismos. Prefiro a boca amarga da dúvida que de cima do muro acena solícita e sedutora. Como podem as ruas me dar caminhos? Não sigo seus mapas. Quero estar perdido. E quero tanto que orações invento, que deuses exumo. Não vou por essa retidão sem graça que me impinge os parentes, os professores o amor até. Vou degradado e sincero, a preferir o sangue dos pés que andam à saudável refeição de quem não sai do espelho. Isso me custa um bom pedaço. Pedaço que dou como fosse uma fúria, como se fosse a carne de Milton – “And be thy self Man among men on Earth, Made flesh, when time shall be”. E se é isso e apenas isso o que tenho – a fúria – dou-a também a quem neste dia se encontrar comigo. Fúria de ver tudo novo e cuspir aos que me acusam de absurdo, fúria de descobrir que nenhuma tragédia é maior do que o alcance das palavras que aprendemos. E continuar aprendendo palavras para escarnecer o sentido duvidoso da alegria, fazendo-a tão sensível ao corte, como é a solidão quando invadida. J.M.N.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Detesto Belém

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Escrevi esse texto em 2010, esperando poder publicá-lo numa revista da terra. Infelizmente não foi possível. O amigo Angelo Cavalcante o abrigou em seu blog Veia Pop e por lá ele ficou conhecido. Recebi uma ótima quantidade de e-mails comentando o texto e fiquei com a impressão de que tinha acertado a pena. Num começo de ano onde pipocam discussões acaloradas sobre Belém nas redes sociais, evolvendo, inclusive, amigos meus, acho que vale à pena reproduzi-lo em nossa casa. Entre idas e vindas, bem ou mal, falar sobre Belém é sempre instigante.
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Detesto Belém! Seus azulejos e sobrados antigos. Detesto esse charme de cidade-luz, incrustada na densidade das matas do Norte. Algo que não nos abandona nunca, mesmo que estejamos de passagem. Não gosto de imaginar as ruas cercadas de mangueiras centenárias por todo o centro da cidade. Muito melhor percorrê-las, sentir o corpo de suas lendas. E partindo de um desagrado ambivalente a respeito da sombra de suas árvores e da distância entre aqui e meus sonhos é que entendi que meu coração já estava cercado de presenças, da alegria dos encontros, dos cheiros esquisitos das coisas de minha terra. Descobri, em meio ao tumultuo de ir e vir, que o mais triste seria não ter raízes, não pertencer a lugar algum, não poder dizer que nasci em uma cidade cujo nome em si é um poema – Santa Maria de Belém do Grão Pará.

Em minha cidade tem chuva farta, a qual não cansa até que sequem as nuvens e estas, vizinhas da floresta mais imensa que já se viu, não sossegam assim tão fácil. O choro dos céus regula a vida das pessoas, ordena o dia e faz com que os amantes marquem seus encontros para depois de passar a chuva. Um banho nessas águas longas de, às vezes, dias seguidos é mais do que uma experiência, do que uma brincadeira infantil, é sentir-se limpando escaras escondidas no centro de nossa existência. A chuva de Belém é como um outro rio a descer sobre nós.

No mercado do Ver-o-Peso, mulheres certas das simpatias de amor vendem suas efusões em garrafas coloridas e perfumadas, chamando os clientes a resolver seus problemas sentimentais com alguns banhos de ervas e iguarias que só existem aqui. Há praças e cantos que exalam história e triunfos de civilidade e vanguarda. Foi de seu Forte do Presépio que partiu a primeira esquadra de guerra que acudiu o vizinho estado do Maranhão cercado pelos holandeses, no século XVII.

Quando estou longe, o pensar em minha terra dói muito além de meu peito. Dói no esqueleto que sustenta minhas aventuras pelo mundo e minha estrutura de gente recorre às linhas de Dalcídio Jurandir, Rui Barata e Paes Loureiro, além do Verde Vago Mundo de Bené Monteiro. Quando estou longe, doem-me os versos da canção de mestre Edyr Proença e Adalcinda Camarão, em cujas linhas se pode reconhecer um amor de adoração infinita pela cidade natal, traçado no morno de tardes descalças, nas lembranças do povo, do rio e dos peixes. Estas lembranças salvaram muitas noites solitárias em terras frias e distantes.

Tudo se vê em Belém. Esquisitos monumentos ornando as vias. Casas antigas com imagens de santos nos cumes mostrando a força de uma fé que congrega a todos e se renova. E a cidade anda pelo mundo. Seus filhos são fiéis adoradores do pertencimento, bem mais que simples bairrismo. Espalhados pelo Brasil e pelos continentes, ao falar sobre Belém, parecem querer traduzir a necessidade de levar a cidade no bolso, onde quer que se vá, como uma memória mágica, um amuleto para as horas de saudade intensa ou um código para o reconhecimento dos pares. As pessoas daqui não dizem que são familiares de Silvas, Mattos ou Oliveiras. Elas são de Belém.

A Belle epoque nos deixou o Theatro da Paz, onde ainda hoje podemos assistir festivais de ópera. Tem uma praça que congraça boêmios em frente a uma igreja, onde se podem escutar raridades da música brasileira ao ar livre, comendo um bom peixe frito e escutando as histórias dos loucos de plantão. A cidade tem tradição em reunir sagrado e profano, de concluir os rituais religiosos com festas pagãs de rara beleza e personagens inesquecíveis.

Em outubro de cada ano, as pessoas, como santos, andam e rezam e pedem graças, compõem ofertórios, visitam parentes, cozinham pato no tucupi, maniçoba e amenizam suas culpas. Caminham horas pelas principais ruas da cidade, numa procissão pela Virgem de Nazaré. Muitos destes fiéis vão atados a uma corda que, vista de cima, parece uma imensa cobra d’água a serpentear no sacrossanto espaço da fé – o Círio de Nazaré é para mim o boato mais forte de que neste ponto da Amazônia, encontram-se muitos dos bens celestiais, a confirmação de que o Brasil tem terra e gente abençoadas.

No último dia desta festa, os fogos abrem o manto negro da noite e riscam nos olhos da multidão como que estrelas efêmeras de cores várias trazendo para dentro de nossa genealogia, uma lembrança de existência bem próxima ao paraíso. Como não ter o ritmo do coração alterado ao ver o espetáculo da noite em festa? Como não percorrer o arraial e tentar a sorte nos folguedos? E como não provar as comidas, não querer saber da história ou conter os sentidos nesta girândola de novidades?

Assim como vive banhada pelas águas do rio Guamá, Belém banha as palavras que escrevo desde sempre. E essa presença em nossa biologia é difícil de vencer. Mesmo tendo de criar asas, de buscar fugir um pouco dos seus contrastes e derramamentos, e ir cheirar o mundo que sempre vi nas revistas e sobre o qual ouvia nas histórias de família e amigos, não foi fácil partir. Não foi simples deixar estas ruas. Impossível esquecer a arquitetura, ainda mais achando seus traços em lugares como Minas Gerais, Bahia e mais distante, em Portugal.

Detestei Belém por me causar esse tipo de espanto. Por se esconder em minhas histórias sobre o que temos aqui – palácios, palacetes, a Catedral da Sé, as obras de Antonio Landi, a igreja de Santo Alexandre. Por promover texturas em minha fala delegando-me um sotaque único.

Como tudo o que se ama e teme, Belém vive em mim como a morena que primeiro inspirou meus versos, como a cigana que leu em minha mão a verdade líquida de minha alma, sublinhando que eu vinha de um lugar onde o céu tem estrelas únicas, que só reluzem deste lado do mundo. Algumas vezes tenho vontade de partir, outras vezes vontade de nunca tê-la deixado. Belém dorme junto comigo sempiterna e dolorida quando me ausento, escancarada e turística quando regresso. Oferecendo sempre algum canto novo, alguma nova forma de me seduzir e manter.

Conquistei títulos, avistei lugares, li manuscritos de poetas admiráveis, mas voltei correndo. Cruzei o Atlântico sem pestanejar, assim que senti que os sabores daqui morriam em minha boca, que meus amigos iam ficando íntimos de novas pessoas, dos novos lugares, dos monumentos e prédios reabertos. Dá medo pensar que esta cidade pode me esquecer. Que pode pensar que eu a traí em outros portos, em outras praças, maravilhado pelas descobertas. Quando parti sentindo raiva por sua existência, remoendo o infantil apego pelo que não era meu – o desconhecido. Quando atinei para sua presença em minha saudade mais sofrida, achava, presunçoso, que ela era minha. Foi de longe que descobri ser seu prisioneiro e como nos versos do poeta português Luis de Camões, este, sem dúvida alguma é um estar-se preso por vontade. J.M.N

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Imprudência

Para A.P.D.

Poucas vezes vi tamanha confluência de perfeições.
Olhos, cor, cabelos negros, atrevimento.
Incômoda presença que não me está ao lado, mas numa tela, solando sua incrível textura de impossível por muitas horas da minha tarde sobre as ondas da rede.
Será possível que eu esteja vendo um ídolo antigo, esculpido em virtual realidade? Não em bronze ou pedra – carne, osso, funções renais, coisas assim.
Tão viva que nem a distância do espaço ousa calar o que ela causa.
Olho-a com os temores de quando eu descobria meu corpo e de pronto me vem uma janela suspensa.
À noite, relicário dos amores primitivos, entravam ilusões e cristais pelo balcão onde eu esperava que o mundo me conhecesse.
Ferve a têmpora desacostumada a ser tomada de surpresa. Sinto esse corpo que não pode ser meu. Tão potente. Tão estrangeiro.
A imagem dela mais que perfeita em seminudez projetada, feita pelas mãos do fotógrafo para desmantelar a gente.
Arrasto o trabalho. Golpeio tudo que não diz respeito à perfeição. O dolo acontece por tê-la na ponta dos dedos, tocada na inviolável figura de musa.
Ela cede ao meu olho e parece piscar-me de longe. Uma única chance.
Seu maneio de cabeça da foto seguinte foi para mim, certamente.
Vou com fome.
Boca aberta direto à luz daquela imagem.
A língua em pluma sente o deslizar estéril da tela. Led ao que parece, sem gosto algum.
Ela não entrará nos meus sentidos por essas vias. Não há tato que eu possa dedicar a ela e então construo o que me recompensa.
A ideia de que foi apenas intuição.
De que alguém assim não pode existir. Se não a vejo frente-a-frente, inexiste.
Minha tarde está refeita.
A partir de hoje andarei com a cabeça baixa, impune por ter lambido a mera possibilidade e com medo de encontra-la por ai, tornando-se aquela que me diria para eu ter cuidado com o que desejo. J.M.N.