quarta-feira, 31 de março de 2010

Uma última história

Em memória de seus silêncios.

Caberia dizer que foram felizes. Uma única verdade esquisita os incomodou desde sempre: como seriam um do outro, já que não eram deles mesmos? Sabiam tanto sobre as conquistas e nunca se preparam para aquilo que lhes foi escapando nas andanças por ai. Tentaram voltar muitas vezes, mas em muitas destas, sem o furor do início. Sem a coisa quente e devastadora que os iluminava. Fizeram rimas. Fizeram livros. Fotos de um tempo corrido e interiormente maior do que o passar das horas e dos dias. Foram tudo um para o outro e para ambos foram pouquíssimo, porque estes entes esgarçados como figuras de histórias antigas, tinham por fome, a fome do universo – apesar de não admitirem. Corre esse tempo dormente que é o fim de todos os grandes amores. Corre como um regaço que penetra a floresta e se perde para os olhos do mundo, ficando disponível apenas para uns poucos indômitos. Mas está lá. No lugar de sempre. Continuando em cada qual a história de dores, amores, encontros e desencontros. Reservado como um vinho muito raro, para degustações futuras e exclusivas. Deixando nos sulcos de uma terra habitada por criaturas efêmeras, porém bravas e gentis, as marcas de uma passagem feliz. O fértil de um caminho que os levou ao renascimento. J.M.N.

Para ler escutando...

terça-feira, 30 de março de 2010

Perguntas de Ontem XI

Construímos os muros para que as cidades por onde andamos não nos escapem. Fazemos as defesas para que nossas piores dores e lampejos de insanidades não sejam vistos pelos inimigos. Talvez para não vermos o que está bem diante de nós, é que erguemos muros. Os mais altos para quem está dentro não sair. Aqueles com cercas elétricas ou arame farpado para que o mal não entre. O que temos diante dos muros solitários dos subúrbios? O que temos nas mãos dos homens que constroem esses ladrões da claridade urbana e da fachada das casas dos amigos? O que temos em nós agora que os muros fizeram nossa liberdade nascer assim tão controversa? J.M.N.

Pergunta de ontem: o que existe além dos teus muros?

Em torno de um mesmo estado de coisas

“Toda coerência é, no mínimo, suspeita.”

Nelson Rodrigues


Aparecia como fosse a única forma de uma madrugada urgente. Trazia um cheiro peculiar de pele molhada, sua presença. Era como uma virtude estar alegre ao seu lado, quase como um achado aquela sua destreza em me deixar feliz. Sempre tomando as sendas perdidas de minhas impossibilidades e se alastrando. E ampliando meus passos, minha respiração – tornando-me muitos. Sempre que vinha me encontrava um tanto pendente para um dos lados. Querendo atirar-me de abismos ou andando na corda bamba. Aquela flor perdida no estreito de seu braço, perfumando o abraço com odores magníficos, infestados de sua alma cadente – estrela perdida na noite eterna de seu interior. Ela vinha conquistando meu abandono. Vinha mais utilitária e visceral a cada abordagem. Eu sempre cedia. Sempre lhe economizava os sofrimentos e vivia perdido em sua rotina de kamikaze. Profundo admirador de sua loucura. Eterno adorador de sua anatomia. Ela não tinha chaves. Não tinha as combinações dos cofres. Ela não tinha o passe para as áreas mais restritas de minhas certezas e mesmo assim ela as ocupava. De maneira que apenas ela configurava minhas vontades e eliciava meu toque com tamanha força que meu coração parava. E entrava em si mesmo. Implodia toda vez que eu estava em seu corpo. E fora dela, pedia para voltar. Uma, oito, cem vezes. Sorvendo-me dentre a colheita aflitiva de seus prazeres. Exaurindo-me na morfologia e nos líquidos seminais reservados à multiplicação divina. E eu ia. Seguia seu desfecho bombástico. Cruel e raivoso como um cão faminto farejando a carne de alguém. Eu morria e ela me reinventava. Ela dormia e eu vigiava. Como contrários perfeitos, fomos um do outro. Eu ainda pertenço. Eu ainda destruo as letras inventando sintaxes ultra ferinas. E ela? O que lhe pertence que eu não encontro? O que sobra em seus dias que eu não escuto desde o último maio? J.M.N.

Para ler escutando...

Novo lugar

Repasso cada detalhe do que disse e nesse imenso inventar de desculpas e canções, encontro tesouros perdidos e mapas de terras distantes. Notas de uma viagem que iniciei há tempos e ainda não encontrara horizonte para findar. No primeiro terço da noite sozinha acontece de eu encontrar as tais memórias. Ela veio numa noite em que eu me esquecera o que significava estar completo. Aconteceu em minhas percepções e angústias da mesma maneira que nascem as flores mais lentas da natureza. Ela tinha um perfume novo de distração e eu sentia que estava entrando em nova idade, apenas por sentir aqueles seus trejeitos apontando em minha direção. Acordei para a realidade de dentro ao sentir saudade de coisas que de repente transformaram as minhas horas em finais constantes e quase tranco a porta para acender meu frio. Sozinho. Quando eu pensar nela pela manhã, sei que terei mais perguntas do que certezas e sei, também, que sua presença tem de ser agora, como uma de minhas mais necessárias tarefas matinais, como acordar, tomar um longo banho e ver se ainda há perguntas sem respostas por ai. J.M.N.

Para as meninas que amamos 1

Quando demos pelo tempo não tínhamos mais as horas da tarde. A noite envolvente com seu cheiro de vida nova se abriu por inteira. Fomos à sacada do apartamento. O céu escuro provendo a calma que é melhor fique longe, pois a viagem foi planejada para hecatombes e desvarios. Existe coisa melhor do que alguém muito próximo que entende perfeitamente as nossas vontades? J.M.N.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Último adágio

Há muito verde em sua história. Desde a esperança até o conforto de uma lealdade pertencente e aguerrida. Como há pouco dessas criaturas por ai. E como ela, unicamente se encontra poentes em bicos de saliranas. Há pouquíssimas criaturas como ela. Que se defendem de nunca se terem entregue por completo. Que se exaurem feito donas de coisa alguma, invertidas e obscuras para seus sensos. É tão dela minha conquista, que perdido nisso, peço desculpas por me perder. Uma hora o amor não basta. Ela sustentou-me os vícios. Requereu tão pouco de minha entrega que quase não acreditava que lhe podia dar tão infimamente. São exclusivamente dela minhas dores de tentar normalidades e mais ainda meu amor unicamente dependente de sua presença. Um dia achamos tudo dentro do mesmo desespero. E ai não muda nada, senão o fato de já não estarmos. Há tanta vida em seus olhos e tanta força em sua presença constante que eu já não achava certo cobrar amanheceres melhores do que os que ela me deu. J.M.N.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Quando o inimigo sou eu

Nasci como qualquer outro animal. Nasci para convencer alguém de que existo e ver nessa existência alheia meu limite ou meu abismo. Sou bem sucedido, mas de maneira intermitente. Ando desviado do que nem sequer cheguei a ser. Compensado por ventos extras, calor medido e especiarias. Vim para este lado através do acaso transcendente de ser a partir apenas de mim. Era como se eu quisesse experimentar não ter seguro, não estar atado. Viver ou morrer sem dependentes, sem levar ninguém comigo – aos encontros, simplesmente. Um único elemento que me agrega e solta no espaço. Esquecido quando cai a chuva, vou andando por ai e vendo. Olhando o conjunto das coisas que amanheceram entre nós dois. Há muitos sorrisos, festas infindáveis. Noites de vinho e elementos protéicos, como sonos compartidos. Depois desses anos não há perguntas que não tenham sido feitas. Mas as respostas engasgaram em nossos sonhos, abraços e distâncias. Quando acontece de eu compreender o que me falta, já estou a faltar em algum canto. Sinto que neste momento tenha sido no teu. Quando vi, andava triste por não ser nada. Nem o que querias, nem o que eu poderia ser. Confesso que morri. E não sei chegar sem estar cheio. Não sei como saldar as dívidas desses momentos que o tempo comeu. Quando penso em estar e dividir espaços, colchões e cafés da manhã me vem apenas tua imagem em meu espelho. Isso é o que mais pesa. Isso é o que mais me enclausura. Ou quem sabe sou assim e ponto. Chega de mentir-me. Chega de mentir-se. Chega de mentir. Chega de tentar disfarçar o que me escapa. Vazo em todos os domínios e me escapo. Mas agora, diferente de antes, acabo pensando que o melhor é mesmo ir. Amar como acredito é proteger-te de mim mesmo. Quando o inimigo sou eu, a única coisa que posso desejar é que a batalha termine logo. Antes que cidades, olhares e horizontes sejam moídos. Antes que esqueças o que de bom deixei em ti. J.M.N.

quarta-feira, 24 de março de 2010

O desconhecido (ou da saudade irredutível)

Não sei onde estás. Se em Marte ou Passárgada. Não sei por onde te derramas agora que nosso infinito virou distância. Não acho as meias grossas para o meu frio constante, herança dos teus incômodos – os infundados e os de fato. Não encontro camisolas escondidas entre meus lençóis. Por onde envidas esforços de atenção completa irredutível? Não sei se demoras no banho ou se me enganas com asseios brincalhões. Não sei onde andam os filmes que víamos tantas vezes. Onde está meu mandato de segurança? Meu habeas corpus dessa cadeia de existir sem ti? Por onde dormes não sei, não respiro as mesmas náuseas. Por onde jantas com amigos não caminho, pois minhas ânsias agora me remetem à solidão de tempos atrás onde tinha a impressão de que me bastava e era mais feliz. Por onde compras os lanches para uma noite iniciada em trabalho. Onde deitas para ler tuas apostilas para a prova no dia seguinte? Não se ainda lês o livro que seria tua companhia em minha ausência. Não sei qual a validade dos sorvetes que estão em tua geladeira. Não sei mais onde dormir no colchão restrito. E paro e finjo não sentir dores e adito por mais uns dias minha esperança de não morrer antes da hora. Por onde andas que não me soltas, que não desferes o golpe final. Que não me pedes, a preço de vida ou morte, para ser teu até a imensidão de nosso desassossego? J.M.N.

terça-feira, 23 de março de 2010

Dos cuidados que se deve ter

6:30. Na mesma hora que acordo esse teclado ainda frio, deves estar alisando o único lado amarrotado da tua da colcha de cama preferida. A madrugada silenciosa repartiu-se em antes e após o telefonema que subtraiu parte da distância entre dois exílios. Não escapou a essa conversa o registro de meu espanto diante da furiosa pressa com que as vinculações e identificações foram sendo fiadas. Deves ter notado também como os nossos jogos linguísticos têm a beleza desesperada dos encontros terminais: quem chamarias pra ouvir a última batida do teu coração? pra quem e o que dirias se só te restasse um suspiro? Não ligas não, sou assim mesmo - a incontinência de minhas estadas me forçaram a pensar que cada frase que digo será a última. Por isso gasto cada minuto a dramatizar, a chantagear e ameaçar. Sei que isso não passou despercebido, mas preferistes pedir pra ouvir mais um pouco a minha voz e a minha respiração, justificando que querias mais um pouco dessa paz. Sabe, depois que me falaram de teu apreço pela minha aparência de recluso, todas as vezes que estávamos no mesmo lugar, sentia o teu olhar em mim como um carinho que ficou no ar, como um afago prometido. Nossos encontros avançaram desde então, do silêncio mútuo para um aceno de cabeça, do aceno de cabeça pra um oi, de um oi pra um telefonema repleto de confissões que foram virando doces sentenças. De sentenças pra intenções, de intenções para planos, de planos pra promessas, de promessas para... Não me apetecem as especulações, sobretudo quando dizem respeito ao tempo. O chão à frente está coberto devaneios e delírios de última hora. O que me ocorreu por último: dar-te um banho devagar pra lavar as dores do dia, usar as ervas e poções de minhas tias índias pra cobrir as feridas deixadas pelos desencontros de uma vida. Curar-te. Pentear os teus cabelos com ventos e nuvens. Senti-los entre os dedos. Cheirar-te. Massagear as tuas costas como uma mãe que prepara um pão para os filhos. Provar-te enfim. Com absoluta certeza, me perderia nesses cuidados involuntários, dúbios e anteriores. Minha esperança, no entanto, é que tudo se encerre com a memória dos meus sentidos te retendo assim, inteira, e renascida.WDC

domingo, 21 de março de 2010

150 mg de verdades

Eu poderia inventar teu nome, mas isso não é mais possível. Poderia dizer que foi um engano, uma infantilidade, dinâmica irregular desse meu funcionamento desde sempre auspicioso e vagabundo, mas querida, eu estaria mentindo. Eu podia tricotar um pulôver para o teu frio permanente e te emprestar as velhas meias de lã que tanto gostas, apenas para ter o prazer de dizer que fui eu quem convenceu teu frio a sumir por uns momentos, mas já não posso. Faço coisas que ainda duvido sejam humanas e ainda acho que é incapacidade minha deitar sozinho e dormir menos que a noite do mundo inteiro. De maneira regrada, agora, satisfaço minha recaptação de serotonina que andava pegando aos trancos ou desviando-se dos caminhos o que fez eu te dizer muitas vezes que te amava com meu baço, com meu pâncreas ou estruturas moleculares sequer descobertas. Poderia escalar teus muros, superar tua janela sempre aberta e te encontrar com alguém, apenas para aplacar meus designos de agora. Mas me concedo esse momento de confissão descarada, onde flerto com destinos e enredo bem ao lado do descolorir de minhas retinas. Talvez eu tenha que ficar para sempre nesta dimensão assertiva e calma que me diz: o mundo não é tão ruim assim. Quem sabe eu desespere e lute até a morte contra a tirania de minha sanidade e volte a revelar quem sou pelos gritos dementes de amar-te mais do que eu poderia amar. E em lugar de minha cíclica alegria em drágeas, possa novamente surgir a tristeza complicadora do que faz falta, a nostalgia infinita que me compunha e eu possa sentir mais uma vez, o ritmo de teu peito vivo, pedindo depois de uma dura troca de metáforas: fica, fica, fica, fica... J.M.N.

Pra Recomeçar

Um novo amor com aquele cheirinho de brinquedo recém tirado da caixa. Um novo nome na lista daqueles nomes que devemos lembrar sempre. Um café na cama com quick de chocolate no lugar do café. Um jornal deixado escandalosamente aberto na programação de cinema. Um gesto vagaroso de uma mão vacilando a meio centímetro de umas costas muito familiares. A informação “temos milho de pipoca” que voa despretensiosa pelo ar engordurado da cozinha. A vontade de rever as fotos do último natal em Mosqueiro. Um sorriso antecipando a narração de uma piada que chegou por e-mail. A língua se embaralhando com um pedido de desculpa que quer escapar. Os dois braços que roçaram no corredor. Um longo espreguiçar-se dizendo que hoje estou sem disposição pra cozinhar. O telefone da pizzaria renascendo do fundo da carteira. Uma DR básica. A cama que vai retornando de sua mutação de campo de batalha. Acusações, encenações, ponderações e, no final, beijos cegos em olhos molhados das lágrimas finais.WDC

sábado, 20 de março de 2010

Perguntas e afins

Ele descobriu que funcionava mal. Como uma máquina que precisava de reparos constantes e culminou num diálogo triste com o mecânico de almas que o entrevistou e deu o veredito. Uma vida na corda bamba a decidir que textos ficam que textos transformam-se em postais. E no fim de tudo apenas uma coisa inconteste em forma de pergunta. Aquilo que talvez se devesse perguntar antes mesmo de se estar de acordo com as pílulas e restrições: não era mais fácil ficar com o grande amor? Mas isso, nem sempre cai bem para os que não têm razão nenhuma de perguntar. J.M.N.

Snakes and Lions

Libertem os homens maus e seus companheiros. Libertem-nos. Estamos perdidos. Executem as penas aqui fora. Destruam as ruas. Saqueiem as lojas e acobertem o medo descomunal de fazer o certo. De rondar as casas de onde partimos. De dissolver os braços que decepcionamos. Quando tudo mais for névoa e tragédia e silêncio, haveremos de encontrar um caminho. Caso contrário, poderemos voltar ao princípio onde o que mais importava era tua mão em minha mão, teus olhos em meus olhos e a pouca ou nenhuma certeza de que a natureza nos deixaria viver por mais algumas horas. J.M.N.

Memórias paternas 3

(talvez aos 7 anos)

- Pai, que fazes tu?
- Uso o metro para aparar o tecido, filho, por quê?
- E gostas?
- Imenso. Talho u’a roupa ao senhor comendador. É pessoa importante.
- Quero fazer o que fazes e saber fazer roupas para os importantes.

Diário: hoje, aos onze dias do mês de março, meu filho chegou-se ao meu atelier. Em sua curiosidade perguntou-me de meu ofício. Disse-me que queria segui-lo. E disse-me com tamanha segurança e razão que eu não pude fazer mais que concordar e ficar feliz. Eu sou alfaiate. J.M.N.

quinta-feira, 18 de março de 2010

O amor é próximo

Intruso, estranho, estrangeiro. Melquíades sentia como se aqueles adjetivos já fizessem parte dele desde sempre, mas muito por dentro, como uma cicatriz pegada na banda interna da pele. Uma marca que só ele via. Por isso não gostava quando terminavam as solitárias apresentações circenses que compunha em paisagens empoeiradas e habitadas por humanos que não se sabiam como. Não gostava de ver o seu público entrando em suas casas pra viver suas amarguras e tréguas, os sabores pardos da vida. Por fora era um bem-vindo. Alvo de todas as saudades. Saudades que se expressavam em rebolados, gestos largos e provérbios brutos. Coisas que ele mesmo depositara no repertório árido daquelas senhoras idosas e de seus maridos em eterna semi-embriaguês. Eu o conheci na infância. Chamaram-me a atenção os pêlos nos ouvidos. Talvez porque ele gostasse de ouvir histórias. Ouvi-as às pencas em todos os povoados por onde andava com as bugigangas de fazer medo, alegria e tristeza. Usava os pequenos dramas do povo em suas encenações. As pessoas riam e se emocionavam consigo mesmas, em resumo era isso. A arte de Melquíades era ser espelho. E tu, Melquíades, qual a tua história? Perguntei um dia pra sua surpresa. Pela primeira vez vi triste aquele senhor de ouvido peludo. Olhou pra um cachorro sarnento e depois pra um grupo de urubus que se secavam no alto de uma cerca. Disse que não tinha o que falar. Que passara tempo demais se despedindo e que não permanecera onde as histórias aconteciam. Que de tanto ouvir histórias, não escutou a própria. Que se achava distante, alheio, embotado. Irreconhecido. Tivera um filho em um desses povoados com uma dona que o convidara pra dormir em casa por duas noites, sendo que fugiu na terceira deixando a certeza que corria de si mesmo. Da possibilidade de entrega. Ele não se entregou e acha que se perdeu. Nascera pra ser um reticencial. Melquíades inventava palavras, mas não sabia pôr títulos em suas histórias. Pediu-me um título pra sua vida. Sugeri: o amor é próximo. Ele virou-se sem se despedir. Vi apenas o gesto rápido de uns dedos amarelados limpando algo que caía do olho esquerdo.

WDC e Sofia, que deu o título.

Apenas o contar das horas

Já gastamos os verbos, amor. Já deixamos tantas coisas de lado. Houve um tempo em que adorávamos as mesmas coisas e, no entanto, corríamos em lados opostos. Já deixamos tantas fontes esgotadas, amor. Em cujas águas diluímos romances, em nome de algo que não sabemos como reter. Vem a noite em turva essência reclamar o fato de estarmos em hemisférios opostos, tornados distantes por imprudência nossa com o que tínhamos. Quando parto e meto a mão nas gavetas não encontro nada. E ao retornar ninguém me espera ao pé do carro, sorriso largo e urgências. Nenhuma roupa debaixo do vestido longo. Era como voltar aos céus aquele teu esperar. Já morri tantas vezes, amor, que não encontro o jeito de voltar. E vou ficando. Neste silêncio tão imenso quanto nulo. Onde nada faz mais falta que tua presença. Onde nada é tão mais sem rumo que minha espera. J.M.N.

domingo, 14 de março de 2010

Perguntas de ontem X

Ei-la, a praia da minha infância. Aqueles julhos eram incríveis. Uma pena que eu já não consigo te mostrar como eu fui feliz, por mais que encha as tuas gavetas com as minhas páginas mais empoeiradas. Veja a água mais próxima à areia. Não te falei que os tralhotos são incrivelmente rápidos? eles são os pensamentos do oceano. Eis a nossa casa com um jardinzinho e uma vizinha fofoqueira pra nos distrair. Eis o nosso filho passando de triciclo e fazendo tchau. É agora, não vês? o dia em que não precisaremos dizer eu te amo como quem se explica, porque tudo em volta é doce e ensolarado. Não era em direção a esse lugar que os teus cabelos cresciam? Não era nessa chuva rápida que lavarias os últimos resquícios dos meus deslizes noturnos? Gostas do quintal? Tem uma goiabeira e um espaço pros teus lírios. Tem espaço livre pros cachorros e pros meus cenários delirantes. Tudo é tão nosso que me questiono quanto ao meu merecimento. Mas é melhor eu não começar... WDC

Pergunta de Ontem: O que te aguarda no final da tua espera?

Diário da tua ausência IX

Agora que o beijo é constante e as pragas enviadas supostamente pelos céus esmoreceram, pergunto fino na calada da noite: ainda tens o poema escrito que te fascinou noites atrás? É uma pergunta perdida. Uma retórica estúpida que pretende tão somente saber se ainda pensas naquilo tudo. E quero que saibas que tudo quanto ainda escrevo, faço por não te ter deixado morrer em meus escaninhos. E talvez seja esta minha maior inconformidade, pois no fundo sei que nenhum assassinato tiraria tua presença. Enquanto resolvo parte desse suposto saber que nomeia agora entre os homens de terra e plantas, vou enganando a fome da tua presença com mais páginas enviesadas de confissões e alardes. Como se fosse natural contar coisas depois da morte. J.M.N.

Excertos Terapêuticos XX

"Era a zona perigosa. De dentro da treva podia a cada momento surgir, de abrupto, a guarda que velava. Desafeita e confundida na noite opaca, a emboscada podia atalhar, estrupindo de chofre numa arrancada, atacando à queima-roupa. Por isso, na frente, distanciado da coluna, ia o Chiru, de bombeiro. Nele e na sua perspicácia e sangue-frio, estava a segurança de todos. Era simples mas arriscadíssima a incumbência. Não tinha mais que, ao pressentir a guarda, avisar os companheiros. Se, ao perceber o perigo já não pudesse voltar, preveni-los-ia com um tiro, e depois cuidasse da vida... Era posto que demandava coragem e dedicação. Todos, porém, confiavam no Chiru que, mesmo a custo da vida, não os deixaria cair desapercebidos sob as carabinas da guarda."

Darcy Azambuja - "Entrevero", 1984, pág. 41.

Um tiro no escuro

Assistindo a “Um Tiro no Escuro” de Blake Edwards, 1965.

Está tudo bem. E quando menos se espera alguém vem com uma arma ou uma palavra e nos leva a graça, quando não, a vida inteira. Tudo parece estar calmo, mas ai, alguém, sempre vem e acorda nossos medos, aventura-se a compreender o que não é fácil de ser compreendido. Tudo está certo e enquadrado e, no entanto, a noite revela mais tramas do que bons sonhos. E todos trocam de leito e todos armam vinganças. E tudo quanto eu queria dizer, fica no outro fazendo raiva, desesperança. Talvez não ache prudência no avançar da idade. Talvez ela ainda não saiba o que eu quis dizer com aquele telefonema e minha pergunta, certamente, mal formulada. E eu já não tenho argumentos, já não sei como mostrar-lhe certezas. Pois não as tenho, de todo. E por cima deste sono que vem e finalmente me traz uma boa notícia, as lembranças, o suave de sua pele. Vejo num filme antigo algo que me desperta, mas não tira a tranqüilidade com que me lembro dela agora, em todos os minutos do meu dia. Eles, em cena, entram e saem de aposentos, escondem-se e calam suas mentiras e verdades. E de repente alguém dispara. Um tiro sem testemunhas. Alguém que acaba pagando caro a incompetência de outra pessoa. Talvez meus sonhos ganhem enredos diferentes, mas a tela ainda acesa me diz que, enfim, uma bela música de fundo pode fazer toda a diferença. E é assim que penso nela: um tiro no escuro e as sombras de uma música belíssima a convencer meus sentidos de que por trás de toda a tragédia, existe algo que supera tudo. J.M.N.

A cena inspiradora...

sábado, 13 de março de 2010

Brasstronaut - Mt. Chimarea

Tento fazer uma resenha no mesmo momento que ouço pela primeira vez o álbum resenhado. Por que faço isso? A banda Brasstronaut lançou um EP no ano passado que conseguiu me deixar realmente ansioso por esse LP cujas notas saem dos meus fones neste exato momento. Também porque adoro o som do trompete. O trompete produz notas nuas, sinceras. Não há como disfarçar um solo ruim se ele vem do trompete. Talvez eu esteja buscando isso neste exato momento, essa simplicidade desconcertante. O Neto tinha ouvido também o EP ano passado e tinha me mandado um SMS descrevendo o som da banda como um “sapato velho”, querendo dizer com isso que era um som que passava o conforto das coisas conhecidas. Concordo com ele no momento que acaba a primeira música, Hand Behind. Ouvir o Brasstronaut nos leva a prazeres fugazes. Tardes de chuva com amores de ocasião. Reuniões não programadas com velhos conhecidos. Pilequinhos. Os bares roqueiros de uma Belém distante. A segunda faixa, Heart Trompet, tem o trompete onipresente, acompanhado de cordas e piano, além do aparato sem o qual não se faz rock: bateria, baixo... Faltou a guitarra? Eles não usam. Como o Morphine, O Brasstronaut corajosamente dispensou o instrumento que por décadas simbolizou o rock. No lugar da distorção está o trompete. Ele sola, faz os riffs e tudo mais. A terceira música chama-se Insects. A sequência vai enlaçando a atenção aos poucos, sem tropeços. Sem perceber, já estou em outra posição na cadeira, relaxado, entregue, abandonado. Vontade de sentar em frente a uma janela, olhar as pessoas em suas melhores roupas fazendo o que se faz numa noite de sábado, fugir da solidão, procurar novos amores, entregar-se à necessidade de pertencer a outro ser humano. Lo Hi Hopes, a quarta faixa, mostra um lado rock’n’roll, guitarras imprevistas, mas em total harmonia com as músicas já ouvidas. Bom saber que o Brasstronaut não se prende a fórmulas, não se perde em radicalismos. Se antes me dispunha a observar as pessoas em busca, agora me dá vontade de acompanhá-las nessa procura quase sempre inglória, mas que não conseguimos viver sem. Ravan, a quinta, tem sussurros, vozes sobrepostas, conversas cantadas. Algo adorável também, e que só agora tô notando, é o uso do baixo acústico. Não consigo ouvir esse instrumento sem lembrar do escritor José Roberto Agualusa e sua teoria de que o baixo acústico é um instrumento para náufragos, pois podemos navegar dentro de um e depois fazer de fogueira. Chega o balanço esperto de Same Same, a sexta, e nesse momento já me certifiquei de que minhas expectativas foram superadas. É a melhor coisa que ouvi nesse ano. Sei que o ano ainda está começando, que muitas coisas foram e serão lançadas e que faltam ainda duas músicas, Six Toes e Slow Knots, mas sabe quando você olha pra alguém e entende que esse alguém tem algo essencial? Que qualquer defeito será pouco perto desse mistério não decifrado e que você, a partir de agora, irremediavelmente deseja? Pois é...

PS. Six Toes e Slow Knots são maravilhosas. WDC

 

quinta-feira, 11 de março de 2010

Todos personagens

Por causa de Luigi Pirandello

Eis que surge aquele homem. Deteriorado e esperando a chuva para lavar suas feridas. Está diante de uma porta. A espera do acolhimento de quem está dentro da casa e parece fazer o jantar. Através da janela é capaz de sentir o cheiro inconfundível do pertencimento, e chora. E se lembra que não tem nada a lembrar. Ele foi vencido pelo frio e pela fome e quando começou a espiar ninguém seguiu em sua direção. Vejo o velho que senta à calcada e conta moedas. Tem apenas uma das mãos e seu quinhão diminui a cada jorro dos dinheiros. Ele não se incomoda, percebe que sua condição ainda trará mais. Não é bem uma fortuna, apenas a piedade dos outros – ele pensa que a merece. Vejo ao longe a pequena perdida, uma ilha de solidão sua beleza. Ela diz coisas que não caberiam se ela estivesse em uma casa bem aquecida e vigiada. Seus cabelos espalhados na pele do vento acusam que ela não encontra direção. Aperta-se ao se oferecer, como recusando a si mesma o papel que desempenha – e quando lhe dizem não, ela fica feliz por mais dois ou três minutos. Escorregando rumo à areia, sinto o cheiro da infância dele. Um menino, de macacão amarelo e cabelos cacheados. Ninguém jamais pensaria que tinha o esporte de matar formigas e que quando crescesse, passaria a matar-se a si próprio em venenos de escrita e na encruzilhada corpórea do desejo, o delta de suas fêmeas mais queridas. Mas naquela tarde, há muitos anos, no quadro por onde olho e o enxergo pela primeira vez, ele está feliz. Cavalga centauros e atira flechas em medusas. Prova areia e cataloga, um a um, os gestos de seu pai, quem sabe para imitá-lo, quem sabe para saber como matá-lo mais facilmente. E vem uma gota nesse olho que vê passados, pertences e abandonos com a mesma eficácia com que vê entrelinhas nas bobagens que nascem à pena, numa tarde solitária. E essa gota o acorda. Estou de volta. Meu corpo atua. Meus sentidos ainda histéricos, perdidos no sangue que corre e irriga aquelas vidas todas que revelei no devaneio. E diante do espelho, feliz e assustado, vejo quem sou. Eu poderia sorrir, mas preferi ficar contente de outro jeito. J.M.N.

Reparação

Esta noite é para ti, e tudo nela tem sabor, faz história
Presta bem atenção em seus adornos
As notas da melodia soaram ternas
e acrescidas de emblemas e orvalho
Elas declararam que te pertenciam
como tudo que em meu peito vai dormindo
dos outros, escondido
Ah esses refugiados pensamentos que me apavoram
e me indicam que a qualquer momento podes me tomar
numa ação prática de morte
Levar-me para o longe pleno dos meus ancestrais
instalar em mim a unidade que perdi naquela tarde
Tu que podes tanto e nunca autorizaste meu retorno
É tua esta noite eviscerada, radiante
Com lodo e poemas a escorrer dos flancos celestes
e vejo esse choro noturno de excrescências e belezas
a explorar minhas faltas, instalando esperanças,
as mais indevidas, as mais vorazes e completas
Vejo meus olhos no espelho das poças
e onde deixo minhas imagens, nascem teus passos
e vens devagar e sempre, como uma sombra
Dura e ferida como a caça que por pouco escapou
Eu simplesmente estanco... e espero
Afinal de contas, eu ainda te devo isso. J.M.N

segunda-feira, 8 de março de 2010

Para todas

Eis que chego à porta e ela está aberta. Contrariando minhas expectativas e medos, encontro a passagem feita, disponível. É quando me pergunto se devo. Se terei condições que ocupar o espaço que se me oferecem agora. A elas que esperam do outro lado, meus mais sinceros pedidos de perdão. Não antecipando culpas ou desgraças. Apenas um pedido em nome do que sempre farei de equivocado ante a surpresa que me causam seus trejeitos, seus aprendizados mais velozes que minha astúcia em decifrá-las. Mais arrebatador que meus galantes pedidos de estada, que minha devoção antônima. A elas que me incorporam desde sempre, sem jamais terem pedido explicações. A elas que foram meus colos, meus olhos, que me trouxeram toalhas depois de meus banhos longos e desleixados. A elas que me cumpriram enquanto gente. Que me esculpiram enquanto homem e que me difundiram em seus mais incríveis deleites, por sobre meus nãos, envoltas em meus braços. Noites sozinhas ou guardadas com zelo e vigília por seus desamparos iminentes. A elas que me sabem muito mais do que um dia poderei lhes saber e que mesmo assim me recebem e desfiam com cuidado de tecelãs. A elas que me maravilham em suas descobertas gentis e em suas potentes ferocidades matinais. A elas que em vermelho anunciam o início de uma espera, que estarão prontas para múltiplos e se enredam no conclave biológico com minha metade tendo o poder de me deter em mais esta aventura da existência – quando sou mais do que um. Deixo-lhes meu olhar. Sem saber como orar mais e como dedicar mais do que já sou delas. Sem saber como explicar essa ancestral imensidade de quereres que elas em mim, procriam. Sejam. Aconteçam. Em meus sentidos. Em meus sonhos mais denegridos. Em minhas memórias mais fulcrais. Partam-me entre pernas, arcos de olhar e perfumes míticos. E permitam apenas que a porta esteja sempre aberta. Aconteça o que acontecer, buscarei sempre saber como entrar e mesmo que nem sempre saiba como estar ou sair, entendam: nenhum amor é feito de perfeições. Nenhum de nós é feito sem seus fazeres. J.M.N.

Belém, 08 de março de 2010 (manhã de sol incrível)

sábado, 6 de março de 2010

3 vozes femininas, uma tarde de sábado e o escritório vazio

Como não trair sua confiança, se eu nem sabia como ser fiel a mim mesmo?



Mais um dia tranquilo em minha morada. Mais um dia em que me pergunto se vale à pena saber tantas coisas a meu respeito.



Faça todos ficarem surpresos. Confesse o que nem dizes ao espelho. Ainda temos o que explicar e, talvez por isso, estejamos esperando tanto tempo.



J.M.N.

Educando os meninos – 1ª lição

(1952, dizem)

Não faz isso que é a morte!

Homem tem direito de chorar só em velório de pai e mãe. Nem de amigo. Essa é uma verdade. Quarto fechado menino, calor dos infernos aqui. Olha essas roupas, esse resto de comida ficando verde... Ai meu Deus. Salvai esse desesperado... Levanta. Já é tarde. Arranja alguma coisa para fazer.

Nenhuma palavra da parte dele... só a respiração denunciando o enfado.

Olha! Me fazes lembrar o Benedito, coitado. Ficou se engraçando pra quem não devia e ficou todo molhado dela. Adoeceu. Não contava as horas e foi ficando meio besta. Pulando de dor... Foi que morreu Benedito, suspirando até o último fio de pulmão, o nome dela – Flor, flo... fff...

Era tão bonito. Anda já, vai ver se tem filha nova de algum doutor pra te dar riso.

E saiu... Achava que tinha dado a melhor das soluções. J.M.N.

Contos da paixão corpórea I

- Olhe doutor, eu lhe juro por essa perna esquecida que é a única lembrança da época que morri pela metade: comida cozinhada em fogão de gente que não lhe quer bem ofende o intestino.

- E qual o remédio?

- O senhor pega a banha da sucuri mistura com a banha da cascavel, pinga no café todas manhãs da época de chuva. É tiro e queda.

- E onde eu consigo a banha dessas cobras?

- O senhor mata a cobra e tira a banha. Se o senhor não tiver prática na caça de cobras, pode usar o chá do boldo, mas eu lhe aviso que o boldo faz bem pro intestino porém pode causar paumolescência... Aí é a gente que decide o que é mais importante, né?

Então seu Otoniel Sacramento soltou uma gargalhada. Um dente de ouro, outros ausentes. Aquele sorriso tinha a envergadura de um livro de histórias.

WDC

Dois mundos e um sol apenas

"Pelo silêncio que a envolveu, por essa
aparente distância inatingida,
pela disposição de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:

pela imobilidade que começa
a afastá-la talvez da humana vida
provocando-nos o hábito de vê-la
entre estrelas do espaço e da loucura;"

Pelo silêncio - Jorge de Lima


Sob minhas mãos morreu muito cedo. E sucumbiu ao mesmo extremo que me culminou – um certo cheiro de coisa alguma que nos deixa sempre, sempre, envergonhados. E como não morto, morri primeiro ao saber que naquelas palavras ela me designava seu temperamento aberto. Fui ficando cada vez mais sem rumo. Cada dia mais sozinho. Como antes de ela vir, e antes de eu ter provado do seu sumo. Não conseguia distinguir suas tais misérias e por ela morri para os meus, anulei serviços e adquiri dívidas inteiras e de para sempre. Nossas janelas apontam o mesmo rumo. Horizontes que nos brotaram em dias de Círio. Durante os fogos estampados no véu negro, lá em cima. E sempre sobre nós este desespero. Esta tempestade com céus de estrupício e lama e caos por toda parte. Hoje eu calo em seu silêncio trajado sem o apelo por uma última nudez de sua entrega. Hoje eu cedo à calma de não ir buscá-la, mesmo enquanto esfomeado por sua presença. E aprendi cantilenas e missais. Terços e simpatias para destratá-la de meu empenho físico de continuar. De nada sou feito, senão desta memória ultrajante de que não sou mais meu há muito. De que necessito da fala dupla dos que conversam. Quais ela, sabiamente, me dá em silêncios. Nossas janelas não estão no mesmo prédio de apartamentos, nem na mesma rua ou vizinhança. E pelo silêncio que a envolveu quando me fui indispor com seus segredos, posso apenas supor que ainda se devora. Que ainda se arremessa em nós nas noites escuras de seu reduto, esperando ser desintegrada pelo sol que faz florescer tanto as petúnias, quanto as perguntas que ela gostaria de fazer. E isso é tanto. Tudo quanto preciso saber agora. J.M.N.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Aos idiotas

Dou adeus aos meus pares de sempre. Aos senhores distintos em seus ternos de casimira e gravatas de seda. Não quero mais sua dignidade infratora, às vezes legislativa. Peço paz aos que lutaram por mim guerras que eu nem presenciei e peço silêncio aos que disseram que aquelas batalhas seriam travadas em memória do que ainda estava por vir. O que deixo deitado nestas palavras de agora é como um rio que abriu lugares impensáveis e que se arrebenta num ponto qualquer do mar. Meu negócio é saber das coisas. É investigar os porões alheios. Chego aos fundamentos dos outros, sem jamais ter chegado aos meus. Isso é um absurdo. Peço licença às mulheres e às agradeço por terem tomado parte de mim e deixado tão fundas as suas essências que em meus desatinos e sonos profundos, habitam-me suas vozes quase como guias imperceptíveis do meu fazer masculino. Aquilo que não nos permitem dizer nas rodas, nas brigas de amor. Peço força aos meus santos. Àqueles quais nunca reconheci. Mas que me foram ofertados por terços dedicadíssimos e por almas muito mais densas que a minha. Se é que existe! Se é que existo! Por insistência, talvez? Não tenho o que contar, pois tudo já vos foi revelado. Peço descanso aos frenéticos, peço silêncio aos falantes. Não vos direi uma palavra mais. Isto vai para os outros. Para quem julguei alhures. Para quem desmenti por achar mais verdadeiras as minhas verdades. Vai para quem acredita e sabe apenas o que necessita, sem elaborar vibriões de ódio ou cancros de desistência. Meus ditos, vão para os que somam. Para o que valem. Para aqueles que me despertaram a inveja de ser oculto, quase invisível e que mesmo assim chegam aos olhos de uma criança. Da minha criança inconclusa. Eu vos oferto minhas sentenças. Ofereço meus rompantes. Minha coragem de não ser de ninguém e de não pedir arrego. Ofereço-lhes o compromisso com a palavra, que esta é a única coisa que há minha neles. Pois o que me devolvem estes a quem chamo de reles é mais imenso que minha pensa inteira. É muito mais decidido e forte que meus anzóis imaginários. Garanto-vos que buscarei aprender com isso e é certo que minhas mãos não se cobrirão de vergonha, pois que com vosso artifício desdobrarei esses tempos sozinhos em que me encontro. Sabendo que, ao saber, é necessário reaprender o que de mais certo se ouviu falar sobre nós. J.M.N.

Memórias paternas 2

Aos 14 anos...

- O que estás fazendo? Já chega de chorar!

- Eu tô escrev... - Não interessa, não vês que isso é demais? Olha para o teu irmão, ele sabe como resolver as coisas dele!

- E ele é feliz? Sabe o que se sente ao amar alguém?

A porta bate. A última frase do que se escrevia fica marcada pela lágrima silenciosa que despenca e afoga uma ou duas letras. Uma perda mínima diante de tantas coisas que se resolvem naquelas linhas. J.M.N.

Os estranhos instrumentos da verdade

Amanhece. Mas não dentro de mim. Corre a vida nas ruas bem abaixo. Ainda sou o resultado das imagens acontecidas naqueles horizontes que só vêm quando não fazemos parte da vigília. O gosto estranho de dívidas antigas. E penso nele a caminhar em praias desertas. Lembrando de cabeça baixa sobre as coisas de sua infância. Acreditando piamente que fez mal não se dando. Quase como um susto, sinto falta de abraçá-lo e lhe pedir um conselho final. Ensina-me a ser um filho bom. Como não houvesse bastante abandono naquela manhã desenrolada antes mesmo de chegar. Não há resposta, pois o pedido não foi feito. E penso que tenho de aprender sozinho, esforços próprios para esquecer o que não tive. Não tem problema. A decisão está tomada. Basta apenas encontrar-lhe e ser quem sou. Outro susto. No mesmo momento em que decido apenas amá-lo, ela me vem e percorre minhas culpas como a santa que nunca foi. Mas nada se acende em mim. Nada como antes era uma raiva permanente e dura. Sinto que tem algo mais. Outro íntimo a se esconder de minhas vidas. E neste canto, longe como poucas coisas são distantes nesse mundo, ela está sozinha. Tão só quanto eu. Percebo então que a mesma espera nos foi imputada. Que a mesma inquietude de não encontrar lugar entre os outros, toma seus ímpetos e impede qualquer cartografia ou farol. E começo a andar para sentar ao seu lado, mas ai, a consciência já tomou conta de tudo. Um sorriso. Um entendimento tão necessário finalmente me acessa. E me reparte em mil brilhos e cores e palavras. Não preciso estar sempre ao seu lado. Não preciso sentar no mesmo banco. Ela gora faz parte de tudo em mim. E me terá até o dia de minha morte. E por mais seis meses. Os dois são feitos de mim, tanto quanto sou feito deles. E mesmo que agora meu silêncio esteja doente, já posso lhes dizer que estarei sempre por perto. J.M.N.


Estava escuntando esta música ao escrever, resolvi deixar e indicar sua letra para depois. Quando qualquer incômodo vier.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Deixe a porta aberta apenas mais uma vez

Então abra sua porta e tire essa madrugada permanente do seu sorriso. Logo a manhã abrirá forçosamente nossos olhos e veremos o que deixamos para trás. Eu ouço tão longe o som do teu sorriso. Quero apenas ficar por aqui. Reservando mais de mim para teus braços. E quando houver dúvida em teus olhos, apenas poder te colocar na cama e cantar para que durmas profundamente. Então abra meus olhos e me salve. E repita comigo essas frases que nascem sem pai nem mãe. Dizendo mais de mim do que gostaria de permitir. Esses pedidos de reino e pertença. É tão difícil encontrar quem se ame. Abra sua porta apenas mais uma vez. E depois, quando eu estiver encontrado no contorno de teus abraços, joga a chave fora. Apenas por precaução. J.M.N.

Para ler escutando e depois seguir aqui...

Continuidades

A idade da noite é meu infinito. Sou de acordo com esta medida interminável de acontecimentos. E por me dar tanto e tão de dentro é que me interrompo, nos outros. Que apenas acham dias e noites no passar dos ponteiros. Morro sempre. E como volto só o corpo sabe. Só o condão de um funcionamento feito para ser assim. Inviável no tempo dos outros. Indisponível para os segundos regulares do trânsito dos dias. Especialmente noutros sentidos é que me esquivo do esquecimento modesto de quem se acha pelos calendários. Os dias caem da parede, escritos nas folhinhas. E as demais pessoas têm o luxo de apagar-se dia-a-dia. Ou de contar seu esquecimento no vencer dos meses. Eu que não posso recorrer aos expedientes científicos, incorro múltiplo nas existências que me guardam. Nas quais me detive por gosto ou descuido. E venço portas fechadas e acontecimentos de briga. Venço os portos ficando minúsculos dos navios em que se parte. Venço a cor das iluminuras das páginas eleitas dos diários. E fico. E sou. Incerto, mas presente que nem o ar. E me respiro e me comovo com o respirar dos outros. Sou meu tempo de descobrir limites. Sou minha própria ilusão de novidade. Um tanto frouxo, um ser de ontem. Falando coisas que couberam no teu passado, como cabem perfeitamente no teu futuro. Ou no nosso? J.M.N.