sábado, 6 de março de 2010

Dois mundos e um sol apenas

"Pelo silêncio que a envolveu, por essa
aparente distância inatingida,
pela disposição de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:

pela imobilidade que começa
a afastá-la talvez da humana vida
provocando-nos o hábito de vê-la
entre estrelas do espaço e da loucura;"

Pelo silêncio - Jorge de Lima


Sob minhas mãos morreu muito cedo. E sucumbiu ao mesmo extremo que me culminou – um certo cheiro de coisa alguma que nos deixa sempre, sempre, envergonhados. E como não morto, morri primeiro ao saber que naquelas palavras ela me designava seu temperamento aberto. Fui ficando cada vez mais sem rumo. Cada dia mais sozinho. Como antes de ela vir, e antes de eu ter provado do seu sumo. Não conseguia distinguir suas tais misérias e por ela morri para os meus, anulei serviços e adquiri dívidas inteiras e de para sempre. Nossas janelas apontam o mesmo rumo. Horizontes que nos brotaram em dias de Círio. Durante os fogos estampados no véu negro, lá em cima. E sempre sobre nós este desespero. Esta tempestade com céus de estrupício e lama e caos por toda parte. Hoje eu calo em seu silêncio trajado sem o apelo por uma última nudez de sua entrega. Hoje eu cedo à calma de não ir buscá-la, mesmo enquanto esfomeado por sua presença. E aprendi cantilenas e missais. Terços e simpatias para destratá-la de meu empenho físico de continuar. De nada sou feito, senão desta memória ultrajante de que não sou mais meu há muito. De que necessito da fala dupla dos que conversam. Quais ela, sabiamente, me dá em silêncios. Nossas janelas não estão no mesmo prédio de apartamentos, nem na mesma rua ou vizinhança. E pelo silêncio que a envolveu quando me fui indispor com seus segredos, posso apenas supor que ainda se devora. Que ainda se arremessa em nós nas noites escuras de seu reduto, esperando ser desintegrada pelo sol que faz florescer tanto as petúnias, quanto as perguntas que ela gostaria de fazer. E isso é tanto. Tudo quanto preciso saber agora. J.M.N.

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