domingo, 8 de novembro de 2009

Urgência e emergência

Dedicado à enfermeira Rosana que salvou meu dia
em maio de 1986.

Cheguei com toda a sorte de sintomas: constipação, voz alterada por inflamação de garganta, dor no fundo dos olhos e no seio da face e nostalgia. O atendimento foi rápido. Quanto à eficiência – discutível. Lembrei de uns anos antes quando fiquei de cama num hospital estrangeiro, urrando de dor e solidão enquanto tentavam dopar um paciente da ala psiquiátrica que teimava estar virando do avesso, sentia-se virar do avesso, via-se com as carnes expostas e seu interior entregue ao mundo – ele estava do avesso. Quanto a mim, fiquei quieto para não ter de passar pelo constrangimento de preencher um inquérito sobre a qualidade do atendimento do hospital. Hoje foi diferente. Cheguei sozinho à sala de espera. Tomei precauções para não ser visto como um doente e quando li o cartaz sobre os cuidados com a tal gripe específica que assola o país, engoli minha tosse seca e bebi dois litros de água. Entrei no consultório, disse o que sentia, fui auscultado, mas tive de pedir para verificarem minha pressão. Não pude deixar de pensar em meus ataques de ansiedade que se vão agravando nos últimos dias. Não pude deixar de pensar numa sala de hospital toda em azul, anos atrás, quando tive a revelação de que sofria de asma e padeceria com corticóides na corrente sanguínea pelo resto da vida. Uma profecia que não se cumpriu. Deu vontade de fazer telefonemas anônimos, acusar pesssoas de abandono, falsas promessas - disparates. Lembrei que mesmo acompanhado, naquele dia do ataque de asma, sentia-me só. Tinha uns dez anos. Minhas mãos estavam ao vento e à enfermeira, quando me perguntou o que podia fazer para melhorar minha cara, respondi: me dá um beijo. Tive a sorte de encontrar pessoas dispostas a atender meus pedidos mais esdrúxulos ao longo da vida e outras que me ensinaram a fazer por mim, a buscar. Naquele dia longínquo não foi diferente. Hoje a urgência era, sem dúvida menor. Escokhi procurar o serviço de urgência sozinho e fui dirigindo e cantando músicas de saudade, um teatro apenas. Talvez nem fosse uma questão tão emergencial assim. Recebi remédio na veia, fiz uma sessão do famigerado aerossol e escutei as dores de alguém que sofria de pedras nos rins e gritava, tira isso de mim, faz passar. E ninguém fazia. Percebi que não estava tão mal assim, que minha vida tem sido boa demais até. Iniciei uma raiva remota por não estar acompanhado, mas a dilui com a risada da criança que tomava soro e dizia estar sentindo o corpo ficando mais forte. Lembrei de um episódio de febre e do colo preocupado que me embalou e protegeu. Sim, eu já me senti protegido. Não pedi beijos ou cuidados especiais. Não fiquei mais do que cinqüenta minutos no hospital, mas tive a impressão de que não teria passado a vida sem aquele beijo pela crise de asma, séculos atrás. Enquanto voltava para casa, pensei em ficar cansado e dizer a mim mesmo perto da hora do sono: dorme bem, o pior já passou. J.M.N

Um comentário:

Anônimo disse...

Simplesmente lindo! de uma sensibilidade tocante e encantadora.
Parabéns pelo blog.

Mila