quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Retórica

O que me falta? É o que pergunto.
Argumento oculto para dizer-me sozinho, eu tenho. Mas não me basta. Não basta, de certo, àqueles que invadem meus sonhos. Minhas sentinelas rotas, meus arquiinimigos.
Ela estava à beira da morte em minha inconsciente experiência. E o gosto de sua extinção me embebeu em suor e vigília, me despertou. Inaugurou um pretérito feliz sobre o qual miligrama nenhum faz esconderijo.
Esse vago e assassino sonho, causou o estranhamento que me acompanha durante o dia.
Desassossego de sentir como que uma lâmina abrindo o ventre, a dor interna de uma terra desocupada, canteiros vazios de frutas, odores e criaturas que rastejam.
Quando a encontrei em meu sonho e não pude ver o seu rosto, constatei que ainda sinto vergonha. A costura de minhas roupas desfeita. Meu corpo nu pedindo abrigo no meio da multidão.
Essa é uma imagem de desespero, desamparo. Meu medo acordou minha saudade que dormia um sono solto. Tive forte sensação de estar incompleto. Fortíssima impressão de estar perdido.
Porém, mais que tudo, tive a certeza de estar sentindo a falta dela. J.M.N.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Entre a luz e lugar nenhum

Em minha memória

“…assim éramos nós obscuramente dois,
nenhum de nós sabendo bem se o
outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria…”

Fernando Pessoa (Na Floresta do Alheamento)

Estou deitado tempo demais, um fantasma ao meu lado. Seus olhos me fitam e eu não consigo desviar o olhar. Quero saber o que ele me traz. Que tipo de assunto pode tratar seu olhar de antigamente, isso me faz perder a cabeça. Eu espero que possa dizer as tais palavras novamente um dia. Talvez seja isso, aquele fantasma quer me alertar para algo sobre amor e eternidade. Quem sabe impossibilidade e alento, letras e um bom vinho tinto. Meu sangue procura vasos esquecidos em meus órgãos. A única coisa que sinto além do frio de dezembro é a tua ausência. Meu peso escasso aperta a cama em sinal de existência. Apenas assim me identifico. O fantasma bem ao lado continua me olhando. Ele parece ter o rosto de meu pior inimigo e está chorando agora. Sua lágrima molha a cama. Sinto-a com a ponta dos dedos. Uma lágrima de além dessa vida, quem sabe. Trago à boca. Seu sabor me esclarece. Meu olhar agora é o olhar destinado a mim pela entidade ao meu lado. Meu inimigo sou eu. Esse fantasma com lágrimas doces que me estende o braço é tudo aquilo que esqueci quando te foste. Esse cheiro de agora não sei se é terra ou madeira. Meus músculos acordam. Tenho entranhas novamente. Mas antes de levantar um último beijo na boca etérea de meu fantasma. Minha tristeza evapora e como nascido há pouco me restauro no mundo das presenças, tudo me faz falta. Me ponho a andar. Visto a roupa mais bem passada que tenho. Saio de casa. Da calçada diante da porta olho a janela. Não é mais um fantasma que vejo, mas um passado inteiro me acenando. Aquela lágrima doce nascendo novamente em meu beijo. Foi quando percebi que havia uma música tocando em algum lugar e que de alguma forma, me dizia o chumbo do céu chuvoso, tudo não passa de vento e vontade, um dia após o outro. Nenhum fantasma me espera e a história me anda gritando esperanças finalmente. J.M.N.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Os dias passados não são minha vida

Tenho contado os dias de trás pra frente, como ele me ensinou. Tirante o fato de que ele morreu, penso que é uma boa saída para estas perguntas que me Vêm sempre à cabeça quando estou prestes a dormir. Aqueles dias não são minha vida, não fizeram tudo o que sou e, no entanto, dizem tanto de mim. Trazem uma multidão de adjetivos que poderiam muito bem descrever o que fiz, porém não o que sou. Isso não é uma desculpa. Tampouco uma explicação. Isso é o que é... uma conversa, apenas isso. E quando digo em voz baixa que queria ser feliz penso em ti. Quando subo as escadas do shopping e encontro uma pessoa amiga, queria estar contigo. Quando olhos os livros lançados no último ano, sempre vejo as letras do teu nome a se formar diante de meus olhos. Pior de tudo: quando penso em ir para casa sozinho é a tua falta que cabe em tudo quanto queria que estivesse dentro daquelas quatro paredes. Todas as cenas das quais me arrependi. Todos os usos indevidos da confiança que me entregaste. Toda a gama de feridas deixadas e a intranqüila notícia que tive dia desses me fazem pensar que fiz tudo errado e mesmo assim, não consigo encontrar razões para dividir o que encontrei. E mesmo que esses dias de agora também não sejam toda minha vida, a maior invenção que produzi nasceu neste interlúdio entre minha nostalgia e a conquista da minha solidão. Tenho planos de seguir vivendo. Arcando com aquilo que me cabe nos bolsos e trazendo a casa dos nossos sonhos entre as muitas linhas e gritos que ainda pretendo criar. J.M.N.

Para acompanhar a leitura… Let’s shake the house

Inventa que eu nunca saí

Convoca a mentira. Faz dela algo branco e com pétalas, inspiração para um pedido de socorro – um desejo de viver daquilo que estava ao nosso alcance. Inventa um roteiro, uma história de noites felizes, odores suaves e nada daquelas pelejas duradouras dos últimos anos. Desiste das prestações da tua casa e caça os ventos marítimos comigo, velas estufadas de nossos sopros de amor. Correndo pro norte, sempre adiante, inventa a minha fidelidade galante, minha tatuagem de sangue, meu diário de bordo com coisas apenas sobre nós. Me chama exclusivo, único, maciço aprendido entre tantas coisas duras em tua vida. E depois me atira no espelho, parte essa imagem que é menor do que podes vir a ser um dia. Colore os rabiscos, compra nanquim para os traços finais. Faz qualquer coisa para eu ser apenas teu. Faz qualquer coisa para eu ser sempre apenas comigo. Inventa que eu nunca saí. J.M.N.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A falta do filho

Para o Cauê,
que deve estar acordando com os sons do oceano nesse instante.

Ele se foi e com ele avos incontáveis da minha essência. De repente um espaço nulo, ostentando nada senão a distância. Um oco que engole tudo. Nos últimos dias um sentimento de completude e coragem, vindos certamente das coisas que havíamos de fazer juntos. Vencer a escola, certidões para a viagem, presentes de natal, roupas para arrumar nas gavetas de casa. Ligando tudo, esse sentimento cumulativo e anterior ao tempo, cuja textura demarcada na pele deixa-nos únicos, marca indelével da espécie. Ele me continua. Não a partir de onde eu parei, mas sim daquilo que a ele é possível entender e seguir. Vejo meus dedos em suas mãos, meus trejeitos em seu sorriso e minha solidão em sua escolha por paixões mais além de seu tempo. Sinto saudades e isso é imenso. Vontade de ouvi-lo perguntando sobre problemas de matemática, sobre a origem de nomes das bandas das quais gostamos. E reconheço nisso tudo o que não tive. Ao fazê-lo eu achava estar pondo alguém no mundo, talvez, pretensiosamente, dando um mundo a alguém. Quando ele me chama de pai, vejo que o mundo todo cabe nessas três letras. Foi ele, enfim, que me premiou com o melhor lugar dessa existência. J.M.N.

A nova idade

Ela não levou nem trouxe meu sorriso. Deixou-me à vontade para ser quem sou. Para encurtar caminhos ou esperar uma eternidade para dar-lhe um beijo no rosto. Liguei para dizer que senti sua falta e transitava ardente nas lembranças de seu cheiro. O que saiu foi apenas um apelo curto à saudade que nem de perto era a que eu verdadeiramente sentia. Não uma coisa apaixonada ou sem freio. Ela existe além de meu mundo. Com sua pele morena e afago silente. Os lábios em carne suculenta e morna. Recebeu-me de manhã perguntando pelo fim-de-semana e eu sem quase nada para responder, dei adeus. Um cheiro inconfundível de enlace. Mais que isso, uma entrega afável e secretamente já feita. Ela tem minha companhia, tem o poder de atender meus telefones. E nela, sem que saiba, está uma inspiração que há muito não tinha – a novidade de um abraço sem convidados, onde destinos podem nascer trocando beijos. J.M.N.

Literária

Ela me vem pulsando, como um som intermitente. Mal feita em traços, pois nunca a senti com os dedos, jamais lambi suas curvas ou escrutinei sua estrutura óssea com os dentes. Porém me encontra no sono, na fila do caixa, na espera do trânsito. Chega com um cheiro próprio. Que mesmo ainda imaginado me constrange, me desregula. Fico com as narinas em carne viva. Um cheiro de entranha, de coisa espúria, mas atraente. Suas palavras de cabaré pedindo para irmos à cama, jogada ao longe a declamar poemas. Vem com todo o vício dos iniciantes. Repetindo as linhas das mulheres que eu amo, pois ainda não se atreveu a desatar-se. Nunca contei meus gostos, mas ela advinha. Nunca pedi rosbife, mas ela os cozinha para mim. Instala-se nos sonhos. Pelos cantos da casa. Como uma predadora caçando em silêncio. Que morte terá? É o que pergunto. Quantos anos ela levou arcando com a melhoria dos seus instintos? E agora anda tão perto. Tão colada à brisa que me arrepia a pele. Posso apenas devotar-lhe o medo. O mesmo que me levou às costas do mundo, ainda náufrago, ainda cedo demais para raízes. Ela me oprime, como as antigas leis da ditadura. E minha nação perde as posses e os limites e minha unidade se vai desfeita deitar-se em sua cama. Ao longe as areias do tempo comendo meus beijos, minha literatura e a única coisa que consigo desejar agora é esse fermento. Essa novidade potentíssima e disforme cujo nome não sei, mas que mora inegavelmente dentro dos olhos dela, um mundo ordinário e bento, com todos os melhores detalhes de um romance antigo. J.M.N.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Excertos Terapêuticos XXV

Le labyrinthe

J'erre au fond d'un savant et cruel labyrinthe...
Je n'ai pour mon salut qu'un douloureux orgueil.
Voici que vient la Nuit aux cheveux d'hyacinthe,
Et je m'égare au fond du cruel labyrinthe,
Ô Maîtresse qui fus ma ruine et mon deuil.

Mon amour hypocrite et ma haine cynique
Sont deux spectres qui vont, ivres de désespoir ;
Leurs lèvres ont ce pli que le rictus complique :
Mon amour hypocrite et ma haine cynique
Sont deux spectres damnés qui rôdent dans le soir.

J'erre au fond d'un savant et cruel labyrinthe,
Et mes pieds, las d'errer, s'éloignent de ton seuil.
Sur mon front brûle encor la fièvre mal éteinte...
Dans l'ambiguïté grise du Labyrinthe,
J'emporte mon remords, ma ruine et mon deuil...

Renée Vivien

Desuso

A palavra teto é desabrigo, não está. Tantas noites a evocar tua presença, amor, que a porta escancarada nunca mais vai se fechar.
Conforme o dano, utilizo a cura. Conforme o desejo, utilizo a pele, o beijo, os múltiplos sons que vêm de mim.
Da palavra amargo somente o sumo. Azedo no finzinho da boca. E essa história tão boa a causar desgosto por não ter sido.
Deixei de utilizar veneno.
Mordo a carne das tuas idéias e me esqueço. Como tem de ser. Deixei de usar também a calma, um sono tranqüilo.
E o que tenho é nada mais que esperança. Esse palíndromo de desespero. O uso me cansa. Meu uso faminto das tuas costas nuas e cheirando a banho, apenas um delírio.
Como Noel: não vou por gosto/ o destino é quem quer. E o meu destino deixou de usar a prudência há tantos anos que toda essa saudade que sinto, tem a mesma indecência sentida de uma traição de amor. J.M.N.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Frequentes

Espero, sinceramente, que a minha sazonalidade não te afete. Não te exaspere esse banzo de linhas e lenços. Não quero pra mim a dádiva da prodigalidade, mas o dom da freqüência. Te daria um gotejar intermitente de carinhos e pequenas melancolias. Te presentearia com escravos africanos pra guardar teus livros. Fiaria as nossas intermináveis pelejas da memória. Mesmo à distância, o cotidiano, construí-lo-ia em ouro invisível pra unir-nos numa liga qualquer. Foi dessa matéria o meu sonho depois daquela tarde em que me cobrastes, pela via da falta que te faço, que eu apareça todos os dias; que escreva sobre mim, fale e silencie, mas que esteja ali, ao teu lado, tentando uma completude que se busca e se quer. Mas que não se alcance. Se gostei dos teus poemas? Sim. Eles parecem aquelas janelas coloniais que se abrem pra paisagem. São de uma nudez quase cruel. Queria ter te falado logo isso, mas continuo tendo problema com os teus olhos. Com esse estranho poder que eles têm de me despir da filosofia e da experiência. Vamos, enrodilhando os dedos, passar de “não te deixarei sem jeito com meu olhar”? Pode ser que eu não veja os calos e as rugas perderem seu valor diante do teu primeiro bom dia e do teu último tchau.WDC

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Feroz

Ouço os passos do leão antigo a espreitar minha tenda no deserto. Ouço sua fome fatal respirada em arfante espera pela carne. Um meu desaviso bastaria para cair em suas garras
Ouço muito longe também o barulho das ondas imensas daquele mar de agosto, provendo a costa da pequena cidade com alimento e brisa. Tudo era tranqüilidade
E a janela sob a qual dormíamos era o espaço sideral em sonho compartilhado
Hoje tenho uma sede duradoura e doentia. Por sumos e poções que estão além desta existência. Que andam na memória. Nas bordas das fotografias
Nos olhos azuis que reclamam ultramar. Infante, infante, corre que o dia já vai morrer
Era o que me dizia a beleza dela em vestidos floridos, ora amarelo-sol, ora meu sangue que só ela tinha. Pararia a rotação terrestre se a visse entrar por esta porta, azaléias na mão direita e um convite à luta armada
Deixaria de esconder o rosto ao passar naquela rua, cuja única direção é para longe
E seu sorriso esculpi em pedras que não são daqui. Apenas para um beijo eterno, seu lábio pétreo por mim formado. Sem braços o busto feito, para não correr o risco de cair capturado. E a música me leva à aurora dos tempos. E sinto saudades do que ainda não vejo por ser um segredo que levo apenas comigo.

J.M.N.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Eu desistiria do fim

Às vezes sangra, às vezes sara, a tua ausência
Sempre tão viva que me dá nos nervos, e paraliso
Falo para sempre ao telefone e meu silêncio denuncia
Uma ânsia de desdizer tudo que disse, trazer para dentro
A tua tristeza como um gole de álcool em chamas
Um estrago, sabor difícil de entender se não nos damos

Cumpre dizer que estava errado, minha dama
Vale lembrar que não estávamos, mas o beijo
Esse condão que surrupiava nossa verdade, talvez mais a minha
Um rufião de abandono dos sentidos, gosto ultimado
Da saudade que sentiríamos, mais cedo ou mais tarde
E quão impressionantes foram nossos últimos beijos de amor

Tão ilhados e desmedidos que transeuntes
Das avenidas largas e sem passado de outras paixões
Nossos vultos iluminados tão somente de esperanças
Calados e cativos do que havíamos sido anteriormente
Catavam estrelas, perdidos na escuridão de uma noite
Indigna, sem olhos e mal cuidada, não era nosso melhor final

E se tudo me voltasse mesmo que em sonho, mais uma vez
Desistiria da liberdade e do vento de então
Para viver a eternidade em um beijo sem fronteiras
Do deserto arquivado no tempo de nossas almas juntas
O tempo próprio de me lembrar complemento
O futuro mesmo de alguém me ter presente em tudo. J.M.N.

Para ler escutando…

O que não deves mais fazer

Não caber no meu apreço. Não deves ser tão disponível aos meus versos
à janela a noite morre quando é teu rosto a iluminar memórias
Não deves mais aparecer em pensamento
Outra indecência a evitar é essa tua postura, teu ombro desnudo, tuas pernas dando passos desafiadores em minha direção
Como estar aterrado depois disso?
Não deves meter meus anos em tua bolsa e sair impune
Não deves abrir gaiolas e desejar que os pássaros voltem por onde vieram, as suas penas intocadas pelo mundo
à distância desejei que não houvesse existido nossa história, nossa terra
desejei não ter tido outra chance
Não deves mais falar apenas entre o pranto o que te dói
E eu, por certo, não devo mais esperar que entendas

J.M.N.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Descaminhos

Esquenta a comida que eu to chegando. Venho lento, pois o trânsito tá muito ruim. As esquinas de perto do trabalho são secas e quase não têm vida. Toda vez que saio fico espantado em perceber que a maior parte do tempo, vivo sentado numa caixa de gente estreita, num lugar desolado e sem vida, esperando dar o horário para sentir novamente o peso maravilhoso de esperar teu beijo.

A música tocando é aquela de sempre. Tem me acompanhado a semana toda. Diz lá pelo meio dos versos que a única chance de sobreviver a mim é encontrar teus olhos novamente. Eu canto, dedicando-a a todas as coisas desesperadas que me fizeste fazer. O que antes achava que fazia por ti, descobri, encantado, que fazia por mim. Eu sou o rei do desespero e não pretendo abrir mão do reino.

A rua de casa se abre. Umas pessoas de mãos dadas atravessando animadamente. Acho que hoje de tarde chove. Fico indo trabalhar mesmo de férias, dizendo a todos que o chefe não larga do meu pé. A verdade, porém, é que não encontro outra função a não ser produzir e esperar por nosso encontro.

A única coisa desagradável, no entanto, é que a casa continua vazia. J.M.N

Afônico

As palavras finalmente me substituíram. Acordei afônico. A voz cansada de dizer sozinha. Atraída para o nada de descanso atrás da pele do dia. Sentida apenas de não ter declarado amor, feito uma benção, sussurrado uma paixão violenta.

Minha voz amanheceu em outra instância. Sorrateira creditando mais segredos ao meu dentro. Aquilo que não sai de mim me endivida. E descobri que preciso dizer sempre, pois parece que a única ponte da alma ao dia é essa minha voz que amanheceu calada, introspectiva.

Não sai com esforço. Mesmo com as veias do rosto em pulsação extrema, todos os vasos do corpo querendo expulsá-la da garganta, atirá-la pela boca. Ela não sai. Tirou um tempo para me sacrificar as verdades, para me internar no conflito entre o que digo e o que sinto.

Minha voz sabotou a existência. E já nas primeiras horas do dia avisava que não teria piedade do meu peito, casulo das sílabas mais doídas e dos falsetes mais desafinados do que sinto. Minha voz se calou rebelde. Calou e espera que a reverberação do que não me sai por ela espante minha memória, alardeie minha consciência.

Sou um beco. Esperarei ansioso até a hora de poder usar com a boca à toda, a palavra silêncio.

J.M.N.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Equilíbrio

A esse amor que parece contraído, vírus novíssimo dos pântanos que exploro. Por onde me meto a procurar espécimes de plantas raras e fósseis de animais extintos. Com afinco e graça dos beijos morenos que me redimem pouco a pouco.

A esse intruso que me rói tudo por dentro, que me obedece quase nada e se vinga ao mínimo sinal de meu abandono, como se fosse o maior dos traídos e não o mais traiçoeiro dos amigos de infância a desfazer os pactos e os esclarecimentos.

A esse dono dos meus postais, sob cujo domínio extirpei libras inteiras de minha carne, certo de que não era nada, a não ser a carne oferecida em devota comunhão e loucura. Banquete para mim mesmo. Oferta ao deus enclausurado.

A este espetáculo que a tudo engloba e planifica. Que tudo suporta quanto roteiro e interpretação, minha reza. Minha lira. Meu mais agradecido sofrimento, pois emanar seus ares nesses tempos de obstinada solidão é ter no peito um espinho, é ter a dor mais feliz do mundo como sinal de se estar vivo. J.M.N.

Celebração (ou “bodas de aço e vinho”)

Para o grande amor

A festa teria de tudo. Uma canção escolhida para que eu entrasse em roupa de festa, gravata preta, muito elegante, cantando numa língua que ninguém mais entenderia a não ser ela.
Ela, por sua vez, simples e bela, com flores em uma das mãos e na outra um pequeno papel com votos de eternidade.
Todos voltariam os olhos para nos ver encontrados no meio do passadiço todo enfeitado.
O mundo inteiro estancaria diante do reconhecimento daquele brilho único, emanado por nós.
Com um ou mais detalhes era para ser assim. Um feito devotado de amor.
Em vez disso, o reconhecimento de que tudo acontece do jeito que tem de ser.
E a distância, esta dama coroada e trajando às vezes luto, às vezes veludo grená, é quem toma conta da festa agora.
Acabo de abrir uma garrafa de vinho.
A noite pesa como uma montanha inteira sobre meu peito.
Em cada gole desfaço um verso.
A cada encher da taça, uma lembrança ganha gosto, cor e cheiro. E bebo-a.
Sorvo anos engarrafados de vinhedos bem cultivados, como agora me encho da década de amor feita por nós, colhido com cuidado de antanho, alcóolatra.
Antes de o mundo acabar, antes do sol se tornar um precipício cósmico para nossas eras neste plano, entregarei a outra metade minha a que ela tem direito.
Mas antes, apenas esse brinde distante e sozinho, indo ao encontro não sei bem de quê, não sei bem aonde, pavimentando meus órgãos com uma saudade que não pode ser apenas minha. J.M.N.

A única trilha sonora possível…

Cadernos íntimos (Sobre plumas e noites secretas)

Sobre o magnífico Cardernos Íntimos, do Bob Menezes,
esperando que nos brinde com a publicação.

O acordo era chegar e desarrumar as malas. Mas ai, as coisas ao redor soaram mais fáceis. As roupas não valem de nada – fronteiras inúteis. Taças de champanhe e acolhimento. Cigarros à parte. Bilhetinhos carregados de dulcíssimas verdades. Uma fome que já vinha de antes. Depois os planos para o rapto das tais estrelas e a sede de encontrar as controvérsias nos olhos de quem passasse perto de nós. A única questão permitida: quem sabe? Como uma pergunta silenciosa que intimida e acoberta a insanidade de querer demais. E mesmo não sendo nossa casa faremos daqui um casulo de coisas e movimentos próprios. Forja de transformação intensa. Bateremos as asas feito crisálidas. Bem no cerne da agonia dos outros hóspedes, que para sempre perguntarão o que fizemos entre quatro paredes. E nós falaremos de ventres, teimosia, miudeza masculina. Falaremos de astecas e outras civilizações, enredos de ataque à carne, os lindos olhos do recepcionista do hotel. De repente o segredo do paladar que pedia, mas, perdido na euforia das luzes da cidade, queimou-se na intimidade do encontro de tantos anos. Beberemos gelo. Saberemos imediatamente que chegamos às fronteiras emancipáveis da entrega. Nossas mãos pausadas em sincronia. Saltaremos feito lobas, cortesãs sem agonia ou segredo. Os ventres expostos como relva lisinha vista de longe. Uma da outra, com milhagem de sobra para duas voltas na Terra. Nada de entraves, apenas liberdade. Quem sabe não foi esse o plano maior? Quem sabe não era disso que falavam nossas mães quando avisavam que íamos nos perder nesses devaneios. E desde sempre desobedecemos. Desde sempre sabíamos que não seria assim tão fácil pular fora. O primeiro olhar foi do motorista. Ele parecia esperar recato e conformidade, mas o que entregamos de volta foi a mais pura honestidade. Saímos sorrindo do carro. Entornadas da agonia que causamos. Nos olhares a escuta, nas mãos o cheiro doce, nos tons alentadores do sistema de som do quarto, o descompasso entre o jazz e nossas valentias. Ficaremos suspensas no ar. Venceremos escudos. E na destreza de nossa dança inconsciente, haveremos de nos revelar. Ao sabor de morangos e lingeries de seda. Sob as plumas encarceradas na mansidão do toque. J.M.N.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Cartas a ninguém (06.12.1944 – 6:23 a.m.)

Querida,

Escrevo dos campos de batalha. Chove e meu destino é tão menos meu do que era antes, quando andava a causar solidão e desavença. Escrevo depois que as bombas cortaram nossas linhas e o inimigo adianta-se em tornar tudo um único pastiche em tons de cinza e vermelho. Os escombros das casas se confundem com as sombras que árvores que já não existem e eu guardo a sensação crescente de tudo já passou por mim e que, ao fim e a o cabo estou morto, apenas esperando a hora de seguir viagem.

Mas não tenho um único tiro em mim. Nenhuma baioneta feriu minha carne. Nem estilhaços terminaram o serviço de impingir cicatrizes a mais. Estou como era, porém ouvindo tudo que se desfaz em meu redor. Sou o único de minha unidade que não tem um fuzil. Luto com a pena e registro as batalhas e as mortes em nanquim e sangue. Todos os poemas sobre a solidão já me consumiram e o que eu queria apenas era a comida que apenas as tuas mãos sabem fazer.

Acaba de passar um avião. Suprimentos de toda espécie. Os homens pulam de alegria e ao saírem de suas trincheiras, morrem por balas perdidas. Um deles tombou perto de mim, há pouco. Teve apenas tempo de dizer que sabia não estar morrendo em vão e me entregou a foto de sua esposa, acrescentando baixinho que era dela seu coração.

Fico pensando quem entregará uma destas cartas, caso seja eu a morrer de tiro ou bomba. Se isso acontecer saiba que a única dignidade que tive em vida se deu diante dos teus olhos aguados e castanhos durante nossa despedida e que tudo quanto mais quero para este mundo e para uma próxima vida é que estas linhas do front cheguem às tuas mãos, para que tenhas a certeza de que mesmo do outro lado do mundo, cheirando a morte e lama e pólvora, aquilo que mais queria era te ouvir dizer boa noite mais uma vez.

Este pensamento, querida, é o único que dá sossego e forças para continuar informando ao mundo sobre esta guerra, cuja declaração ajudei a forjar com minha insuficiente razão, mas que, caso me deixem os céus, ajudarei igualmente a acabar, sem disparar um único tiro, apenas contando suas histórias e deixando estas linhas de esperança e amor constantes, chegarem até tuas mãos.

Com amor,

J.Mattos

Trágica beleza

Todas as vezes que você me olhava não me via. Eu deserto, resmungando por dentro e devotando total amor ao suportar o peso do que trazias escondido no peito. Saias de casa sempre de noite e ao passar pela janela da frente já eras uma estranha. Tua imagem tão distante. Levei muito tempo para compreender que na verdade eras aquela que andava lá longe, no jardim escuro, rumo ignorado.

O longo inverno que me abatia quando não estavas. Uma engrenagem que me apanhava onde quer que eu fosse. A moça bonita que me doía. Que fazia melhor que tudo me mastigar. Não me servia. Não me exaltava. Reconfortada em tirar todos os mapas, toda história, todo passado. Um borrão perpétuo que exige a extinção dos outros para se sentir viva. Não podia mais. Nunca pude.

De tal ordem que ficou imperativo que eu voasse. Que me tornasse um pássaro. Selvagem em asas e caçador à luz do dia ou da noite. Ela não via. E tão rápido como passou a tomar conta de tudo, perdeu-se em seus próprios domínios. Incompetente para a dádiva, incompleta para ter tudo. Um conjunto perfeito de pernas, costas e tatuagem. O fracasso estampado no braço. Vencedora de nada. Perpétua falhada.

E antes que o domínio acontecesse demasiado, escapuli. Trago uma foto manchada. A lembrança do agasalho da noite. Notas de um tempo forjado. Trago a seqüela da beleza e da tragédia como um poema, nascido daquilo que tratado como belo, mas que apenas recende bem ao mundo depois da dor e da certeza da distância. J.M.N.

Para ler escutando…

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Pro teu bem

Pareceu muito até agora, mas provastes apenas um punhado da minha crueldade. Sei que aprecias algumas maldades matinais, como da última vez que te acordei, mas as garras que me cresceram desde ontem sei que vão dilacerar teu dentro e mostrar um avesso que escondes com vigor, como uma daquelas violências que cometemos nos quintais da infância.

Ontem, enroscada em penumbras e atenções estrangeiras, me roubastes um pouco do meu equilíbrio. Deves ter percebido que, de súbito, a rua me pareceu uma corda bamba, e eu nem sequer tinha um guarda-chuva pra amenizar a cena. Me recompus, e com a mesma pressa com que fui tirado do meu eixo. Veio-me uma lufada de contentamento, uma pequena felicidade. Este pequeno frêmito depois do assalto, explico, foi pelo simples fato de certificar-me que não sou o escolhido; que em volta de mim não há nenhum satélite ocupado em cumprir a sua órbita e que, assim, sou um homem livre.

Não tentes, no entanto, sorver os restos do meu veneno. Poupe-se. Não há porque procurar a dor se ela não te apetece. Juntemos os nossos silêncios e forjemos uma indiferença mútua. Eu já te amei com força e sei que, por seu turno, ainda me amas, mas esta é a hora em que o amor não vencerá a falta de desvelos e a proximidade de inevitáveis dissabores. Fique consigo mesma, os seus arredores já foram pra mim os lugares mais confortáveis e agora, pra ti, são os abrigos mais seguros. WDC

Cumpra-se

Aconteça. Mostre-se. Além das vilezas e das mensagens secretas. Diga o que dói. Diga que não há perdão. Apareça diante da porta e atire um vaso qualquer. Seja completa. Sem ocupar-se de um enigma que não está em ninguém mais a não ser dentro de si. Nenhum lugar, nenhum abraço, nenhuma aliança fará de você alguém completo. Encare o espelho. Vista-se de si e não queira destruir os vestidos de quem anda feliz, florida pelo novo amor que chega. Enxergue a quem se entrega. Cuide. Para além daquilo que não teve, pois tudo o que tens é muito mais do que para tantos. Tudo é metade. Nenhuma força se aplica sem reação. Amor demais é tristeza ganha em outros tempos, como uma garrafa cheia de substâncias que não deviam estar no mesmo frasco. Ninguém se faz sozinho. Ninguém destrói um amor de mãos tranqüilas. Quando abri os olhos para a esperança, infelizmente, nenhuma de tuas palavras atendia esse chamado. Nenhuma de tuas ações concernia em certezas de continuar vivo. Como sabes o que eu não posso dar? Jamais estiveste inteira em canto algum. Jamais participaste da tua vida como atriz principal. J.M.N.

Hasta luego

Antônio pensava como tantos: seria feliz. Comprara uma casa de três quartos e um carro do ano. Tinha um bom emprego e iria receber o título de cidadão exemplar de sua pequena província. Faltou à entrega do prêmio. No outro dia não compareceu ao trabalho. Passou uma semana e todos procuravam Antônio, sem encontrá-lo. Um mês. Dois meses. Um ano. Certo dia o pároco recebeu uma carta. Antônio estava na Letônia. Morava num campo de refugiados. Tinha contraído tifo. Trabalhava catorze horas por dia e não conseguia compreender tudo o que lhe gritava o patrão. Explicava também que a trapezista do circo que passara no vilarejo um ano antes, havia se encantado dele. E terminava dizendo sua maior convicção: sabia que seria feliz. Estava sendo. J.M.N.

O solo dos desabitados

O sol da tarde é um mar de calor e saudade que se imprime na pele. Esquenta por fora. Dá tento da estrutura nervosa que se implica apenas com a natureza externa. Ao lado, um calendário que conta histórias de antepassados amores e vilões no espelho. Dia após dia desassossegado destino, entorna-se. Os maiores inimigos são os que nunca dão as caras. Seres sem honra ou respeito pelo que é dos outros. Queria que a sombra da única árvore desse campo em que me encontro cobrisse toda minha solidão. Mas não há remédio. É sempre meio-dia nessas paragens. Enquanto a pele modifica, torna-se curtida, espero uma nuvem ou uma torrente de gelo inesperada. Meus passos poucos afundam no chão. A terra fechou seus poros e eu não tenho alternativa senão esperar que o tempo mude. J.M.N.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Micro-romance VI

Qual foi a chave, a escritura? Qual foi a carta que ficou manchada ou confusa? Tantas perguntas e o que me deixa pasmo é esse silêncio sobre as coisas inacabadas: o balcão da casa, penteadeira de nossas filhas, a aparição de um casulo na janela feliz de nossa terceira primavera.

As meninas que diriam mamãe e papai vezes sem fim. Chamaríamos família à conquista de muitos anos. Abrir o peito e dizer de uma vez o que aquece nossa alma conjunta. Às vezes chamo de Gildo aos amigos. Um nome incomum para bancar a criatura fugida de meu desespero. E quando os chamo assim, parte de mim fica melhor, mais humana.

E eles refilam, deixam de crer que ando normal. Mas, afinal, quem anda comumente esses dias? Tenho mais uma coisa para saber antes de acabar com isso...

De todas as piores coisas que eu fiz, qual foi aquela que perdoaste completamente?

Sei que houve, por isso pergunto. Talvez ao saber como se deu teu perdão, possa clinicar internamente meu próprio indulto para comigo. Costurar minhas escaras, reverter minha solidão e escrever mais linhas gentis àqueles que insistem em me chamar de maldito.

De qualquer maneira, tudo depende do que eu senti por ti um dia. J.M.N.

Voltas

Pronto, a noite terminou e eu nem sequer perguntei-lhe sobre a sua infância, seus hábitos ou mesmo, pela razão daquele gesto estranho.
Serei obrigado a andar com ela, em silêncio, por todo o doloroso caminho até sua casa, pensei.
Nessa hora divaguei sobre as coisas que realmente me importavam nela.
Não consegui outra resposta senão, tudo.
Qualquer pergunta estúpida poderia acabar com aquele silêncio desconcertante, mas preferi uma piadinha infame e...
Lá vai ela, linda, calada e, provavelmente me odiando ou me chamando de idiota em voz baixa. Eu mereço.
Ai ela parou e ajeitou o sapato nos pés, equilibrando-se com a perfeição que eu esperava ver de novo nos pequenos costumes que ela tem. Lembrei-me de correr. Segurei-a pela cintura e disse, calma!
No susto, a admiração pelo meu retorno.
- Obrigada! Eu...
Um beijo... Só um.
Foi isso.
Sem qualquer pieguice de meia-noite: quase morro.
Um único beijo e eu estava para sempre postado naquele pequeno espaço de noite. As pessoas passariam anos mais tarde e veriam minha imagem envelhecida e feliz, envolvida num beijo eterno.
No fim daquela eternidade em que estivemos, pedimos conselhos silenciosos e acho que, ao mesmo tempo, decidimos nos deixar.
A primeira coisa que vi hoje de manhã, foi seu rosto ao meu lado.
Qualquer coisa quente e estranha me acometeu. Desviei meus olhos e procurei qualquer coisa que me dissesse que eu estava certo.
Sim, eu estava. Ela dormiu comigo.
Aliás, há dez anos que isso acontece.
Desde aquela noite aprendi a correr de volta. Socorrer um amor é coisa difícil.
Além do beijo, muitos segredos e devaneios.
Eu continuo acordando ao seu lado e acordo sempre com a precisa certeza de que fiz a coisa certa. Corri de volta e lhe beijei. O resto, pode ser qualquer outra coisa que não cabe aqui nessas linhas. J.M.N.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Dove è Chiara? #1

Seus passos arqueiam perto das dunas de tantos sábios. Suas lembranças bem dentro de mim. Pra lá do fim do mundo meu. Uma saudade desumana de não poder escutar-lhe dizendo que o espetáculo foi grandioso. Um pedaço faltando. Não fossem as fotos que encontrei dia desses, teria sérias dificuldades para aceitar o Atlântico entre nós. Onde andará minha querida? Nesta Terra que parece mais ampla do que devia? Ou na calma daquilo que sempre sonhei para ela? Sempre preferirei o que me dizem os olhos com as pálpebras fechadas. J.M.N.

Unloveable

Para Mme. Jambes, uma personagem.

Eu te conheço mais do que a mim mesma. Eu sou mais sábia e vivida que todos vocês juntos. Quase não tenho coisas que dedicar. Minha vida se define por pouco de mim e muito do outro. Sou o contrário de tantas coisas que quiseste que eu fosse e isso me satisfaz. Sou assim desde o dia em que me esqueceram às portas da vida. Quando a promessa de eu ser o centro de tudo foi quebrada por uma porta fechada. Escrevo coisas horríveis nos vidros do teu carro. Risco a pintura. Derramo insuspeitas linhas sobre as coisas que me dizes do amor que foi meu e eu desisti. Nunca estive. Porque não me estou. Jamais fui condenada por nenhum de meus crimes. E talvez por isso, esteja esperando uma pena fatal. J.M.N.

Trilha mais adequada

Úbere

Me mata. Me assopra. Me expulsa. Me declara. Me semeia. Me sufoca. Me tranca. Me liberta. Me nomeia. Me renova. Me socorre. Me adestra. Me duplica. Me resume. Me desbanca. Me supera.

Me entrega. Me espalha. Me adultera. Me retalha. Me danifica. Me recupera. Me deporta. Me assassina. Me compra drogas. Me reabilita. Me santifica. Me possui. Me suplanta. Me espera.

Espero. Tanto e desde sempre, que jamais fui a outro lugar. J.M.N.

Desgovernar-se

Havia seu corpo a espera. Arfando renegado em si. Denegando aquilo que cobria a cama, ensopava os lençóis, clareava o breu da noite. Um ser em toda composição. Integral e pronto para acontecer humana, potente. Abastecida pelas histórias que ouvira, onde mulheres podiam ser de mais de um nessa mesma vida que lhe deixava apenas migalhas. Ela se encontra consigo. Úmida e material como as poucas coisas que conhece das riquezas do mundo. Seu toque de ouro, suas lágrimas de cobre e o suor de prata fundida queimando-lhe a pele que se descobre viva. Uma última oração tentou. Não lembrava as falas, nem a santidade que aprendera no colégio. Não lembrava as hóstias, os missais lidos em companhia da avó. Porém, estava-se. Foi-se indo de encontro a porção menos pertencida de si, menos instalada. Logo encontrou razões para saber-se mulher por mais tempo. As mãos onde antes era pecado. E sorrindo, desapareceu para o mundo dos que a conheciam como uma mosca morta. Sumiu dos olhos e mordeu os ancestrais vaticínios sobre úteros frios e destemperados, para doar-se aos ímpetos e sumos daquela região de si que até então governara por meio de sorrisos mortos e movimentos indiscretos na beirada das camas, em casas de toda gente. J.M.N.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sentimentalidades IV

Estava animada. Parecia outra depois da consulta. Tinha muitas coisas que preparar. Roupinhas, o quarto, livros pra saber como cuidar e o amor de noite inteira para fazê-lo feliz. Depois lhe contaria como seria. Teriam uma pequena briga sobre que nome dar e o ciúme dele já se mostraria logo na primeira fala dela sobre os dez próximos anos. Um amor inteiro para alguém que nem viera ainda. Lembrou-se, contudo, que já estava só. Não o tinha consigo. Só, lembrou-se o porque. E chorou. Mas não se esqueceu de ser feliz. Deu-lhe o mesmo nome de quem se fora. Ele cresceu. Ela o guardava das coisas ruins. Amou-o de amor inteiro e sempre lhe dizia: - Teria sido perfeito. Amor inteiro que valia. Saudade de quem lhe permitira isso. J.M.N.

Sentimentalidades III

Nada me falta. O café amargo atualiza meus sentidos. O trabalho é ameno. Minto para garantir a distância. Amigos são aqueles que refilam, que te mostram o sem sentido que é ser sozinho. Talvez não venhas mais à minha porta. O caminho tornou-se abstrato, não foi? Menti para ti também, saibas. Mas não queria provocar nenhum desconforto. Sei que os pássaros migram e mexem na textura dos céus. Eu também mexo nas texturas e saboto pinturas como ninguém. Repatriados também têm ganas de pertencer. Eu tenho vontade de me desligar. Esquece quem eu sou tá? Que assim, talvez, eu possa crer que o amor existe. J.M.N.

O que dizer?

Colheu aquele sorriso. Só podia dizer que estava feliz. Ria-se de tudo e tinha idéias alvoroçadas para as festas do fim de semana. Uma troca de ditos e olhos cansados no fim do dia. Era isso que ele queria. Poder dizer-lhe para dormir bem, todos os dias. Presságios que nem se quer se confirmaram. Era isso que ele pensava poder ter. Alguns mal-entendidos, mas nunca a solução de adeus. Quando naquela tarde acordou sozinho, teve a estranha impressão de que os dias se tinham escrito errado. Pegou o papel e ditou-se um bilhete de amor: Espero que tenhas gostado das flores. J.M.N.

Cecília dorme sozinha

Um dia desci no porto de Lille. Era Dezembro.
Fazia frio e eu parei para escrever isso.
Ficou perdido até hoje.

Era possível avistar o porto da janela de Cecília.
A tarde bronze daquele dezembro maldito, anunciava uma noite não menos densa e metálica.
De bruços, na beira da cama, Cecília tinha as costas iluminadas pelas luzes amareladas do entardecer e repousava com a respiração violenta das horas seguidas em que se estiveram.
Ele acendeu o cigarro e pegou a caneta e o caderno surrado que sempre trazia consigo.
Borrou as duas primeiras linhas sem escrever uma sílaba sequer e depois, arriscou compor para ela.
Era muito mais do que podia suportar. Cecília não cabia em rimas, em estrofes ou solfejos. Mal lhe cabia nas horas do dia.
Estava para sempre acercado dela e mesmo assim, não podia suportar sua presença.
Talvez porque soubesse que isso lhe seria eterno.
Praguejou contra a perfeição de Cecília e cessou seus esforços para produzir-lhe um verso.
Vestiu-se em silêncio e pegou o sax na saída. Quando abria a porta, ouviu baixinho um quase sussurro dela, - Você vai sair? Perguntou ainda deitada.
E ele respondeu com uma brandura pré-fabricada, - Vou comprar cigarros meu bem, volto logo.
Desceu a rua lateral, descobriu no bolso do casaco, uma partitura esquecida e começou a tocar a velha composição, lembrou-se de que a tinha composto para os inúmeros olhos que deixou para trás.
Sentia-se pela metade e preferiu, como sempre, ficar sozinho.
Entendeu de imediato que não voltaria e decidiu, conforme erguia seu sofrimento, dedicar a música sem nome que tocava, encostou-se num muro e escreveu na beirada do papel: A Cecília que acordou a meu lado e agora, dorme sozinha. J.M.N.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Do amor, artesão

Enquanto procurava ofício, as luas encharcavam minhas noites atendendo a um desígnio de Deus ou talvez a fisiologia repetida de minha espécie. Minha casta se arrepende depois de tudo perder e esquecer entre silêncios, orfandade e efeitos colaterais da automedicação. Tinha duas opções, entender e viver. Escolhendo as duas, decidi apenas, no final de tudo, apostar que algo sairia melhor do que antes.

Assim quando me chamaram trágico, aceitei. Quando me disseram solitário, entendi. Porém, quando me disseram incapaz de amar, meu sangue ferveu. Estava na hora de contar a história num tom diferente. Agora que a água da chuva é pouca por dentro de mim, que ando seco a procurar novas belezas, novas esperanças entre beijos e cordas de violão, posso assumir que tudo foi um grande prefácio. Prólogo nem sempre bem escrito para uma história de antes e depois dos homens.

De um lado minha família diminui e ainda espero a chance de explicar que minha maior perda foi o colo de Virgínia, meu maior ganho a natureza de meu filho e minha maior esperança a carta que ela acaba de me enviar. Fico aqui a escrever atrás de fotografias, ordenando na mente o que me aconteceu. E, pasmo, descubro que, tirante uma ou outra morte passageira, a eternidade sempre me acompanhou. Por dentro e por fora. E antes que ela se encante de mim para sempre, vou refazendo meus artefatos, reinscrevendo meu nome das árvores.

O amor me espera como a argila em bloco, e minhas mãos já nasceram preparadas. J.M.N.

Trilha sonora…

Porque não sei, porque não sei ainda!

A melhor oferta que tive foi a de um amor passageiro, a acontecer nos intervalos do trabalho, entre os vãos das escadas, entres os papéis estocados do porão. Três dias seguidos. E ainda teve o alerta de que não era certa a entrega. Mesmo na urgência. Decidi deixar de lado. Apesar do beijo. Depois foi uma série de abraços e comportamento redundantes. De lá para cá ousadias acontecendo desde os olhares aos toques sutis de quando se quer apenas perguntar por quê? Indo e vindo. Olhos e alardes feitos de qualquer coisa que estivesse na prateleira. E tudo se resumiu àqueles dias, novamente. O que queríamos no mais escondido pedido de socorro. No mais franco dos desafios. Enquanto íamos aumentando os gritos e querendo por à prova o que não soubemos pelas bocas dos demais. Era um tempo em que nenhum de nós tinha a certeza de que sairia vivo. Mas ainda assim chegamos juntos aos funerais das certezas e estivemos, horas e horas, deitados na chuva. Enquanto todos os outros personagens se iam e deixavam apenas as figuras e as inesquecíveis vistas parciais de nós dois. Andamos juntos por um tempo. Mas o destino cobrou seu preço. Cá estamos. Você em qualquer lugar sem cobertura de rede talvez vivendo, talvez sendo entendida. E eu abrindo mais uma vez as veias sem cadência alguma. Esperando meu amigo acordar para perguntar-lhe o que faço com o tom de perda exageradamente estampado em meus lençóis, nesses escritos que, juro, querem mudar de cor. J.M.N.

Enquanto não encontro as palavras para dizer

Esse é um escrito sobre qualquer um. Um sopro de chão e vidro para qualquer retina doída. Esse é um escrito para pedir perdão, mas dar gargalhadas, igualmente. Uma contradição. Esse escrito é um espelho de todo homem, de qualquer homem. Macho ou fêmea. É um conjunto de linhas para qualquer demência enrustida ou apanhada às claras, correndo atrás das pipas em manhãs primaveris. Esse escrito é do meu ócio o sorriso, de minha espingarda a culatra explodida. Esse escrito é minha certidão de nascimento. A rosa dos ventos, desse incontido. É mais amar que ser amado. Apesar disso, jamais será aceito e cairá no esquecido que é a dor de amanhecer sozinho. Aquele alguém que viveu a parte menos poética do que eu sou. Esse escrito é de um amor imenso, cuja estrutura avança a arquitetar melhores dias. E mesmo sozinho faz crescer capelas em solo profano e faz brotar minerais valiosos das lágrimas que tanto caem. Esse escrito é para um dia com sol chamando. Para o azul do céu que vai tornando apta minha partida. É uma história que jamais termina, pois não tem vencedores ou vencidos. Será contada por quem achar as cinzas do papel em que foi escrita. Esse escrito é o mais extenso sinônimo da saudade. J.M.N.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Despertar

Finalmente água para minha sede
Os núcleos de minhas células expandidos,
esperando transformações
Quando fui á janela de madrugada,
já era meu dia, esse tempo que antes eu detestava
Na mutação da noite em dia, uma oportunidade
Senti as mãos dela avançando em meus cabelos
Alguns fios já estão cansados
E memória e saudade imensamente sentidas no vento da noite
Meu pai costumava trazer coisas para a gente, ao voltar das viagens
E eu esperava esses momentos,
pedindo que fosse um pedaço de seu braço direito, meu presente
Minha mão cuidava da ordem
Lei inata que arredava a gente da maldade aos trancos e barrancos
E havia aquele território de quilate incontável
Meu quintal
Onde eu podia pedir o que eu quisesse, e tinha
Onde eu era a parte mais importante
Às vezes acordo de madrugada aos gritos, sonâmbulo
Esperando uma noite como há muito tempo não tenho
Mas hoje o despertar foi manso
Como que tenha acordado por dentro
E a paisagem que vi da janela de casa era minha
O poema final dos anos mortos
Hoje eu acordei pensando o melhor de tudo isso

J.M.N.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Verônica voltou a andar

Mais uma sobra do livro que está no prelo.
Originalmente escrito em fevereiro de 1997,
por ocasião de um acontecimento igualmente trágico.

No dia em que Verônica voltou a andar, levou um tiro na testa. No convite para o enterro editado pelo jornal local, estava escrito: “... Jovem destaque de nossa sociedade, ...pessoa inteligente e com futuro promissor, ...deixará saudades naqueles que a conheciam e se sentiam abrilhantados por sua presença...”.
Uma grande farsa. Verônica cheirava todas. Roubava os amigos para manter o vício.
Levava pra cama os namorados das amigas e espancava o irmão menor, fazendo-o prometer não contar nada sobre suas tramas e sordidez, pois assim lhe pouparia o braço ou a perna. Prometia arrancá-los, que fique bem claro.
Depois do acidente de carro que matou boa parte das amigas que lhe restavam e botou-a numa cadeira de rodas, desacelerou.
Parou com o pó. Parou com o sexo fugaz. E parou por completo com a cleptomania mantenedora. Fazia fisioterapia direitinho e bancava a bondosa com o irmão, que, obviamente, desconfiava dela.
Também deu de confessar coisas para o espelho, que era o único que se abstinha de julgá-la. Foram meses de trabalho árduo para voltar a andar. Sair de vez da famigerada wheel chair regulável que lhe tolhia a vida.
No exato dia em que deu o primeiro passo fora da tal cadeira sozinha, recebeu o chumbo de um 38 bem no meio da testa.
Fatalidade mesmo.
Assalto mal sucedido e sua presença na hora e lugar errados, como sempre. Ela morreu na calçada da clínica de fisioterapia, estendeu-se de comprido no cimento frio e fitou-me com medo, mas, mesmo assim, com certezas consideráveis.
Eu teria te beijado se me pedisses, falou baixinho e morreu.
Verônica, cansada e semi andante, contou-me a vida inteira.
A infância esquisita. O colégio que odiava. Contou-me sobre o pai pederasta. E por fim, negou-me um beijo.
Não comi Verônica. Não tive tempo de odiá-la. Talvez a amasse desde sempre.
Nunca quis me aproximar enquanto ela era a fodona da escola ou mesmo a puta xucra que arrebatava tantos quantos lhe parecessem viáveis. Mas tinha cedido ao calor da curiosidade e visitei-a muitas vezes depois do acidente.
Tornamo-nos, posso dizer, amigos.
Talvez outra coisa que não sei definir. Penso, às vezes, que ela me disse aquilo naquele segundo derradeiro, para anunciar que se sentia redimida. Desejava ainda.
Talvez ela tivesse mudado e quisesse algo a mais comigo.
Gosto mesmo é de lembrar de Verônica impedida. Alquebrada na dureza de ossos mal acomodados, sofrendo como uma louca, as dores que outrora causou.
Verônica mal podia andar e, no entanto, pediu para dar aquele passo experimental, na luz da calçada, na frente de toda a gente que passava. Queria mostrar que podia.
Verônica morreu se esforçando, talvez por razões amorosas. Pode ser que tenha me dito aquilo por não saber o que dizer para finalizar sua existência?
Ou talvez – quem haverá de saber? – Verônica tenha fingido, deixando-me no rastro daquela afirmação por pura sacanagem, sabendo que dali em diante, ninguém lhe poderia desmentir.

J.M.N.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Wake me up ‘cos I still sleeping

Não, não era tempo de pedir. Não era momento de iniciar retornos. Quando a linha se completou e sua voz emergiu do pântano de meus temores mais sutis e repetidos, era hora apenas de escutar. Quem sabe um: boa tarde? Quem sabe uma poesia? Não cabiam orações inteiras, apenas eu em sentido latu, com meus genes dominantes a direcionar a fala, a aquecer o instante de redescobrir meus minerais. Estava lento ainda nesse fosso de existência a que me designei. Enquanto ouvia sua voz preenchendo os milissegundos de minha percepção mais remota, adquiri novamente o sorriso que ela me causava e pude atestar que meus melhores momentos foram feitos a te escutar. Nasci assim quase inexistindo, quase uma teoria muito hipotética de cuja certeza a ciência só se banhará num futuro distante. Não cabia nada senão a declaração de que morreria por ti e que não foi a razão que te destinou minhas idiossincrasias e covardias, foi o coração. Aberto e devassado como carne de açougue, vendo-se cada vez mais só e livre porquanto endividado e desafiado no cerne de sua entrega. O que nunca disse em tanto tempo de silêncio, vai nestas linhas marcadamente apaixonadas, neste instante inesperadamente solitário em que descubro que eu devia ter morrido durante aquele telefonema. J.M.N.

A trilha mais que provável…

Bilhetes Interditados I

Amor,

Aqui tá fazendo muito Sol. As tardes tem um cheiro especial de flores que eu não conhecia. Teus olhos iriam fazer diferença no mar de olhares perdidos que se encontram em redor. Já faz um ano que me esforço para não chorar. Toda a tristeza se foi por ai. Já nem sei se preciso dela para a volta. Talvez possamos deixar de lado os porquês e entrar de vez no amor, não achas? Sabe o livro que esqueci ao sair de casa? Encontrei por aqui e não pude deixar de lembrar que trazia as frases de amor que eu queria ter inventado. Por pouco a surpresa de sentir falta não se desfaz. Ainda ontem parei e encontrei umas sementes de gerânios. Vou levar para ti. Assim como vou levar as distâncias todas que escusei de percorrer pensando que me levariam para muito longe, faz delas o que bem te apetecer. Em minha pálpebras mora a desilusão com alguns dos meus sonhos. Vou precisar da tua certeza para desfazer o mal entendido. Talvez possa deixar um pouco de mim. Os pátios e conventos já me convenceram da santidade e o sagrado do teu beijo parece bem mais do que qualquer oração. O amor me confessou que sente inveja. Eu também sinto esse tipo de coisas. Queria ter asas. Queria o mesmo espaço que é infinito. Queria ser sabido, entender as coisas de cá. Para além disso, me faria feliz um ouro qualquer, apenas para conseguir construir um mirante. Sabe amor, lá eu poderia te roubar o vento das noites limpas e te mostrar as lonjuras por onde eu vim. Já não estaria mentindo. Teria menos pecados, pois tu me absolverias e os pequenos gerânios, brotando ao nosso lado, dariam o sinal de que qualquer coisa resiste, se estiver perto de ti. J.M.N.

Claire

a Claire Flavie,
sous autant aspects mien mieux illusion. Nostalgies.

Tô com ela atrás de mim.
Digo, sentado num cyber café vagabundo de costas para mulher da minha vida que escreve cartas de amor para o namorado espanhol.
A vida é cheia desses absurdos, não é assim?
Eu sou cheio de coisas de não me cabem. E ainda por cima, tem o amor.
Hoje choveu. Fez frio. Tive diarréia e tomei um calmante.
O gim e a lata de chocolates de Bruxelas vieram depois... Claire chegou as duas,
- Oi! Você por aqui?
- Por quê a surpresa?,
Só eu pra me esquecer desse encontro. Duas semanas planejando e eu me esqueço.
As mulheres de nossas vidas deveriam aparecer com mais freqüência,
- Capuccino na biblioteca?, perguntei.
Claire é muito culta.
Eu sou tarado por mulheres cultas que citam orelhas de livros desconhecidos...
- É mesmo, heim? Não conheço esse tal Lautremont,
Claire é francesa e já dormiu ao pé da minha cama por inconveniência do álcool a dois. Sem sexo ou beijos, que fique claro.
Também tenho um enigmático, mas não desconexo, aproach com as francesas. Talvez fruto de uma precipitada fantasia por coisas ditas na lígua de Baudelaire. Uma mítica alusão à cúpula dos maiores amantes do mundo se enfileirando nos meus sonhos de garoto.
Isso eu deixo pra depois.
- Você fuma? Ela pergunta,
- Depende!,
- Gostei da resposta,
- Minha casa ou a sua?,
- Calma!
Putz! fui direto ao ponto novamente.
Calma ai arqueiro! Sentenciei-me silencioso. Smoke, gim e – Pardon! Eu toquei no seu peito?... Ai me deu vontade de escrever.
Claire sentada trás de mim.
Eu com a vida passando na janela e esperando, creio, a tal maconha subentendida na coversa-devaneio anterior.
Comecei a cartinha eletrônica, assim:
Eu tô morrendo de saudades meu bem (tenho uma garota do outro lado da tela)... Queria que você estivesse aqui... mas como você não está, tenho que achar amores por detrás das línguas sensuais e ficar imaginando conversas em cyber cafés vagabundos.
Te amo... sinceramente.
Claire se levantou... e eu continuei escrevendo:
Já te falei que adoro tua boca? E que nenhuma francesa vai me roubar de ti?
Também minto de vez em quando.
Claire! Você merece.
E minha sanidade, também.

J.M.N.

Coisa de infestar pensamento

As prestações vencem na segunda. Meus olhos estão murchando. Conto com as coisas inventadas para me saber decente e merecedor de uma promoção. Minha chefa é uma débil mental. Tudo vale no combate à dor de ontem. Quero os doces especiais de um lugar que não conheço. Amor! Me acende. Cuide-se, pois eu te quero. Eu não sou uma ameaça. Ameaçar é verbo que não pronunciaremos nunca. Deixa-me morar nos teus amanheceres? J.M.N.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Cartas a ninguém (17.11.2010 – 05:13 a.m.)

Querida,

Aquilo tudo que se passou no pesadelo de anos atrás, aconteceu. Neste mundo, a céu aberto. Com todos os detalhes e misérias, ademais. Foi feito de reboco e telhas o sofrimento sentido nos porões escondidos de mim. Hoje, nessa alvorada, a única coisa que me deu um alívio tão necessário foi pensar em ti. Posso dizer que acordei contigo. Que houve celebração no silêncio de meus incômodos matinais.

Fico pensando no que seria de nós em outros prados, em outras montanhas. Meus amigos cartesianos a dizer que a saúde mental depende de negar realidades passadas e tão felizes como momentos impossíveis ao agora. Porém, sabes que não sou assim. E sempre que ângulos e equações precisas me cercam, penso no abacateiro do quintal de minha avó, decretado morto há muitos anos, porém misteriosamente fértil até os dias de hoje.

É possível que minha substância seja que nem a desta árvore, que mesmo morta, dá frutos dulcíssimos, de um verde infante, cheio de vida. Penso mesmo que ela verá o ocaso de toda a família. A questão, portanto, não é a vida dos caules ou do tronco, mas as sementes. E como penso em deixá-las, querida. Como rogo para já tê-las deixado, mesmo quando passei feito furacão por teus olhos tão fiéis e esperançosos de minha mudança.

Nada há que soe mais tranqüilo ou humano que tua respiração no primeiro beijo, saiba. Nada há que não revolva mais febril e grave minhas noites que tua lembrança no começo de tudo. Eu apenas dedilhava os sonhos, amor. Era apenas um rufião do porvir. Mas nunca coube neste fato. Jamais aclamei a certeza de que agüentava o tranco. E mesmo na hora do primeiro não de minha fonte, sinto-me feliz e pessoalmente orgulhoso por ter aqui chegado.

Contra todos os desfeitos de colos e casas. Contra todas as ameaças de não ser e abandono. Fico feliz por saber encontrar meu rumo em minha literatura incompleta, porém vivente. Minha armadura de carne, sofrimento e verbo. Enquanto não há posses em meus papéis ou gavetas, enquanto a maleita desespera quem tanto quer, mas não sustenta, posso apenas pedir que entendas. Que apesar de nunca ter sido teu completamente, fui profunda e infinitamente nosso... ontem, agora e para sempre.

Sinceramente,

J.Mattos

Poesia enferma

Queria fazer um poema no qual coubesse minha tristeza inteira, porém tão triste ficaram as letras que ele desistiu de mim, e correu. De sorriso em sorriso esgueirei-me dentro do verso, depois na prosa e reparei que as horas iam crescendo dentro de mim. Vi que tudo de triste chega atrasado – minhas desculpas, minhas meias aos teus pés com frio. Toda manhã cansada e fria é pra mim a pior derrota. Menos, porém, que viver sem ti. Cheguei tarde ao nosso adeus. Perdi as chances em Paris. Voltar ou não voltar, não era mais o caso porque de tanto ficar, já não estava. Se crês que não é assim, que foi tudo um engano. Se a cidade também se despede de ti, vai ao cais, à meia-noite. Anda uns minutos olhando para as águas e verás que o rio que passa silencioso, bebeu toda a tristeza que era para ser um poema, mas virou sua mais veloz correnteza. J.M.N.

Possível trilha

domingo, 14 de novembro de 2010

Quando a noite cai

Ainda tenho umas notas, escuta. A canção está no fim e vai contando uma história, como todas as boas canções de antigamente. Vai dizendo de mim. Vai vendendo nós dois. Não fosse desengano, peste, minha investidura no impossível seria um final feliz. Nada acontece por acaso. A canção está quase sem palavras, é só melodia plena de sentimentos. Um olho quebrado, minha visão degustada assim de pouquinho em pouquinho. Como eu iria saber que a vida é desse jeito? Tive de correr pelos campos. Agora apenas os acordes finais: sei que ainda acontece de chorarmos pelo que se foi, minhas lágrimas são rios de memória e verdade, correndo ferozmente para encontrar o que fazer quando a noite cai. J.M.N.

 

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Olho d’Água

Bom seria se essa travessia fosse um deserto, porém o mar recaiu sobre teus olhos e agora a força das coisas represadas e esquecidas nasce. Como se tivessem descoberto as maiores reservas de sal e dor do universo inteiro. Simplesmente porque soubeste que eu estava na lembrança de mais alguém. Quando for para te ver sorrindo, liga. Enquanto isso, não posso fazer nada pela tarde cinzenta que toma conta de ti, uma vez que estou a espera da mesma chuva cair. J.M.N.

Rudimentos do Impreciso

É como mil asas em liberdade batendo, o beijo
No primeiro e imprevisto encontro entre os seres
É como a cama arfante pelo cansaço dela, a espera
No primeiro instante em que se caem meus olhos
Conquistados, nela
É como saber que não surtirei o efeito de sempre, seu cheiro
Saber-me imobilizado pelas pétalas que ela exala
É como a despesa de um mês inteiro numa aposta, meu empenho
Como nascer duas mil vezes entre seus braços
E sirvo, alastro, inspeciono a vida de seu jeito
A procurar descrições aos seus predicados
É como o preso que dança as lágrimas de porta aberta, minha entrega
Santidade de dar em nada ocultar pecados, duvidar
Do seu corpo como a morada do que jamais saberei
Ou daquilo que já me seja
Sem sequer ter-me sido apresentado

J.M.N.

Inciso IV

Fica definido como imperioso e grave o comportamento de andar sozinho no sentimento amor, como quando se acorda indisponível ao mundo e a única coisa que se tem ao lado e o relógio a esperar que as horas mudem e o desencanto passe.

Breve discurso sobre a dignidade do traidor

“Li nos escritos dos Árabes, […] que, interrogado Abdala
Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espectáculo mais maravilhoso
neste cenário do mundo, tinha respondido que nada via de mais admirável do que o homem.”

Giovanni Pico della Mirandola
Discurso sobre a Dignidade do Homem, p. 49

Fartou-me escutar as agendas sempre cheias dos dias, as cartas jamais escritas e os presentes de aniversário esquecidos. Fartou-me o beijo ser sempre com a boca miúda de consumo pouco, um cano de calibre mínimo para o mundo. Enquanto desdobravam-se pomares e relicários em um, no outro, os casulos eram a única promessa possível e, ademais, aceitável.

Ir quebrando a confiança pouco a pouco é um risco. Dá-nos a impressão de que ainda somos os mesmos, porém o que vai no íntimo está distante há tempos. Calha que um dia uma grosseria estoura e as palavras mesmas que significavam amor e ternura afugentam e ferem como lâminas bem afiadas e precisas. Nenhuma carne resiste. Já estive em tantos corpos que posso dizer por certeza vivida.

Mas há nisso tudo um fio condutor que não está posto a ninguém. É como a cabala de tudo que foi caro e bento por muito tempo, mas que precisa de uma mística maior e mais incerta, pois a divindade se cansa fácil. É como a imortalidade de um amor aos pés do corpo de quem se ama. Dura o sempre para dentro. Nada mais.

Fartou-me enjeitar a mim mesmo nas costas do sol do oceano. Aberto e aquiescido nas naturezas de dentro. Desejos sofridos pela janela sempre fechada. Sufoco que só o grito não resolve. E ao cair do símbolo virei gente. Do tamanho próprio que sempre me coube. Errado, vil, adstringente, soberano das faculdades eleitas por todos da espécie, porém exercidas apenas por quem ama muito mais do que é prudente. J.M.N.

Excertos Terapêuticos XXIV

“Emanuel Subtil olhou-me com desdém. Não respondeu. Já no hall, enquanto escolhia um guarda-chuva discreto, conforme ao meu ofício, entre um denso molhe deles, ainda vi o brasileiro abrir caminho através do fumo espesso e desabar no sofá, junto às duas raparigas loiras. Vi-o fechar os olhos. Cruzar os braços sobre o peito magro. Pareceu-me que sorria. Tenho conhecido gente um pouco estranha nestas festas. Existe de tudo. As ocupações mais bizarras. Eu sei, é claro, que isso depende sempre da perspectiva. Eu, por exemplo, vendo caixões. O meu pai vendia caixões. O meu avô vendia caixões. Cresci nisto. Acho até prosaico. Preferia, reconheço, dar aulas de levitação. Paciência. Consola-me saber que a morte é melhor negócio. Como o meu avô dizia - só uma coisa me aflige: a imortalidade.”

José Eduardo Agualusa - Manual prático de levitação, pág. 49.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Something Changed (ou “mesmo que eu não fosse”)

Se eu tivesse escrito dez canções de amor, seria pouco. Se houvesse certezas a mais em todas as vezes que eu disse que te amava, seriam sempre exageros mundanos, pois tudo que fui, aconteceu em outra atmosfera. Talvez idílica ou fugaz, porém nossa. Universal na integridade do que te oferecia. Inteira e completamente. Nenhuma das tuas perguntas cabia naquele instante. Sei, ao certo, que algo mudou.

Hoje perguntaram se eu ainda penso em ti, pois jamais me ouvem gritar teu nome. Achei engraçada a pergunta. Que gritos são mais absurdos ou brutais do que aqueles que saem em silêncio? Mas não lhes digo nada. Apenas sorrio. E as dúvidas talvez se dissipem, talvez aumentem, não importa. Depois que me calo, te peço desculpa baixinho. Pela indiscrição das pessoas, pela falta de explicação de minha natureza.

Alguma coisa mudou. Quis muito ser diferente. Hoje não. Se acreditasse em entidades celestes, eu diria que és uma delas, pois mesmo quando não existe a tua presença, estás aqui. Ora calando, ora empenhada em me dar voz, fazer sentir. Mudando meus humores. Onipresente. Quando acordei naquela manhã, não havia jeito de eu saber para onde íamos. E mesmo tendo feito de tudo para te perder, meu maior silêncio ainda indica que estás. Que me és, além de tudo e de todos. J.M.N.

Trilha sonora obrigatória… Pulp, Something Changed

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Enquanto pensas, enquanto eu digo

Justo agora queres voltar. Precisamente no minuto em que as cordas foram soltas. Exatamente onde as contas acertadas, começam a deixar outro bar pelo caminho. Agora vens com a euforia redobrada. Quando tudo era amor e sorte, não. Antes era apenas a performance de tua solidariedade comigo e meus desvelos, minhas seqüelas, não é assim?

Agora vens por conta própria, dizes. Mas eu já fui.

Às vezes encontrar alguém é como fazer cantar uma pedra, cunhando com cinzel ou marreta a dura camada que envolve o prêmio. A pressão dos séculos e o brilho de cristais de quartzo, intocados pelas mãos de quem seja. Meu dentro era assim quando eu te conheci. Outras vezes era menos digno, confesso. Mas que seria da humanidade sem a imperfeição de todos nós?

Só tenho saudade amor. Lenço para os olhos úmidos que chegam a alcançar os teus enquanto não acreditas que estou indo. E, além disso, uma velha canção, um blues como já foi minha alma um dia. Triste e bela ao teu lado. E ficam meus beijos, como cavalos correndo no prado tentando chegar aos teus cabelos, as linhas mais bonitas e distantes do que fui ou senti. J.M.N.

Trilha possível…

Prelúdio Nortista I

História boa era do Nico Piaba. Tinha sido caçador nos tempos da escravidão. Não havia picada de mato ou grotão que ele não conhecesse. Era mestre em cheirar os matos e aprender num segundo qual era o rastro que devia seguir.

Um dia foi contratado para seguir negro fujão da fazenda Oliveiras, no norte do estado. Recebeu adiantado. Entrou na mata. Achou até ouro pelo caminho. Quando deu com o som do batuque tava mais perto do que imaginava.

Do meio das árvores apontou seu rifle para o bando. O dinheiro mais fácil do mundo, pensou. Mas quando viu que havia riso e festa e a dança que eles dançavam interpretava a liberdade recém-chegada, apontou para o manto da noite, mas não atirou.

Devolveu o dinheiro que tinha recebido e voltou por onde veio para comprar uma casa e emprenhar Antônia... que já tava na hora de parar de espiar a liberdade dos outros em segredo.

J.M.N.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Memórias Parternas 6

Há 5 minutos…

Quando eu me morri pra filho, fiquei teso
Era a própria hora de eu correr pelo mundo
E corri
Mala, cuia e afrontamento
Quando eu voltei
Por achar que tudo estava errado em mim
Estava errado de achar que era eu
O erro cometido, antes de mim e em meu nome
Foi ai que ressuscitei pra filho
E deu vontade de correr o mundo de novo

Desta vez, apenas por causa de mim mesmo.

J.M.N.

Memórias Paternas 5

Há 3 anos…

Quando me morreu meu avô, fiquei pedra
Estrapolando o tempo dele, eu fiquei
Confuso que só dava para esperar minha própria morte
Mas não fui
Tinha aprendido,
daquelas mãos tão desejadas e temidas, assim:

- Quando eu me for chora o que tiveres de chorar,
   porém o faz por ti, que ficas.

Foi uma lembrança reparadora
Dessas que só se tem dentro da saudade do amor
E então, eu nem soube como era ter medo
por mais um bom par de dias.

J.M.N.

O troco, o vento e o cão que não tivemos

Passava das três horas da madrugada. Tudo silêncio. Ela acordou. Perguntou qualquer coisa que apenas ouvi fininho do canto norte do meu sono profundo. Senti que o seu peso abandonara a cama. Não me mexi. Estava sentido demais para abraçar-lhe ou dar a mão. Ademais, tinha um dia inteiro de trabalho pesando nos olhos. Ela iria demorar. Enquanto isso passávamos umas férias em minha cabeça. Com praia, vento e um barco que esperava pela gente bem perto das docas. O dia do meu sonho acabava com ostras e camafeus. Depois de não sei quantos anos ela volta. Tateia a escuridão em busca de minha redenção ou culpa. Tenho certeza que era isso. De repente o terço de contas em lágrima da minha avó. O sono já estava repleto de tudo aquilo que eu amava. Era a simples presença dela. Aproximava de mim o que mais tinha de fundo e prezado. Ela me descobriu no escuro, já estava de costas para mim, precisando que eu a abraçasse. Resisti um pouco, meus olhos cerrados e o peso da noite em lufadas de vento fresco da Lombardia sonhada. Seu riso começou baixinho. Sonhei que a moça da limpeza pedia para ficar com o troco do pão. Levantara para ver se o dinheiro ainda estava no potinho da sala. E quando finalmente estávamos formando a mesma figura uma que moldava nossos sonos com a maior perfeição, ela me disse, acho que precisamos de um cachorro. Queria que ela soubesse que são esses detalhes de sua presença noturna, as coisas que mais doem em mim agora. J.M.N.

Apenas uma canção de boa noite

Hoje apertou. Doeu o dia inteiro e não dá sinais de passar. Cabe um litro de mertiolate na ferida, como uma boca para o meu desconforto de estar só. Rasga a pele e evidencia tudo que tenho dentro: amor, amor e talvez umas miligramas de desacerto, desmantelo. Acaba que eu tenho coisas a te pedir. Afinal, tanto tempo não se omite das prateleiras, das coisas que sonhamos um com o outro. Não se esconde tantos anos num único soneto de amor.

Mas acontece que tinhas razão. Eu não. Não tenho sombra nem flores, nem lenços brancos para usar na lapela. Acho que cago pro amor. Mas nem sempre foi assim. Uma expressão dura para a coisa que mais me consome. Sabes muito bem que sou um imbecil diante do espelho. Cá estavas e eu não. Pensei que me tinhas por mais importante e não vi que era para mim que deviam funcionar as expressões de boa fé.

Passa um dia e vem o outro e uma dúzia de nefandas cartas a sorrir seus endereços mortos no teu alpendre. Não me resisto. Cumpri meu erro – a men committed a crime, fell in love with this mind. Já não acho mal dizer. Então diz com tua força e teu teto. Ruge argumentos e espadas. Aponta as flechas que eu espero. Eu, minha sacola marrom, meus livros amontoados em todos os cantos da casa, a peça de teatro que escrevi em tua homenagem. Uma porção de coisas nulas nesse meu mundo de agora.

Canta baby, canta pra mim. Apenas uma canção de boa noite! Adeus!

J.M.N.

Trilha possível…

Ousadia

Depois de tantos anos é incrível acordar contigo. Afora o ineditismo, essa sensação de proximidade ainda sem um aperto de mão ou abraço. Imperativo que saibas que pensava em ti durante esses mais de seis mil dias de afastamento. Ainda moras nas escadas do nosso colégio sabendo à aflição pela incerteza do encontro durante as férias. Eu ia caminhando pelas ruas perto da tua casa e aguardava te encontrar tarde adentro para um beijo. Depois de tantas perguntas refeitas, de eu ter elevado à infinita potência minha dúvida em te abordar e dizer olá, simplesmente desfizeste o medo com a delicadeza que eu sabia era tua por natureza. Depois de tanto tempo sem pensar em me reencontrar com meu passado, finalmente sento ao fim da tarde e, enquanto o sol desmaia calmo, penso em ti com a devida importância, penso com todo o dentro satisfeito, ousando esperar um café ou a possibilidade de admirar alguns dos teus mais recentes desenhos. J.M.N.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ninguém Dorme

Ed il mio bacio sciogliera il silenzio
che ti fa mia!

Nessun Dorma – Giácomo Puccini

O que me resta é o tempo da madrugada desperta que irradia tua lembrança. Como estrelas arrumadas para anunciar o começo do mundo, como nós deitados nos anos mais tranqüilos a pensar na beleza das praias por onde andamos.

O que me refaz e expande é a presença desse cheiro fino e regular que atordoa meu quase sono. É como ter tua pele recém saída do banho bem perto de mim. Acusa-me de algo, para eu poder seguir adiante. Para seguir-me, apenas.

Por todos esses segredos que estão trancados em mim, por eu ter descoberto muito tarde ser mais um fugitivo do passado – perdoa, que perdoar-me é maior que minhas possibilidades. Mas não direi nada mais até a luz acender o mundo novamente.

O que resta é pensar e querer na mais íntima confissão já feita, que seja meu beijo a quebrar o silêncio, que seja o reencontro abundante e completo, aquilo que fará as bases da Terra tremer. Como era comum enquanto éramos unidade, enquanto, à noite, acordávamos juntos. J.M.N.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

So I Walked In The Rain

Tinha esse estranho hábito de ser teu. Completamente, como as estações do ano acontecem na Bavária e noutros lugares impensáveis. Era todo junto de tuas condições e percalços, todo certo de ter razão e chão que me amparassem definitivamente. Todo feito de amor e descanso.

Aí aqueles gelos do Atlântico. Como freqüências subatômicas e reincidentes. Fui descendo tristemente do horizonte incondicional que me davas. Regado pelas chuvas do continente, ilhado, com a latitude empenhada em descoberta pessoal e tão necessária. Pouco afeito a partilhar os passos, tão cansado que estava de não chegar a lugar nenhum.

E então abri a porta da casa e saí pela chuva. Acordara as vielas mofadas de minha genealogia mais pura. Amar, eu amava e continuava impreterivelmente teu. Chamava amor ao medo de sentir sem te incluir, pedaço que eras dessa carne corpórea que me arquiteta aventuras e achados. Todo teu por oração e força. Tão mais meu por conta própria.

De que adianta saber dos gostos da chuva atlântica? De que saberá a história de Espanha, ao reconhecer no meu gesto de procura, estar na cidade mais perto à tua, para fazer-me sempre presente? Tão tua que não vergaste sequer em tua espera. Esse momento que era só teu em tua presença. E eu, todo contente de ter finalmente encontrado um rumo, continuava com medo de não acordar jamais.

Tão sentimental que deixei a chuva me socorrer e limpar. Tão acordado para as venturas de ser, que nem quis mais saber por que teimavas tanto em me ver mudado, cabendo na esperança dos teus, longe de mim para sempre.

Escuta amor, estas últimas gotas são lágrimas. E caem de saudade e milagre. Ainda tenho alguns hábitos que apenas eu suporto ter. Dentre eles te amar como sou, até que a lua fique de ponta cabeça. Até que aconteça de eu morrer, afinal. J.M.N.

Para ler escutando…

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Perguntas de Ontem XIX

Eu sou a tua escuridão. Sou a tua riqueza empenhada. As tuas tardes em frente ao rádio lânguido. Sou quando não tem palavras e o silêncio te engasga, são as minhas mãos envolvendo o teu pescoço num abraço lento. Em mim mora a distância que te afasta da razão e te achega ao desatino. Foram as minhas horas que te habitam que te enganaram quanto ao dia e horário daquele voo pra Belém. Veio do meu deserto o sal das tuas últimas lágrimas. Mas não tentes escapar, senhora. Como há de se fugir do que se leva nas entranhas? Como fugir do que está entranhado?WDC

Pergunta de ontem: Que seres habitam a tua noite?

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Micro-romance V

Para Francesco e Nadine, em algum lugar do mundo

Voltou por onde viera da primeira vez. Seus passos ainda estavam lá, chocando o tempo agoniado do escape. Era uma fuga. Era uma animação maior que todas as festas da cidade juntas. Era necessário outro caminho, pensou. Logo, logo não precisaria não, terminou seu sorriso já além do que não podia. E foi. Correu pelo sereno da madrugada, sempre com a carta dele à mão, apertada no peito. Corria que era quase como escapar de si mesma. Às duas da manhã, chegou ao lugar combinado. Ela trazia suprimentos para a fuga. Pão de ló, frutas frescas e água pouca. Ele a estava esperando, calmo e sorrindo para o luar, conjuminando o feitiço dos lábios dela, com as coisas que ainda não conhecera de seu corpo e sonhos. Ela abrandou os passos e correu por trás dele para dar-lhe um beijo. E nisso ele pulou, e a corda soltou-se de sua mão. A correnteza estava forte. O barco foi indo, ganhando força. Descendo o rio como numa corrida de vida própria. Ele se virou num susto e disse a ela, olha nossa liberdade indo embora. Depois de um segundo sem ar, ela virou o rosto dele que estava prestes a sucumbir na noite e disse tranquilamente, a liberdade a gente já tinha, resta saber como viajar nela. Até onde sei, tudo deu certo para eles. J.M.N.

Desavença

Em luta sempre, queria provar-se. Queria ser definitivamente de alguém. Encontrava-se na casa dos trinta. Era linda e desejável. Mais incerta que os desvios da estrada recuperada. Andava ao largo de tudo. Encontrava feridas abertas e as fazia sangrar. Entendia de sulfas e antidepressivos, coisas que delongam as feridas, estancam as vontades como fossem os arcanjos da madrugada toda em elétrica parada. Era um sofisma. Insustentável. Sabia se colocar à disposição, mas ao fim e ao cabo era apenas dela mesma. Sua única pessoa amada. Fosse como fosse, foi desacordada encontrar seu fim. Naquele dia, uma manhã ardida num sol raro, ela entendeu que seria só mais uma conquista. Não era dona de nada. Nem de si, nem dos finais. Estava exatamente entre os condões de outro conto de fadas. E já não queria isso para si. Não queria ser deixada. Não queria ser magoada. Não queria mais ser apenas de si. J.M.N.

Desgoverno

Entrava e saía do meu corpo. Escorregadia, dobrável. Serpente tateando meus sonhos, abrindo caminhos dentro das minhas maiores insuficiências. Dormia comigo e me fazia bem. Acordava e gritava como não houvesse promessas entre nós. Me fazia mal, depois os risos. Nunca arcava com as conseqüências de nada. Tinha pessoas preocupadas em lhe dar o que lhe negaram ao nascer. Era isso que se reproduzia em seus galanteios. Um eco de coisas que jamais teve. Uma mentira muito bem contada. Afinal de contas era aquilo que nos unia. O que não tínhamos para oferecer um ao outro, porém buscávamos. E não passamos disso. Meu corpo pedia sua presença como uma droga muito rara e específica ao funcionamento de minhas esperanças. Ela era tudo o que eu tinha pedido para ter. Era a mais perfeita aparição do que não devia. Mas ai um dia, mordi meu lábio enquanto a amava, desesperado e sensível como nunca, e nesse momento entendi o quanto estava longe dela. Longe de compromissos ou equilíbrio. Vi que o sangue que escorria era apenas o meu. J.M.N.

They have nothing that will ever capture your heart

Sobre a música Downtown Train de Tom Waits
e sobre muitas outras coisas também

Se houvesse trens em minha cidade, certamente viajaria noite adentro, antevendo paradas repetidas perto dos lugares que freqüentas. Porém ando de pés, pelas calçadas esquecidas e lembrando que na maior parte de nossos dias, tivemos boas razões para amarmos um ao outro. E ao capturar teu centro, dei tudo quanto era meu, até o fim. Eles jamais chegarão perto disso.

É como prevíamos. A completude acontece raramente. E nós a tivemos. Colocada em prática segundo uma lógica própria e transida de penas e amores eqüiláteros. Tu dentro da razão compartida dos esquadros e fractais. Eu saqueador de versos e tumbas recém ocupadas. Envolvidos eternamente em nossas faltas. O que me faltava, faltava a ti e a soma disso era o que tínhamos. Certamente não tenho provas de existência melhor que essa.

Se acaso fosse partir novamente, desta vez iria sem te dizer quando, para onde. Porquês não seriam o problema. Mas não posso escrever inverdades. Sobre estas palavras, acontece o livramento tão esperado. E mesmo que ninguém saiba como capturar teu coração e apenas tu, saibas como fazê-lo ao meu, vou saindo de fininho. Minhas mãos em ondas, agitando o escuro da noite, dizendo um adeus que não cabe em tempo algum.

Não há nada nessas ruas que interesse aos nossos corações, não é mesmo? J.M.N.