terça-feira, 15 de julho de 2014

O homem que amava os cachorros (ou Trotsky e o fim antecipado das utopias)


 
Três dentre os cinco grandes livros de minha vida têm como tema o assassinato. No primeiro, o golpe fatal recai sobre a moral burguesa emplastada na pretensa fidalguia de uma família mineira em decadência cujos valores não resistem à sanha dos afetos encarnados pelos personagens criados por Lúcio Cardoso. Estou falando do romance Crônica da Casa Assassinada, cuja leitura me rendeu quase dois anos bastantes incômodos entre insônias, descobertas, ilações, reconhecimentos e confrontos terapêuticos dos mais aguerridos. Como Manuel Bandeira comentou: os personagens do livro ficam em nós depois de terminada a leitura. O assassinato da hipocrisia deslinda-se como o sanear de culpas e abre espaço para a verdade como a única possibilidade de redenção.

O segundo livro é do existencialista Albert Camus, O Estrangeiro, cujo personagem principal fustigado pelo sol mata um árabe numa praia de Argel e ao ser condenado vê-se julgado também pelo fato de não ter chorado pela morte de sua mãe. Camus, cujo tema central era o absurdo, traduz através do mítico Mersault, a grande indiferença que assola o ser humano no momento em que perde as ligações mais fundamentais com qualquer sistema de significados capaz de estabilizar nossa existência e nos fazer temer as consequências aos nossos atos deletérios. Com a seguinte sentença, Mersault demole a necessidade de ser perdoado: “como se essa grande cólera tivesse lavado de mim o mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de signos e estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo”. E assim, assustadoramente, o assassinato se desenha como uma via para a liberdade incondicional do espírito humano.

O terceiro livro é O Homem que Amava os Cachorros, do cubano Leonardo Padura. Às primeiras páginas meu estômago deu sinais de que não seria uma leitura fácil. Acredito padecer de uma condição especial, a qual me vincula de maneira quase orgânica a determinados livros. Condição próxima, talvez, ao devaneio descrito por Freud como a materialização dos sonhos diurnos do poeta, do pintor, do artista. Em meu caso, um estado de sobressalto. Com a leitura do romance de Padura liguei-me à história com a mesma força titânica que enreda descobertas, mas também achaques, calafrios e, no fim das contas, transita no vale onde esquecimentos vicejam, defesas fenecem e a criatividade ferve. O mesmo lugar de culto, acredito, onde entrementes nasce e se aprimora a capacidade crítica para sentir, interpretar e viver a vida.

Cada vez mais sem defesas e com os mecanismos de percepção acometidos, avancei as páginas e encontrei a morte como um elemento paralelo às ações de criação e destruição aludidas no romance, amalgama de todas as intenções e desfechos da realidade narrada, como se mais do que a marca indelével de nossa estranha aventura sobre a Terra, a morte fosse jurada permanente de nossa consciência tornando qualquer decisão dependente de seu voto para seguir ou ser arquivada e apenas retornar como um desejo reprimido a batucar no fundo da alma, o arrependimento. Foi assim, muito antes de compreender a trama do romance, já me fora inoculado o incômodo das personagens, declarado por suas próprias vozes ou pela voz de um narrador onipresente, por vezes histórico e real, por vezes fictício, mas não menos poderoso.

Cheguei à lista completa das personagens com a vista trêmula, com a ansiedade mobilizada. Acredito que os leitores de Padura, mesmo aqueles que desconhecem Ramón Mercader ou Liev Davidovich Trotsky, nunca mais os esquecerão. Estes dois homens, frutos de um tempo em que a imensidão da referência pessoal acorria à perdição coletiva e dava sentido personificado ao heroísmo e aos triunfos, foram protagonistas de diversas tragédias, vividas em palcos e momentos distintos até que seu encontro fatal adicionou um ato nebuloso à própria tragédia do século XX, à gigantesca e encarniçada batalha entre comunismo e capitalismo, entre o ocidente e o oriente e todas suas consequências, estruturantes ou daninhas, ao tempo em que vivemos.

Justamente por isso, a história contada no livro é minha e sua, dos nossos pais, de nossos filhos e daqueles que, mesmo mortos deixaram o pó de seus ossos nas páginas da história que agora escrevemos ou procuramos reescrever, repetindo muitas vezes as farsas passadas como indício de que não costumamos ler e compreender nosso passado, por vezes, até, fazendo questão de simplesmente apaga-lo dos registros do tempo. Fiquei com a impressão de que o romance de Padura é desses documentos secretos que elucidam tantas coisas e nos proíbem intrinsecamente de buscar respostas a tantas outras.

O Homem que amava os cachorros nos lembra, sobretudo, que matar e morrer em nome de um sonho, em nome de uma utopia, não é para muitos e, por conta da raridade de pessoas com pele e estofo suficientes para tomar as rédeas da história com suas próprias mãos, os acontecimentos que mudam o mundo ocorrem frequentemente em momentos cujas decisões finais competem a poucos, quando não apenas a um indivíduo. Por tal, vale lembrar nosso dever permanente de avaliar e aprofundar o conhecimento sobre pretensos representantes públicos e revermos a forma essencial de nossa participação na construção de nosso contrato coletivo. É nossa tarefa permanente como seres históricos acompanhar o nascer e o sobrelevar de nossos desejos e aspirações, pessoais e coletivas, seja nos espaços de direito, seja no entorno das leis, pois nem sempre contaremos com a assepsia desiderativa da boa intenção ou da assertividade construtiva ou, tampouco possuiremos tempo para reagir às agressões e improbidades que se nos grassarão.

A história tem mostrado que o caos e a confusão comumente são os terrenos das mudanças mais íntimas e prodigiosas da humanidade. Não por isso precisamos esperar a instalação de ambos para agir em nome da mudança e mais uma vez, ao ler o romance de Padura, ocorre-me acertado afirmar que o futuro está agora mesmo em nossa mesa de decisões. E, pensando na proximidade do devir, na fragilidade de nossa governança política, no acesso cada vez mais amplo a informações de toda sorte e na crise da democracia participativa como modelo vigente de condução da maioria das repúblicas do mundo, certamente não é correto que o destino de tantos esteja sempre nas mãos de tão poucos. Em especial quando esse destino se escreve inexoravelmente atado ao ato vil de um assassinato, de atos terroristas, de práticas fundamentalistas de todo calibre ou pior, atado à omissão da parcela maior dos fazedores de história que como massa ou exército deram e ainda darão suas vidas em nome de poucos e suas ideias, devaneios ou loucura.

Ao matar o ex-dirigente bolchevique Liev Trotsky na província de Coyoacán, no México, naquele mês de agosto de 1940, Ramón Mercader inoculou-se com o veneno da semivida, da imagem de herói proscrito, cujas realizações têm sempre a dupla face da conquista e da derrota, com um pé no exemplo da obediência às ordens e aos princípios da ação eficiente, e outro pé na vilania implícita nessa própria obediência, cega para os demais princípios régios da vida. Ao se tornar assassino em nome de uma ideologia, Mercader virou indigente na vida real – aquela que soçobra quando o sonho se esgarça ou acaba abruptamente, mas que continua ofertada para o sobrevivente engolir-se no macerar das culpas e pesadelos. Por seu feito, recebeu brios e medalhas como um grande combatente russo. Esta galhardia, entretanto, revelou-se um golpe perverso do destino, pois Ramón era espanhol da Catalunha e para seu país foi impedido de retornar até mesmo depois da morte.

Por seus atos e decisões Ramón Mercader pode ter sido um daqueles raros seres cujas mãos escreveram a história do mundo, mas também foi um fantasma vivo, como ele mesmo reconheceu em uma das duríssimas passagens do livro. Da mesma maneira, Trotsky se tornou um fantasma. Alvo de uma feroz campanha articulada por Stalin, a qual o levou ao exílio e depois à morte, sua figura deveria ser apagada da história russa e mundial. Nada de seu passado glorioso como comissário para os negócios estrangeiros, organizador e comandante do poderoso exército vermelho, fundador e membro do politburo do Partido Comunista da União Soviética deveria sobreviver ao expurgo. Há que salientar, Trotsky teve sua parcela de responsabilidade nas atrocidades paridas pelo ideal comunista deflagrado maciçamente pela revolução de 1917. E, também por isso, seu destino foi definido de maneira atroz e calculada, pois para extirpar um grande líder e conhecedor dos segredos mais íntimos da Lubianka, como o considerava Stalin e boa parte de seu séquito, uma medida radical era necessária.

Desta forma, a aniquilação de Trotsky e sua família – ele perdeu todos os filhos para o sistema de Stalin – e a formação do assassino Mercader são ações que na mesma proporção mudaram a história e explicitaram a radicalização programada da militância ideológica como meio de supressão das eventuais controvérsias e críticas, e até mesmo a história por trás da ascensão de um modelo alternativo à agressividade capitalista. Representadas pelos eventos que juntaram os destinos de Trotsky e Mercader, as contradições da gestão política de Stalin e as derivações teóricas e práticas do socialismo utópico explodiram como sinais pungentes de exaustão dos ideais assentados na uniformidade e na inflexibilidade como discurso e fazer.

O assassínio de Trotsky, se tomado como cena primordial da radicalização da militância política do século XX, permite a interpretação de que o maior sonho coletivo da história recente da humanidade se perdeu nas garras do culto pela personalidade e junto com outros exemplos de governança estatal totalitária, provocou uma ferida incurável em seus propósitos e valores, culminando na asseveração da resistência coletiva a modelos cuja determinante organizacional da vida comunitária seja a igualdade determinada e cuja lide de alinhamento do que não cabe nas plenárias de discussão dos assuntos coletivos, é a eliminação calculada dos antagonistas.

Num tempo em que a busca por algo em que acreditar e modelos e pessoas que sirvam de guias para nossos sonhos e aspirações convive com a possibilidade da autopromoção instantânea das redes sociais e da mídia sensacionalista, há que reler com vigor e crítica o momento histórico enquadrado no romance O homem que amava os cachorros. É inspirador revisitar um tempo em que grandes homens vieram e morreram em nome de seus ideais, mas também o tempo em que a obediência cega ofuscou o avanço de um meio de produção coletivo construído por aderência, dando lugar a uma conivência temperada pelo medo e pela opressão. Os resquícios dessa experiência transmutaram-se em sementes de muitas práticas modernas, como a criminalização dos movimentos sociais, a omissão criminosa do estado em relação ao racismo e à segregação social, além da individualização radical dos desejos e a instalação da promessa de que através de espaços virtuais todos podem ser e fazer o que quiserem.

Já estamos vivenciando a materialização de muitos dos maus devaneios produzidos no ciberespaço – como blackblocks, redes de neonazistas, redes de pedofilia e quitais – modelos da radicalização frutificada na ausência de referências pessoais e coletivas, de tessituras culturais mais refinadas e mediadas por instituições fortes e referendadas, cujas ações atendam ou substituam frustrações e motivem ao ponto de provocar mudanças estruturais no comportamento das pessoas e dos grupos, de maneira que estes possam viver o real sem perder de vista os caminhos do bom devaneio, da arte, da criação elevada.

Trotsky morto e seu assassino liberto, um homem comum que amava cachorros – quadro que simboliza de maneira potente a derrocada da utopia em nome do pragmatismo totalitário (de estado e social), e a substituição de todos os sonhos pela realidade ultra vívida, experienciada como fantasia permanente e por isso mesmo, cena onde tudo o que se pode conceber de desviante, medonho e aterrador é possível. O assassinato neste caso se impõe como início e fim da busca pela transformação social, pela substituição dos sistemas de pensamento e convivência em nome do avanço civilizacional. Seja lá como for a vida persiste. E ela ainda é a maior das utopias. J.M.N.