quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Minha única outra pessoa e o perdão da vida inteira


Para o meu filho Cauê dos Santos Mattos, a melhor pessoa que conheço.

Em cada mínimo dedo meu havia uma dor de fratura. Encharcava, ardia, rasgava em cada veia, em cada feixe nervoso uma violenta tempestade. Minha boca que acordara banhada de um astro logo logo adormeceu, como que para sempre. Nenhuma palavra eu daria à luz porque dentro de mim havia um deserto de sentidos, de significados. Escuridão de erro e descuido. Havia um ato de contrição inscrito, por cada ano de minha idade, por cada número de meu registro civil. Eu era simplesmente frêmito e ocaso. Como não faltasse mais nada a que se debridar em minha musculatura, houve aquele aceno de morte, aquele olhar de desgosto. Como tantos que já vi. Uma lança em meu peito. Senti-me um fracassado. O desalento do meu dia culminou em lembrar exatamente de cada uma das vezes em que fui ferido. Cada momento de fúria em que dispus de minha autoridade infundada para dobrá-lo e, pretensamente, chama-lo à realidade. No mesmo momento porém em que tive de lhe dar a mais triste das notícias, ele me veio com a salvação própria das pessoas iluminadas. Com a força titânica daqueles seres que antes de virem ao mundo, receberam o tato da bondade e a língua delicadíssima da compaixão. Seu olhar não trazia raiva, frieza. Não era o olhar de alguém que estivesse destroçado. Ele me olhou bem no fundo e disse para eu ter calma, todo mundo erra, não fica assim. Dentro de um luto potentíssimo que se instalava como por algo que jamais me viria sequer como memória, seu perdão nasceu e benzeu toda ferida e toda tristeza que me inundavam. Sua mão na minha, reprogramou a bomba relógio na qual me tornara. Mas houve explosão. E o alastrar dessa explosão foi de conforto. As ondas de impacto reacenderam cada carinho que eu recebera em vida. Uma memória quase mítica e reveladora. Num único gesto, em uma única frase, aquele menino mostrou o tipo de homem que ele é. Mostrou-me o tipo de amor que tanto nos falta pela vida. Ele não será uma pessoa de bem. Ele já é. Minha boca acesa, de mil astros ensopada, novamente festejou. E pude dizer-lhe que tinha orgulho em ser seu pai, que não aprenderia com mais ninguém e em tempo algum o que ele me ensinou num único minuto de fraternidade. Diante do gesto dele, não há outra possível coisa a fazer, senão lidar com tudo, até que eu mesmo me perdoe. Se esse tipo de irmandade é possível. Se esse tipo de paternidade filial pode existir. Então, quem sabe, a humanidade tem mesmo a chance de durar. J.M.N.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Da distância entre os acenos

 

Estava naquela casa como quem mora numa certeza. Sabia suas paredes, suas goteiras e seus esconderijos. Sentia-se bem, dizia, e esse bem, no pensar de Zélia, traduzia-se em estar aliviada dos descaminhos da vida, os quais se acumulavam em seu íntimo desde os seus primeiros choros. Desde as dores do parto de sua mãe. Era como um azedume que reaparecia com uma frequência não desesperadora, mas incômoda. Era tipo um alheamento, um esquecer-se de si.

Por isso engoliu várias respostas possíveis até pronunciar um não faminto e esquálido ao gesto do Cizico. A mão pousada em direção ao céu convidando-a para um passeio de barco, com provisões suficientes pra não voltar naquela vila. Ele a queria por perto quando se abrisse a boca daquela primeira curva do rio. Aquela curva respingada de filhos de seus irmãos, de panelas de sua mãe e lembranças do seu pai. Aquele rio que tinha cheiro de pessoa idosa. O cheiro do seu avô, pescador dos bons.

Zélia não veio. Apesar de saber que seus corpos se sabiam de uma forma tão perfeita que parece que Deus pessoalmente veio talhar o lugar de encaixe. Cizico iria sentir falta da sua comida, dos seus sucos e da sua forma de deixa-lo incendiado de ciúmes. Zélia nunca mais veria um amor nascer bruto de uma raiva provocada pelo silêncio dele. Cizico queria estar no meio de algo vivo e corrente, mas ali, no colo do rio, enquanto durasse seu navegar, inventaria preces e bênçãos pra que aquela água o fizesse esquecer o tanto de sua carne que deixou por baixo das unhas vermelhas daquela mulher. WDC

Exegese à moda de um canalha

Este ano já não trocamos mensagens de aniversário; as de boas festas possivelmente não chegarão. Teremos árvores de natal, felicidades. Cada um em seu canto. Ganharemos presentes e votos de um ano bom. Os que ofertam, não sabem das alianças escondidas – não esquecer. Daqui pra frente teremos, finalmente, duas vidas exclusivamente nossas. A de cada um, em seu tempo preciso. É uma merda dizer isso. Constatar. É tão odioso que não assines mais o meu jornal. Que todos por ai digam que sofres de exílio. Este ano já não lembrei direito do rosto dos teus pais, da estupidez do teu irmão. Não gravei mais nada em meu corpo. Fiquei pensando nos teus bichos enterrados no quintal. Às vezes, em meus romances escritos de maneira tão imprudente, registro que eu devia estar lá. Junto deles. Para que a terra me comesse. Morri exatamente em três de abril de dois mil e seis. Foi quando tive de vez a tal compreensão. Eu me encontrava preso, como o poeta que avista a Terra em uma fotografia. Vi meu mundo tão pequeno e impermeável naquele quarto da residência. Eu já estava acabado. Eu devia ter tido um enterro. Devia ser um defunto. E assim talvez, mas só talvez, não tivesse que comer a terra de tantos caminhos, sorrir dizendo que não me importo, seguir sentindo que já não tenho lugar entre os bons. É terrível que eu continue vivo. Entretanto, ainda tenho esses botões que premir, essas linhas a me socorrer. Posso confessar que vivi. Posso até te dizer muito obrigado por não confiar mais em mim. J.M.N.

Pedras de papel e poemas Teutões antigos

Assino: coisa. Simples assim. Minha substância acabou mais que depressa quando saí da aldeia. Fui-me enchendo de mundo, do cheiro dos abraços de pessoas que nunca mais iria ver na vida. Costurei minhas roupas feito alfaiate. Meus ternos foram feitos para durar. Minhas peles para esfoliar de quando em quando. E acontece que era eu atirando aquelas bolas de papel no parque. Para te acertar mesmo. Se abrisses uma delas que fosse, verias tantos monólogos impróprios: conversas com meu corpo, sujeiras para as mulheres da noite, abelhas nos ouvidos para cooptar raposas. Infesta-me essa civilidade perfumada da gente. Acaba que nunca acabamos. Apenas dissemos o que precisávamos naquele momento. O ponto final nos haverá senhores idosos, acho eu. Tantos rascunhos por terminar e ai, te vejo comprada com ursinhos de pelúcia. Queria ser tão simples. Ou simplista? Dane-se, no fim das contas a horda passou ao que somos e um dia o que somos passará a outra coisa. Assim caminharemos. Espero não estar mais. Por hoje chega. Não te ofereço nenhuma mais palavra. Tem só um verso escrito em maio ou janeiro, já não sei. Em resumo ele diz que posso seguir em frente. Isso mesmo: autorização pessoal. O que diz suas rimas? Quem disse que poemas desse tipo – libertador – tem que ter rima. Lá vem você com seus esquadros. Até mais! Com minhas próprias palavras. J.M.N.

Agora que acabou eu começo

Agora que acabou eu começo tristeza
Quais coisas me pedes? Um terno? Um pente?
Minhas abotoaduras de ouro?
Não reconheço essas dívidas que apresentas
É um fim de vida que não houve amor
Não é a minha. Contradições sim, desterro...
De onde vens com esses vilões de preto?
Vi que te acompanham com as bocas secas
Beberam tua água, tuas lágrimas, teu suor
Como te revelarás humano?
Não urinas, não choras, não resfrias
Agora que acabou eu começo a dizer
Diante do que fomos, fui muito pouco
Ainda faço todo o expelir de meu corpo
E ácido me onero com a eternidade
E furioso me reconstruo com o que sobrar
E tendo sido acusado:
Espero passar os anos para que sintas
A culpa é um peso de dois fardos

J.M.N.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Show Antônimo e o Nome da Coisa

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De volta a Belém, esta semana, depois de dois anos de ausência initerrupta, o músico Antonio Novaes mostra ao público paraense a fusão de dois projetos que foram criados em São Paulo e na Europa. “Antônimo e O Nome da Coisa”, mais do que isso, será para ele uma celebração, pois vai reunir antigos e novos parceiros no mesmo palco. As cantoras Ana Clara Matos, Gláfira Lôbo, Aíla Magalhães e Juliana Sinimbú e os músicos Patrick Florêncio (baixo) e Artur Kunz (bateria) estão confirmados. Além deles, o show ainda conta com participações especiais das guitarras de Renato Torres e Tom Salazar Cano. O show começa às 20h, no Teatro Gasômetro – Parque da Residência (Av. Magalhães Barata – São Brás).

Texto integralmente retirado de: Holofote Virtual

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Quando toda a razão cabia nos vídeo games

Acontecia entre os estragos da casa. Ele se arremetia, sempre que o pouso indicava perigo. Ia aos carros forjados de sua imaginação, andar por ai entre Limoges e Malibu. Muito próprio ele era de ser julgado o agressor, o puto. Aquele que esfregava em suas caras, o que não suportavam. Era ele, sim. Ele o malfeitor de empregadas e adorador de mantras. A despeito de altas malícias, a casa cheirava a prosperidade. O odor enganoso da vitória. Havia alguém empurrando outro alguém goela abaixo constantemente. A loucura sempre arranja um jeito de procriar e vencer a normalidade. Não havia infortúnio pior que os abraços. Antes de mais, voltemos a ele, o inútil: sabes qual será teu fim, não é? Era isso que lhe impunham. A pergunta respondida pelo medo de ele vir a ser o que não coubesse no alhures de suas simpatias, de suas dulcíssimas invalidezes. Estes programas de hoje que repetem infinitamente que podemos. Autoajuda refrescante e idiota. Era ao que vinham uns aos outros. Ajudar-se a sentir, viver, destruir as vontades fundantes de todos. Ele esperava o almoço passar. As duas mais odiosas horas do dia. Todos à mesa, contando o que não puderam vencer. Calados e sorvendo o sal da carne de panela. Ele acometido de impossíveis. Quieto e ardente, trocando sinais com a menina da vez enquanto servia-se de arroz. Violador de normalidade era o que ele era. Ainda bem. E quando o ritual desimportante acabava ele sorria. E sempre que perguntavam, respondia ter-se lembrado de uma piada. Seu jogo perigoso começava. Um desafio no qual seu caráter se fundara. Quando aquilo passava e as brevidades da fome cessavam, viam-no rindo em frente aos seus jogos eletrônicos. Disperso vivente entre os sufragados. E quando insistiam em saber se ele estava bem – perigosíssimo ele atirava: acabei de perder duas vidas, e você? Aprendera desde muito cedo a dizer a verdade, acima de tudo. J.M.N.

Trilha sonora…

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Nós os dois e a vida inteira

Isso não se ensina na escola. Tampouco a vida nos ensina. Não há manuais, compêndios e ainda assim, tema mais que conhecido, pertencimento. Ouvi essa saudade como uma dor de vento que me entrava ouvido adentro e fazia silêncio em todo meu corpo. Esse vazio desconcertante que não engolia a mínima desculpa. Explicações jamais seriam suficientes. Estávamos lá. Nós os dois. Terríveis, cercando cada qual com mais e mais carinho e entrega, paixão e velo. Entupimo-nos. Não era assim? Aquela nossa concepção falha de totalidade. Eu me pertencia mais do que a ti e por isso, quando me tomaste, fiquei sem pertencer a ninguém. Coisas soltas que completavam então: ver um filme sozinho, leitura em voz alta, alguém chegar e dizer – que lindo que tu és. Saber-me estranho a ti era uma aventura. Curtia aos montes. Nunca desisti do egoísmo. Essa parte pendente de todos nós, a solidão. Ora querida, ora amarga, odiada. Referida como a desgraça maior. Para mim o último degrau de mim mesmo. Não a detesto, não conviveria com ela se não fosse tua lembrança. A vida inteira estava ali, diante de nós. Acho que, afinal, tínhamos algo de diferente. A noção de vida, a fração inteira. Ou então era isso: não nos cabia uma vida inteira, apenas nós dois – enquanto durasse. Enquanto o infinito não viesse nos cobrar seu empréstimo. J.M.N.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Que assim seja

Fúria minha, livrai-me da ternura e de qualquer outro sentimento que faça o coração pulsar azul. Dai-me a tormenta e a guerra. Sem trincheiras, por favor. Quero me preencher com uma química que não deixe sobreviventes ou significações. Hoje só quero o amor como pretexto pra uma lascívia qualquer. Abre dentro de mim uma senda sem retorno, uma clareira sem pousos, uma varanda sem cadeiras. Desmonta o que o processo civilizatório fez de mim e faz-me desejar a solidão como quem se lança ao mar. Quero ser a ilha vazia onde nasci. Ser menos que nada nem flor pra se cheirar. Quero estar apartado de tudo, inclusive da história compartilhada. Inclusive do tempo em que fui tão de alguém que não sobraram narrativas contáveis que forjassem, em amarelo artificioso, um final edificante. WDC

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Escrito para excluir solidões

Lá vêm as vespas todas zunindo. Enchendo cada centímetro do ínfimo ao redor com sonzinhos de peito cheio. Gritos de presença. Lá vêm as lanchas riscando os rios, lá vêm deixando-se depois de irem. Seus rastros nos quais meu olho se esvai. Meu mundo líquido é de dentro e de fora. Corre em mim, incorro nele. Lá vêm as pessoas da família e seus ancestrais e histórias. Lá os vêm dependendo uns dos outros, seus risos, seus encontros esparsos. Não saber se podem amar. E depois aquele silêncio queixoso de quem sabe que nada será como antes, mas pode ser muito bom de vez em quando. Lá vêm meus irmãos todos juntos como em um retrato cantado – se houvesse. Aquele de sangue, os que escolhi e os que me escolheram. Lá vem a frátria animada, pronta para vendavais. Garrafas secas deixadas, muita esperança sorvida. Filhos, afilhados, orações pela vida – os irmãos já estão. Lá vem a vontade do tempo, reinando sobre tudo quanto vive, reinando sobre meus risos, minha pele que descansa das mentiras e se solta, cheias de traços e vícios – minha pele demais usada. Lá vêm as marcas do amor. Todas juntas em dias de ócio, todas duras em dias de mágoa. O que fica não é mais que um pó fino sobre as coisas vividas, o pouco pó do esquecimento diário. E o que se leva daqui deste assoalho terreno senão a biografia contada por outrem, fomes decorando a mesa, os conselhos de tantos, os senões de nós mesmos? Nada cala se há uma palavra para ser dita, se há razão em dizê-la. Se há uma solidão por perto, daquelas que quer comer tudo sozinha. J.M.N.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Porque ela chegou tarde demais

Ela veio quando eu já tinha pernas e braços, podia morrer por ai, enlaçar corpos potentes ou fracos demais. Ela chegou depois que a maior madrugada que tive, acabou na boemia de um porto egípcio – uma história que nem sei se é minha. Ela veio depois que eu fraudei a receita, andavam me procurando. Carnês de pagamento na mão. Um vexame. Ela chegou tão depois de eu ter sentido o sangue entre meus dentes e, obviamente, depois de eu ter corrido com a carne roubada por ai afora. Ela chegou com sua certeza e finesse muito, mas muito tempo depois de eu ter esquecido regras básicas de convivência, de como utilizar os talheres. Ela chegou bancando a oferta de quem me deixara penhorado. Ela chegou para policiar territórios, muito depois de eu ter me tornado um ausente, um cigano, um preposto de atavismos, de ideais, de eleições do óbvio. Ela chegou atrasada no único dia em que não poderia – minha partida. Sem poder dar adeus ela chegou perguntando se alguém me vira, se sabiam como me encontrar. Mas eu estava lá. Nem escondido nem às vistas. Estava ao seu lado, ao redor de seus medos. Eu estava sendo preciso no que eu sentia e muito maior do que me cabia no peito, meu coração dela se enchia. Mas ela chegou muito tarde. Chegou a mim, antes mesmo de ter chegado a ela. Que longa estrada ela tinha. O presságio me disse que esta imperícia teria um preço. Mesmo antes de ter-se chegado, ela demorou muito tempo buscando as razões de não se encontrar. E sem uma coisa nem outra – razão e tempo – ela ficou perdida, acenando para quem não estava mais. J.M.N.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Nunca é cedo demais para partir

Quando a gente sai gritando de dentro do quarto abrigo, o corpo da mãe deixado de repente, em meio a um cochilo, bem prestes a começar o medo do que virá. A vida vem feito um sopapo, e por essa dor inicial, fundante até, a gente chora. E se acostuma a chorar sempre que perde, sempre que ganha, sempre que a tarde não traz senão a ausência de alguém. A gente já cai vivendo no mundo e espera viver mais depois da morte. A gente espera que a eternidade seja melhor do que a água da chuva explodindo nosso romance, liquidando nosso sono profundo. Nunca é cedo demais andar mais perto de si. A gente fica apertada dentro do quarto da casa. Esperando que a vida invada nossa garganta, que desafie nossos limites e não pare nunca. E se a gente esquece que já está na escada dos anos, na corrida pelo descanso mais quieto que existe? A gente que já tem escaras suficientes aos poucos anos da juventude, ao insulto mais vergonhoso que atiraram – a gente, essa gente de escaras francas e não eufêmicas cai no mundo, segue a estrada. Qualquer estrada que rime: fuga e solidão, saudade e vontade, amor e ódio. A gente segue. E às vezes não escreve pra casa. Não dá notícias em anos. Não é por maldade, por esquecimento, por orgulho ferido, mas pela vida que se conquistou na renuncia. Durante a digestão do impropério, das horas extras de vigília culpada. Razões mil para ferir-se e jogar com a sorte. Nunca é cedo demais para pedir as contas e não querer mais escutar que a sua casa não é sua. Que a presença física é uma espécie de moratória incômoda do que os outros não foram e veem na gente. Nunca é cedo demais para partir. De dentro de alguém para o mundo, de dentro da gente para o infinito. J.M.N.

Trilha sonora… (versão magnífica de Antony para a música de Bob Dylan)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Permissão

A febre não cedia. Ele envelhecia anos sem conta bem diante de nossos olhos. Resolveu pedir. Não queria ficar. Todos ao redor queriam tentar. Ele não. Depois se ficou falando em direitos humanos, processos judiciários, possíveis culpas. E ele lá, dedicado a sofrer tudo por todos naqueles últimos dias. Puxava fraquinho, a beira do vestido dela e ela envolvida na conversa segurava sua mão com carinho, porém nenhuma cumplicidade. Sua voz sumia. Neste minuto o menino entra no quarto. Olha fixamente para aquela pessoa esquecida por todos no recinto e se aproxima. Segura sua mão e pergunta o que ele quer. Um cochicho, um sorriso. O menino se deita ao seu lado. Ninguém repara. A respiração vai descendo até os últimos andares daquele corpo surrado, maltratado pela conjunção de medicina, desencontro e o medo impermutável dos filhos, irmãos, parentes, enfim, que não suportavam vê-lo ir. Jamais lhe perguntaram a vontade. O menino cantava uma música que aprendera e em cujo refrão, havia as palavras céu e azul. O menino ia diminuindo a voz. Muito tempo depois, quando finalmente todos resolveram deixar-se e repararam em quem realmente importava naquele lugar. Viram-no morto. Assustados com a cena, o menino tranquilo ainda cantava, com a mão do doente segura em suas mãos. E aquela imagem de paz inaugurou o fim daquela pessoa dentro deles e os trouxe à verdade da libertação, com uma única e impressionante revelação. Alguém perguntou gritando: o que você fez com o vovô? “Eu deixei ele ir”, respondeu o menino. J.M.N.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Os palmos restantes (ou “ao bater em sua porta”)

Para ela que ainda teme o que se vem repetindo em silêncio.

Hoje eu me sinto bem. Nenhuma nova ruga em meu rosto marcado. Sua descoberta estancando meu envelhecimento. Eu mal consigo ver o seu rosto, porque não tenho mais que sonhar que vens. Estás. Tão próxima e evitando dar mais que um passo de cada vez. Uma prudência que levei tempos para entender. E admirar. Porque dela eu jamais vou beber. Não. Estou do outro lado. Pronto para os passos finais quando chamares. Sempre atento à tua beleza, da qual dizes ser uma generosidade minha. Que seja então. Que seja um qualitativo que imprimo aos ambientes onde estás. Fazes tudo nesses meus últimos dias ser melhor. Simplesmente por não se dar conta da tua influência terrena em minha carne. Esses pequenos segredos que se endereçam à tua lembrança, ao mero pronunciamento do teu nome. E isso, dizer teu nome, faço quase como haja matéria. Que de tão presente e quieta dentro de mim, és, estás aqui. Como tudo que a loucura irreversível apregoa. Nascendo apenas em minhas sinapses, até que possamos enxergar unidos, a um horizonte, a um destino, a um atalho qualquer para a mansidão desejada. Esquecer os amores difíceis de achar e os mais difíceis ainda de manter. Vou caminhar calmamente até tua casa. Suspirar pelas ruas da vizinhança minhas certezas. Roubar hortênsias para te dar no primeiro encontro. Diante da tua porta, baterei três vezes: uma por tua beleza, uma pelo que temo e outra para te pedir abrigo e dizer que estou pronto. J.M.N.

Para ler escutando…

Organismo

Nós éramos uma espécie de líquen. Indivisíveis. Atados à vida das genealogias. Nossas árvores por assim dizer. E que remédio? Pessoinhas feitas para o bom tom das continuidades. Éramos aquele laço bem dado, cego e surdo, que não cedia a ninguém, a nenhuma mão, nenhuma conversa de mau gosto. Comíamos – os dois – o mesmo tipo cruezas. Ela com opiáceos e flores bonitinhas. Eu à moda bárbara, em quantidade e ferozmente. Andávamos de mãos dadas e sutilezas e nossos olhares escondiam nosso horror às pobres almas que não haviam nunca encontrado uma história como a nossa. Até ai, tudo bem, nenhuma novidade. Mal sabíamos que o sabor dos ventos mudaria, que as árvores seriam comidas por pragas naturais e que um dia, nossa mutação evolutiva deixaria a simbiose à sorte de nossa escolha. Foi quando deixamos a natureza simples de alga e fungo e nos caiu soberbamente sobre as cabeças, o peso descomunal de nossa humanidade. J.M.N.

Pressuposto

Pensei que era para avançar com o riso, com a maneira déspota de arrancar um beijo. Fazia semelhança de estarmos os dois na condição de traidores. Essa foi a deixa. Iniciamos o espetáculo. À meia luz, nenhum lugar ocupado na plateia. As mãos vagarosamente requerendo os palmos de corpo um do outro. Avançamos. Tórridos e sorridentes como facínoras depois de um roubo. Parecia que não havia impedimentos. E de repente um muro. A locomotiva ensandecida da busca pelo infinito impossível terminou. Não eram outros aniquilando nosso jogo, destruindo o tabuleiro. Éramos nós sucumbindo à gula. De barriga cheia tivemos que nos odiar. J.M.N.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Para Conhecer Alceu Wamosy

Duas almas

Ó tu que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho,
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha.
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

Alceu Wamosy – Poeta gaúcho que faleceu em 1923, deixando dentre outros magníficos textos, este Duas Almas, em cujas linhas descobri a poesia sulista mais intimista e casta. Do livro Poesia Completa, 1994.