quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Por todos os feridos

Agora sim eu percebo. Fui tentar proteger, mas piorei tudo. Esse meu ranger de dentes foi depois que te perdi, nasceu no escorredor da raiva por ainda ter esperanças de ser teu, de seres minha. Levanto a bandeira branca. Paz enfim. Para nós dois que cursamos a mesma escola de animais feridos, de pastores órfãos e gentis larápios. Nós que nos debruçamos mais de uma vez sobre as impossibilidades apenas para sacrificar mais da coragem autêntica e irresponsável que nossos ancestrais nos puseram nas veias. Somos os tais. Fomos idiotas. Como todos os que dependem dos hormônios integrais para existir. Veja os limites que registramos em fotos. Uma chama, um coiote abatido, a lava de um vulcão passando bem próximos aos nossos pés. Mas no fim, todos saem feridos. E nós destroçados. Indo e vindo através da indecisão e da falácia. Uma última bravata: se todos se machucam, porque em nós isso parece acontecer em dobro? J.M.N.

Trilha sonora…

Fábulas da Reconstrução I*

Os últimos dias foram longos demais. Como os oleodutos através da tundra russa. O ouro negro correndo por uma veia metálica em paisagem desolada e muito branca. Enquanto tantos olhos dormem e permutam as impressões do dia com seus desejos de além-sono, esse pequeno diário requer ainda mais de minha pouca energia. Fim do dia, uns rabiscos e as frases trêmulas nascendo vagas vão dando conta de que as fundações foram as mais difíceis. Décimo quinto andar agora. Um horizonte limpo, sem nuvens o céus transmitem paz. Foi só uma lembrança. O herói que antes cantava forte desvanece enquanto as pessoas lá em baixo vão tendo seus dias contados. Lindos esquecidos aqueles que andam como se nada devessem. Vejam seus passos, dizem tanto sobre o que fui antes de atentar para o espelho. Apesar de tudo, uma quietude. Enquanto houver dias e um céu destes, contarei sobre construção que envido. Tenho um ingresso para o jogo de hoje à noite, mas desistirei para estar com alguém, feliz pela felicidade em revê-la, contando os pontos de quem perde. Lá de onde estou, décimo quinto andar, vejo a figura pequena de vestido branco na multidão. Sem saber seu nome, chamei-a – Esperança. J.M.N.

Trilha sonora…

* O título deste post foi retirado do título homônimo (em inglês) de um disco do REM.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Ao seu pedido

Mais uma vez. Acaba de acontecer. Ela vem e destrona certezas, quer apenas sorrir e faz isso com tanta graça que nem acredito ainda possíveis pessoas assim. Faz essa bagunça na minha tarde com uma simplicidade assustadora. Ainda bem que não ando mais às margens de sabe-se lá qual gruta inexplorada. Muito fácil perder o foco e capitular à distância imensuráveis de sua desavença para com meu estado depois que ela se vai. Abre a porta, com copos à mão. Tem dificuldades para abrir a porta. Ajudo-a na seguinte. Seus olhos desviam ainda não compreendo que tipo de segredos, mas há. A verdade é que tudo fica melhor depois desse simples gesto. No fim das contas não fui eu quem a ajudou a passar pelas portas, transpor espaços, acomodar-se esquecida de todo o resto. Foi ela quem melhorou minha tarde, não por simplesmente existir que esse exagero é para quem chegará nesses meus anos de agora, mais adiante. Ela melhorou minha tarde por ter me permitido vê-la no seu segundo desprotegido, naquele ínfimo resíduo de realidade em que os seres que nem ela, enrubescem, pedem ajuda ou não dizem nada esperando ser atendidos em todos os seus mais absurdos segredos. J.M.N.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Por tua fogueira

Aos meus grandes amigos M. e J., cuja resistência me é admirável.

É preciso assoprar as velas, os anos estão passando. Estão passando sobre nós feito um trem descarrilado, feito um jato à velocidade do som. No sopro a luz esvai e aquela flama de um pavio contado pode chegar a outros cômodos da casa.

Há que ter cuidado. Um cuidado redobrado nesta década infernal onde há mais gente boa indo embora do que em todas as épocas do mundo. Uma desesperança gritante em relação a tudo e todos. No fim do dia, haveremos de contar nos dedos de uma só mão os amigos.

Vale a pena perseguir a memória. E que essa memória transporte os melhores afins de felicidade e constância, que se perca entre as melhores festas da infância e sabores espantosos dos primeiros beijos de amor. Ao fechar da boca, o ar da gente é circundante, faz sentido que seja puro e raro como encontrar um islandês comprando frutas no mercado do bairro.

É devida essa culpa e essa vergonha de agora, sinal de que nem tudo morreu dentro da gente, indicativo de que ainda tememos um invisível que nos controla e redime, conforme mandam os nossos atos. Esses atos que vêm trinados e desastrosos, mas também coordenados e melódicos por obra e malícia do mesmo acaso, são nossa obra final. Nos servirão de epitáfio, queiramos ou não.

Por tua fogueira inchada e viva. Mais viva que as partes amáveis do teu espírito amigo e de homem simples. Por esse momento teu em que reconheço o que já tive e me teve mais que qualquer pesadelo terrível e vejo refletido em ti o rio caudaloso da culpa. Não oferto razão ou regras, tampouco suavidades ou sofismas.

Declaro iniciada a partilha da dor. Em todo o esplendor do desespero compartido, da contemplação conjunta e silenciosa de monges orientais. O sentimento que nos cabe é apenas o que podemos suportar. Não fosse assim, o mundo estaria vazio e não haveria ninguém para, sem saber da vida o mínimo, atirar em nós o medo monstruoso do que não entendem e evitam. E tão menos estariam erguidos aqueles que, dentro dos extremos e do impossível efêmero, escolheram dar seus passos sobre este planeta. J.M.N.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Tipo estranho

Alguém veio e torceu sua aorta. Não é isso não. Apenas a espera pelo encontro, sufocante e dura como um enfarte. Tem seres que causam isso na gente. As entranhas domadas às portas do beijo. Pela hora da morte é o preço pela aventura. Mais uma ferida que volta. Agora um afogamento, por saber que haverá um atraso. Dez minutos de eternidade até que os passos salvadores de quem se espera indicam o caminho. Melhor não olhar para trás, não saber de antecedentes, ataduras naquela alma que nos possuirá por inteiro depois do abraço. Estranho esse tipo de sentido, inaugurado sobre calamidades corpóreas e tragédias em qualquer tempo de espera. Vem disso, entrementes, aquele gosto ácido e dulcíssimo de verdade. De certezas impunes e impossíveis de negar. Aquele ímpeto de entregar pequenos pedaços de si dia após dia e não se importar. Tem pessoas que não deveriam ter essa energia absurda, essa força de convocação às escolhas dementes – ou felizes demais. Tem gente que estranhamente nos atrai aos princípios do tempo, aos genes de nossos impossíveis pessoais. Como se nenhuma experiência vivida, nenhuma conquista feita fosse maior que sua presença imperiosa na dupla cega de um amor de perdição. J.M.N.

Para ler escutando…

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Desmemoria II

Acabou a guerra, sobraram os corpos. Mortos que viram o fim de tudo. A história não ficará ao lado deles. Acabou a festa e as bodas desfizeram. Sem comemorar tudo se resume num passar indefinido de dias. Uns sobre os outros a correr não se sabe para onde. E de nós vai escorrendo esse sumo quente e transparente que era puro há pouco, mas que agora recobre os escombros, atraindo para si toda sorte de poeira e cacos demais para voltar a prestar. Vai-se apagando a fluidez do nome, a vitória do abraço e, por fim, o macio dos beijos. Há que se esquecer de entrar no vetor desse tornado, no escuro dessa madrugada eterna. J.M.N.

Desmemoria I

O terço não me traz a linha de santidade que eu queria, ou achava ter. Não me traz nada, além de contas alinhadas em fio de carpintaria. Sou eu que não digo mais meu nome em voz alta ou as pessoas que esqueceram? Suspeito que alguma coisa aconteceu com minha imagem entre as três da manhã de anteontem e aquele beijo resumido que demos ao pé do adeus. É como pastar ao contrário e verdejar os campos por onde passamos, mas não sentir gosto algum, satisfação alguma. É como ir perdendo aos poucos a faculdade de reter coisas dentro da gente. J.M.N.

deuses e afins

Seu ardil durou pouco. Apenas o suficiente para que ele entendesse. Aliás, muito menos que o tempo da percepção dele em relação à sua atitude. Muito antes de ela o ferir, ele já sabia as razões. Era parte delas. Mas não era único. Entre semelhanças, desesperos e muita entrega, aqueles dois tinham muito mais em comum do que poderiam supor. Nenhum dos dois teve um lugar exclusivo. Sempre aviltados, por irmãos mais velhos ou moralismos da vizinha chata. Assomava-lhes a vontade mesma de rasgar carnes, de atentar contra a vida. Pudores nenhuns em dizer vertigens à beira do pranto e comer colmeias vivas. Os dois eram prenhes de efeitos colaterais. Serviam-se. Até que alguém desistiu. Não se sabe bem essa parte da história. Sabe-se apenas de uma estatua esculpida, dia e noite, por três anos e deixada na praça da cidade onde se conheceram. Bem em cima do seio esquerdo da mulher de pedra um aviso em letras finíssimas feitas com cunha de lâmina bem afiada, indicava, na crosta dura do mineral transformado: paraíso dos perdidos. J.M.N.

Reassentar

Dona Gonzaga era muito velha. Seu esquecimento comia coisas das vésperas do fim da escravidão. Era branquinha sua cabeça e a pele debruçada no negro do Senegal de onde a mãe e a tia foram trazidas para as bandas de cá.

Dizia não sentir mágoa dos antigos donos, mortos havia mais de noventa anos e se esticava para mostrar o pedacinho de lençol que Nhá Diva dera a ela quando de seus oito anos, ao pé da pitombeira carregada.

E contava essas coisas aos homens que derrubariam sua casa e a levariam para uma maior, de alvenaria, resistente ao tempo, aos bandidos, mas sem quintal ou árvores como já havia detectado Dona Gonzaga pelas fotos que os netos dos netos dos seus netos lhe mostraram.

Ninguém devia sair de seu lar. Foi o que disse ao chefe da comitiva de transferência da vizinhança. O velho engenheiro com experiência igual em vários lugares do mundo, finalmente achou um rosto que o perseguiria juntamente com aquelas palavras ditas em meio a um largo sorriso.

Quando chegou a nova casa, Dona Gonzaga agradeceu a cada um da equipe com um beijo especial. Ao engenheiro chefe deu o mais longo deles e arrematou o encontro dizendo apenas: difícil vai ser não ter suco de graviola natural, faz bem para minha garganta.

Sua casa hoje é a única do assentamento que tem uma pequena cova no cimento do pátio, aonde se pode ver um pede carambola vicejando. J.M.N.

Opala

Era quando aquilo que seus olhos eram capazes de fazer acontecia, que minha insistência num emprego desgraçado como aquele se justificava. Vinha, a bem dizer, decorada de luz. E tudo quanto tocava ou fazia trinava espectros finíssimos de luz colorida. Uma festa aqueles olhos me atenuando o peso do esforço e do calor abominável de meu pequeno escritório.

E o conjunto era perfeito. Avisava aos fracos que não viessem que não perguntassem besteiras ou pornografias. Dizia silente que não se acostumassem àquela suavidade vespertina que acobertava seus erros depois que a visita ao chefe terminava. Era vetada aos nossos gostos e dedos, às nossas verdades perversas ou convites de jantar. E assim permaneceu enquanto durou o brilho, enquanto outras portas não abriram. Do mesmo jeito que chegou se foi.

Acontece que agora as tardes parecem bem mais longas que antes e, não sei, mas tenho muitas vezes a impressão de escutar suspiros pelos corredores e vejo tristeza na luz que entra pela janela da frente, logo depois de ter descoberto pássaros sobre as árvores lá de fora. J.M.N.

Um nome para a partida

A identidade final seria revelada. Não sem antes uns anos de dor e agiotagem de sentimentos. Andava pressionando a memória para que ela me cuspisse o nome dela. Nada. Uma tarde chuvosa, anos antes. Um país longínquo do qual nem mesmo fotografias restaram. Seria assim? Um fim em meio a tanta predição e vontade. Aquela ascese arrebatadora a uma memória não confirmada, de um tempo a muito morto, num lugar que não existia mais. De lá, daqueles confins assustadores da doença, ela sobreveio. Ríspida, vulgar. Como sempre. E afinal a enfermeira entendeu que era apenas um delírio e me fez aquele carinho insípido de todas as enfermeiras de casas para velhos. Ajustou meu balão de oxigênio e saiu de fininho fingindo que restaurara minha calma com aqueles seus gestos pensados e insuficientes. A identidade viria novamente. Fazia força para controlar meus músculos. A fragilidade de meu corpo se revelara de maneira decadente e constrangida, com minhas necessidades fisiológicas não podendo mais ser coordenadas por minha vontade. Às vezes eu cheirava mal como a minha memória. Ainda assim, sabia que viria. Que ela, em sua portentosa figura acenaria para mim um dia daqueles. Assim foi. Com seu grito eu levantei da cadeira. Uma tarde rosada e cheirando aos cinamomos da primavera recente. Não corri aos seus braços. Fui calmamente andando e orando. Tudo o que me lembrava de santo ou bíblico estava ali naquela fala remota que eu emitia para ninguém. Por sobre mim a enfermeira comedida e bem treinada fazendo força em meu peito. Talvez eu já não estivesse naquela casaca houvesse um tempo. Não me furtei em gesticular meu alívio por sair dali de mãos dadas com minha companheira de décadas. Sua identidade foi revelada no momento final e quando soube o que eu passara a ser, ela voltou ao longe de onde veio. Deixou-me seu nome, sua voz azulada e meu descanso eterno como um prêmio. Seu presente final. Alguns disseram que me acomodei no catre com um grande sorriso no rosto. J.M.N.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A origem fervente do grito

Uma volta sempre aos mesmos lugares e a ausência entendida como um pássaro que deixou de pousar ali. Um caminho oculto, quase indiferente, que dentro da gente transporta a nutrição para a tristeza. Esse passo antigo, marcado em terra esquecida. Como doem as lembranças das coisas simples que se perderam.

E não há ventura, retorno ou presente capazes de debelar a força dessa eternidade pontiaguda que nos vem com a noite, repetidamente. E o sono, conspirado, traído se entrega. O escuro não salva o corpo do cansaço que nasce de termos perdido o leme. Como sangra essa carne única, a inviolável trilha do que se quedará doendo no coração da gente.

Acontece bem dentro de onde antes, tão simplesmente, o tempo temia ser superado. Vem e atira de encontro ao céu de nosso sossego o que nem sequer os anjos previam vir. Não são sessões de tortura, armadilhas, nem mesmo o fogo de mil infantarias. São as simples coisas do amor findo que em nós, geram esse grito.

Como doem as manhãs sem tempo, onde nascem as coisas simples que tanto faltam. J.M.N.

Para ler escutando…

Meus pertences

A mim sobrou muito pouca coisa material que lembre tua existência entre as paredes chorosas de agora. Pediste para entregar as últimas roupas, uns enfeites escondidos, bijuterias de toda ordem. Praticidade até na hora dilacerada da partida. As lágrimas amarradas por cordelinhos dourados ou brancos. O que é meu disso tudo? A fotografia secreta em que usas os tais penduricalhos e a blusa com babados que apenas eu gostava, mas que te caía tão bem por que a usavas segura e completa. Esse redobro de memória que tem gosto de estiagem, de evasão. O que é meu dentro do oco da tua pessoa? A respiração, a cócega percorrendo tua pele manhã depois de manhã. Me pertence a tua primeira noite fora de casa. Teu primeiro grilo sobre as potencialidades de teu ventre. Cabe a mim a primeira disfunção agressiva de tua indiferença. Do muito pouco que eu tenho agora, essa imensidão de derivadas e paralelas. Provando em meus espaços que a razão tem de dar o braço a torcer vez por outra. Dando conta de apenas esperar por aumentar o silêncio que ninguém quer escutar. J.M.N.

Este eu dos homens todos

Por causa de Hannah Arendt

Não sou a história, mas a ela pertenço e reconheço a aliança com meus íntimos presentes e os ausentes que sei existem além da minha vida, muito afora de meu olhar. Esse meu olhar, que mínimo, agrada-se do umbigo e fica pensando em si, quando a beleza de ver, está em encontrar o outro dentro da gente ou das lágrimas que brotam quando choramos a partida de quem estava ao redor.

Esse último presidiário esquecido, depois do desmonte da cadeia está anotado nas culpas que levarei. Como eu, ele resiste e se engaja em novos delitos. Não é mais um homem, não faz parte da grande massa. Degenerou. Migrou. Encolheu. Apenas traço do original perfeito, feito à luz da semelhança divina. Quem acredita?

Ajo, por assim dizer, parecendo. Andando de braços dados com meus semelhantes. Antes que todos abandonem o barco e se declarem limpíssimos. E se assim ajo degradando, complementando, unindo ou separando, estou quite com os termos do tempo, com a escritura da vida. Estou quite, enfim, com o desassossego de quem calhou de nascer deste lado do muro. J.M.N.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Canção de se tu me queiras

Por causa da música do Le Mans e por conta das lembranças dessa hora.

Meu pai achava que eu chorava demais, estava acabado dentre os da matilha. Tinha um final pensado e um medo sereno de eu não ser aquilo que ele sempre sonhou – sua máxima diferença. Eu afinava meu pranto e como sabia fazer escondido, engolia tudo que me caia dos olhos. Um dia não deu. Aconteceu de eu gritar ao meu pai que estaria pronto a tudo que fosse amável. Radicado na extrema ideia de ser completo, completando a quem quisesse esse afazer dedicado e irrequieto que é o amor. E disse tudo com a lança apontada aos seus passados, às suas impossibilidades, querendo, ademais, que aquela pessoa saísse de seu pedestal e aplicasse a si, o que eu, desde muito cedo, decidi que seria meu reino. Gritei-lhe o nome dela. Um pânico desconcertante de atavismo lhe veio aos olhos. Pude ver que a identidade lhe chamara ao passado remoto em que tudo cintilava precoce e mortal como a mim, estavam nascendo aqueles dias dentro do amor. E então lhe cantei essa música que me vem à cabeça agora. Roubando a pronuncia da língua à entrega de todo segredo do meu momento. Não houve abraços, nem lágrimas. Não houve a permissão ou o embargo. Apenas a canção dominando a sala, os quartos e toda a extensão da minha vida, a qual, para sempre desde aquele momento, partia numa direção avessa ao querer dele ou de quem fosse. Estava pronto a viver sublime e tenso. Amargo ou doce. Sobre as sandálias dela esquecidas em meu caminho, em sua poltrona de matar a tarde vazia de nossa cidade, a tomar chá sem nem mesmo suportar o cheiro. Falando unicamente que tudo estava bem e que, um dia, contaria a ela sobre a música que escolhi para vê-la entrar na igreja, segurando uma única rosa na mão. Acontecida inteiramente ao me ver, esperando-a. Sabendo num único gesto que tudo o que eu queria, estava bem diante de mim. J.M.N.

Para ler escutando…

A tudo que não vejo mais e ainda assim, acontece

O mínimo desgosto era catástrofe, andávamos sem plano, uma hora sairíamos da estrada para o além, simplesmente. Uma vez ou outra uma reação espontânea. Um coração e outro coração, apenas rimando os dias sem saber onde começara e onde acabaria a ilusão. De certo, ambos abertos ao estrago do inteiro, da amplidão do sono junto, a mordida bem dada na maçã vermelha. Auroras virando sombras e pão gelado no café. Era tudo muito sinestésico e fruído, acabamento de linha clássica de uma montadora qualquer. Andávamos a gastar o forro da gente, os cinzeiros, a alavanca das janelas. Mas tinha o vento sempre a deslizar-se sobre os cabelos dela iniciando conversas comigo mesmo, das quais eu nem sequer tinha medida, uma luz que fosse. Essas paisagens que sua imagem criava enquanto rodávamos na avenida do sol era a única dúvida que eu tinha quanto ao que esperava das drogas – haveria imagem mais bela dentro daquelas gramas? E então um supetão. Buracos à frente e o destino se encarregou de capotar a entrega e as maneiras tão naturais que tínhamos ao nos impedir a felicidade. Foi num dia de chuva. Fevereiro ou março de um ano curto. Parei para ver como ela estava. Subi em seu corpo pela última vez e descobri aquele vinco em sua costa. Aquele indicador de que as carícias escorreriam rumo aos panos de cama, caso fôssemos adiante. Um beijo apenas. Te vejo mais tarde? Sim, trago as ervas para nosso jantar. Não esquece que temos teatro amanhã. Já havia esquecido e não pude fazer nada mais do que acenar-lhe para sempre, andando sem olhar para trás até chegar às escadas, até vencer a lama da rua. Até chegar um dia em que nada dela constava em minhas culpas. J.M.N.

Trilha sonora possível…

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Obediência

Ninguém dorme que a história continua. Enquanto mundos são esquecidos, meninos pedem esmola e hotéis explodem em países impossíveis. Astronautas que voltam depois de décadas de distância, espaço e tempo desmentidos. Essa incerteza toda de antes do nada que nos engole ferocíssimo. Ninguém dorme que é pecado esconder a dor, que é difícil empostar a voz enquanto tudo ao redor cheira a mesmice e impunidade. Nenhum passo adiante. Um atraso por vida. Tudo por um fio (e pela rede, pelos circuitos secretos de algum hacker). Queres saber de mim, pergunte aos outros. Queres ter um conselho de amigo, escreva direito a sua pesquisa e lance no espaço. Mas, se quiseres saber como tudo isso acaba, basta olhar para tua imagem abandonada depois que surge o sol e a alvorada não te diz nada mais senão que a noite acabou. J.M.N.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Uma onda azul

Tudo na mesma. O mundo dando suas voltas, homens caídos numa guerra qualquer e esse gosto insolúvel de passado entre meus dentes. A carne passa sem se fazer alimento. Ao cadáver minhas desculpas. Ando assim. Usufruído demais, pensando em missões de resgate, porém sem razão para isso. Ninguém merece outra morte em seu nome. E dentro do gosto, ainda flambado a passado, uma foto que tem a gente, sentados naquela murada, anos-luz desse meu ponto de agora. Recorro à tua misericórdia para dizer que cansei. Faz escuro, mas eu canto. Era o que dizia o velho poema, dos velhos defensores das velhíssimas utopias de antanho. A quem cantar agora que tudo não passa de uma vizinhança que não existe? A rede, a compra, nossa vida invertida de sentido e fazendo-nos correr para acabar mais rápido. Sabe? Existe ainda aquela letra que não publiquei, onde brincava com nossos nomes e atava-os a um herdeiro de belos cabelos compostos pela forma e pela cor de nossos próprios cabelos. Seria nosso filho místico. Nosso ponto de salvação, talvez um porto seguro. E quando penso nele e em nós cumpridos e velhos de tanto amar, vejo que nesse sonho apenas nós envelhecemos, apenas nós seguimos a vida do jeito que ela é. Nosso sonho parido tem todo direito de não estar mais presente entre nós. Porque nós morreremos em alguns anos e o filho celeste que nunca chegou ficará naquele quadro de sonho, num frame de saudade, vagando feito uma energia boa a ser capturada por quem durar mais do que nós. J.M.N.

Trilha sonora possível…

Lágrima dura

Minha lágrima dura persiste
Tumefata por sobre a íris que grita
O ver que sofre
De abundante e tão perdido no imensamente
O cristal tingido pela grafia do inquieto
Não é safira, feldspato ou turmalina
Uma joia de rara razão, que não apenas à beleza é dada
Pingente ou encrustada no sol da pele,
Na raiz de sins e elementos disfarçados
Minha lágrima adoecida e presa luta
Impotente em si mesma, desnutrida
Buscando vozes em vez de luz e redenção em vez de nada
Esta gota decaída me denuncia, estou só
Crispado e rijo dentro do apelo pelo que fui
Chega doer esta incerteza, chega ferir
Na chaga aberta que aprofunda minha ilusão
Vejo afinal que a carne estará aqui para dar limites
E os ossos abaixo dela, sustentação
O que me resta do que vi de tanta derme e sensação
É esta pureza natural, caída em gota
Sobre os quetais da alvorada
Deixada pura depois do choro que matou seu fluido

J.M.N.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Belo Horizonte

Para Stella, Renato e Juliana,
em nome de quem, agradeço e dedico
a todos os demais gurmets,
risos de felicidade pela acolhida extrema
e pela esperança renovada no encontro.

Eles não o esperavam e, no entanto, era como o estivessem sentindo vir daquelas bandas estranhas e verdes de seu mundo. Sorriso preso por achar-se demais na noite, sem ticket de entrada, sem permissão, como que entornado em desculpas por existir demais entre eles naquela noite que não lhe pertencia. Perto daqueles abraços, porém, a noite escura se fez em penas brancas e cândidas como as asas dos mensageiros de antigamente, em cujos bicos voavam as notícias de alegria e descoberta daqueles que partiam para sempre ou por enquanto. E foi assim nascendo nele uma viagem. Com as milhas entre seu mundo e o mundo deles estiando, desfazendo-se, indevidas, no mastigar de seus sotaques tão diferentes, mas amantes desde a hora primeira. O vinho arrebatou as últimas dúvidas e macetes de existir entre muitos e os sorrisos nascidos tinham aquela pele especial de quando se encontra na surpresa a potência de existir. De quando se encontra no novo, a felicidade quase infante de ser acalentado, cuidado, desvendado sob os sinceros e delicados mergulhos no desejo mútuo. E da estranheza que era própria de seu pacto terreno veio o assombro de que era pessoa também para eles e que naquelas circunstâncias não haveria diferença, senão a diversidade multiplicável de afetos e místicas cumplicidades, de gostos tecidos entre mãos hábeis e devoção conjunta. Uma casa no alto de uma montanha. O céu inteiro a disposição dos espelhos. E as imagens que se houveram entre si estimadas, invencíveis, algo cálidas nos abraços finais, foram a declaração de encontro perfeita. Reinventaram naquele estranho caboclo do rio verde os conceitos de frátria, de esperança e de acolhimento para a felicidade suprema de sua jornada de milhas e de encontros consigo mesmo. J.M.N.

Belo Horizonte, 31 de agosto de 2011.

Como não achei desculpas

Vem nas últimas horas o perdão. Não vem. Não chegou a tempo a oração de pedido. Vem de longe essa descoberta minha sobre a natureza do que quero. Nunca mesmo, vem de dentro. Do olho do espaço nulo em que escreves esses teus textos estúpidos. Então minha raiva vem de você, ou das coisas que dizes agora. Vem de reconhecer que fomos únicos. Fetos dessa estiagem de momentos sãos. Humildes nascentes de qualquer vão de perna. Não aceito isso teu, essa falácia de que sou menos que eu mesmo e tu ainda menos que a existência e pior, que sais do que eu vejo no espelho. Não me vês no espelho sozinho. Venho a ti quando te faltam entes nos quais atirar teus dejetos, tuas cruezas. Vou além e digo, não és nada então que a purificação de aventar-me outro por si só me salvou e não deu outra trilha ao que me escapa – os pincéis magistrais que só te fazem depois de me pouparem do ódio dão indícios – se não a estrada iluminada de amanhã e depois. Onde junto ou ferido farei de mim mesmo o reitor das teorias que inventarei. J.M.N.