domingo, 29 de junho de 2008

A CARTA ÚLTIMA

P/ Franz Kafka

 

Caro amigo,

Não foi este o adeus que ensaiaste a 10 anos no escuro do teu apartamento. Disseste-me depois que, ante a visão dos meus passos na rua vindo para uma visita casual, algo se acalmou no teu íntimo e que desististe da queda. Hoje, o tempo parou lá no alto do relógio da praça principal de Praga apenas para observar a despedida que teus poucos amigos vieram dar-te. A nossa Paris listrada chorou tua morte luzindo suas lâmpadas cálidas.

Nobre amigo, prometo-te que executarei quase todos os teus desígnios: enviarei ao editor a ordem correta da tua última coletânea de contos. Presentearei Felice com a tua caneta e o tinteiro vazio – como ninguém, ela soube te fazer escrever e sofrer. Postarei no correio a última carta escrita pretensamente por uma boneca para a sua dona, a mocinha de uma praça em Berlim. Teus sapatos a teu pai; ele saberá o quanto caminhaste até concluíres que vocês não precisavam compartilhar a mesma senda. A Dora farei crer que com ela chegaste o mais próximo do sossego. Mas não queimarei os teus escritos, não seria justo depois que fizeram senhoras desmaiarem e retraçaram minhas certezas na literatura e na vida.

domingo, 22 de junho de 2008

Capítulos

Há horas que me chegam em naus velozes, as idéias. Seus redobros, como frestas a separar nostalgias e defender os amores.
Preparo uma letra desenhada.
Começo com as noites daquele amor. Ou desejo.
Emprego liberdades e paixões e imagens, amiúde incorretas, como diáspora dos medos e refugos esmerados do que eu não disse.
Escrevo romances e crônicas simples. Redondilhas e sonetos para os dias sem ninguém.
Ademais não estou presente nos ditos. Apenas nos teus.
E lá, talvez, esteja o restante desta história minha.
Já tão despercebida, quase sem razão de ser escrita. J.M.N

Às Letras

Em cima do risco, uma letra se aproxima do abismo, o vão dos dizeres hirtos.
Brancura ensejando a tinta, o traçado ou a esperança. Uma linha e nada adiante.
A letra suicida.
Escangalha o verso, abomina a rima. Letra sem qualquer vertigem.
Desata de um verbo ou de um nome e morre na minha escrita.
Despedaçada, entrementes, livre.
O seu silêncio é por querer.
O meu, porque é preciso. J.M.N

Cartas Negras

                                                                       para J.Zavala

Sentado ao pé das árvores mortas, subindo as longas escadarias – improváveis monumentos – ou esperando os barcos retornarem das aventuras de destino e os homens com seus tesouros empedernidos a confiscar as nativas para os amores instantâneos. Assim ele se desdobra em seu ofício de escriba. A cutucar o passado com seu condão de homem preto. Com a alma fincada do outro lado desse mundo e com os olhos atentos para os perigos em redor. Ei de lembrar de Jonas, o guerreiro, escrevendo as linhas da história secreta de seu lugar. Segurando numa mão a pena e na outra, uma arma branca para se defender dos ladrões, dos mercadores do tempo, dos senhores incautos, do perigoso esquecimento de Lusaka, dos velhacos disfarçados de mestres, enfim. Naquela época, já todo mundo acreditava que as vozes eram unas quando se falava de Inhambane. Mas não era assim. Não poderia ser assim. Não enquanto ele estivesse em pé olhando horizontes além de qualquer um. Nativo indesejável na terra lusa, estreitou laços com os mais sabidos, pois quando saiu de casa, prometeu ao pai cumprir o sacramento de voltar e saber mais que os mais sábios e ter mais força e coragem que os mais arrojados. Não por vaidade ou desdém, mas por vontade e crença. E assim fez. Conheci-o quando seu exílio ia pelo meio. Quando as torturas estavam mais viscerais e seus amores já quase se extinguiam numa mesma cama. Tinha o rosto manso e aberto. Mas a tristeza inoculara nele a terrível peçonha do estranhamento, da desolação. E algumas vezes, largava-se no triste exercício da descrença em si, da assunção de verdades alheias, malquistas. Andava atrás dos frades menores, buscando nas escrituras desviadas as respostas para seus enigmas de outrora. Nunca sentou à mesa deles, os mais abastados. Nunca cruzou o rio pela ponte principal. Esteve sempre à margem. Curioso e constante como o tempo em si. Rebocando com firmeza as estirpes menos nobres. Contou-me sua história sem capítulos, como se fosse um fluido que, há muito, teimava em lhe sair pelos poros. Seus olhos não vacilaram nunca e mesmo quando chorou o fez sem dor nenhuma, sem vergonha, sem molhar seus panos. Quando o deixei pela última vez, estava quase entregando o último volume de seus escritos. Esperava que o doutor de letras avalizasse sua escrita, suas idéias. Não pensou jamais em desistir e mesmo quando o imortal sisudo lhe deu negativas, não se entregou jamais àquelas vilezas. Jonas ainda me escreve e nomeia suas palavras de as cartas negras. Escrevo-lhe de volta com a mesma loucura branca dos que o impedem de voltar para o seu lugar, mas desejando intensamente que ele fique em sua fortaleza, com os olhos atentos no mar azul e suas distâncias. Escrevendo sobre a terra mãe, como ninguém mais será capaz de fazer.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Males de além

O som da tua voz dizendo aquilo ainda está comigo. Repercute o mais fundo possível nas minhas veias, nos meus calabouços. Nos confins de mim. Está lá a tua voz emblemática dizendo coisas que pensas saber a meu respeito. E nesses gritos sanguinários não escutas o que mais te apavora - o que me dizes é, na verdade, sobre ti mesma!

Dizes entregar tudo, ser por completo. Atreve-te a desdenhar de minha idade e das coisas incompletas que enumeraste em teu diário. Querias que fosse assim, que fosse assado. Invades meus limites mais absurda do que latifundiários. Sem ganância, sem economia, apenas para enfrentar a ti mesma, dando conta do que não podes mais ser.

Negas amar tanto. Negas ter sido esquecida. Negas as horas de dor, pois crês que não precisas passar por isso. Negas um beijo e suas conseqüências sempre tão aflitas entre nós dois. Negas que tua carne esteja trêmula e que os sinais de teu descompasso estejam impressos em tua pele. Coça teu desgosto, sentes o abrir das feridas. Magnólias envolvidas de afeto. Estás do avesso me dizendo tua ira.

Seguro teus braços, mas tua força é inconteste. Destróis meus intentos, machucas meu verbo. Atentas contra minha dignidade. Superas tua derrota com mais e mais vilanias. Estás envolta na misericórdia espúria dos que nunca sentiram. Dás ouvidos aos que dizem - mate-o!

Não por acaso, és amiga daqueles que têm pactos secretos com as distâncias, com os vizinhos das terras de não ser. E morres um pouco ao saber que te decifro, aos poucos e sempre te exponho através de minha entrega. Não suportas o fato de ter me conseguido, de ter conquistado, pois preferes estar sempre no interdito.

Meus braços perdem o vício de te procurar e arrebatado como que por uma ciência imediata de mim, apenas escuto teus pedidos torpes e digo estar tudo bem - minha morte, flores secando, café esfriando e teus encantos deixando de ser. Em algum momento tive medo do escuro e essa cor de que são feitos teus olhos, limitou meu encontro, no fim.

Pediste para que saisse. Pediste para que eu fosse só teu. Pediste para deixa-te sozinha, apenas por aquela noite. Justamente a noite em que mais precisava de ti. Pediste um vintém pelas loucuras, pela pele esquecida, por tua dor invencível.

Um dia terei males de coluna. Entrarei num hospício. Talvez esqueça de ti. Um dia como hoje é recanto, tem certo gosto de amoras. Faz-me querer viver mais. Hoje é como um ponto final no meio da vida, onde tudo o que eu mais queria era ter te visto pela última vez. J.M.N

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Do que nunca se diz ou quer

Os olhos dela desenham minha existência conforme aumentam ou diminuem as possibilidades da luz entrar. Dia alto se me ama. Escuro negro se acometida de isolamento. O chá esfria inexoravelmente sobre a mesa. Descobri que estamos mais próximos de ser conforme menos pensamos nas histórias de antes e, de alguma forma mágica, podemos olhar o futuro sem as molduras do que passou. Inventando horizontes a partir de muito pouco. A alma límpida e estonteante como recém-nascida. Meu pedido atinge o sagrado. Esmero-me em ser bom e adquirir a santidade terrena de que me falavam meus ancestrais. Esperando morrer puro, morro incompleto e só. Outra dor se instala no meu peito. Talvez o cansaço dos dias, talvez a certeza de que ainda procuro. Lembro mais do beijo do que de suas palavras para o fim. Ela sempre chegava a isso quando estava feliz demais. Nomeou minhas expectativas em três tópicos bem explicados e nunca vacilou em dizer que eu era obscuro e lento. Nunca a entendi. Uma noite dormiu por sobre meu cadáver. Ela sonhando sobre meu corpo desnorteado e eu sem saber se respirava ou me entregava àquele estranhamento. Decidi romper o cerco. Empurrei-a de mim. Ela dormindo caiu da cama. No carpete, reclamou do frio. Sua pele branca como um lençol. Não a cobri, não lhe dei proteção. Morri um pouco naquele dia. Dos anos todos o que me lembrava era de sua astúcia. A solidez de seus conhecimentos. Um pouco de sua imprudência em relação ao trânsito. Lembrava dela a catar nas fotos de sua família as gerações mais próximas de si. Seus parentes mais bonitos. Quem sabe o pai pretendido. Nunca foi ao mercado ou tratou da carne-alimento. Naquele dia em que perdi seu concerto, aborreceu-se mais com a cadeira vazia na platéia do que propriamente com minha ausência. Nunca me perdoou por ter deixado um lugar vazio. Eu, por minha vez, nunca a perdoei por ter me esquecido aos poucos. Nas viagens para fora do país. Nos longos banhos solitários em meio aos sussurros desesperados, entregue a si mesma. Eu que nunca pensei em existir primeiro. Quando mais entrava em seu corpo, mas estava fora de mim. Inalcançável dentro do espectro dormente das lembranças que eu tinha dela. Especulei por muito tempo que, afinal, toda a conjectura que fazemos para uma vida a dois, depende de nossas vontades não reveladas, pois qualquer plano de existência falha diante dos resquícios de nossa porção animal. A natureza sempre cobra pedágio, sempre se impõe. Quando não consegui mais me desprender de minha alma, quando senti que meu corpo não suportava mais as tensões da solidão compartida, inaugurei uma nova forma de viver e a partir de então, certo ou errado, estive todos os dias em seus pensamentos. Tudo começou quando no abandono lhe perguntei se ela se importava que eu dormisse sozinho. Sua resposta foi fraca e percebi que havia penetrado num mundo que era só dela. Houve algo doloroso em ter que admitir minha independência. Seu pior temor se concretizou naquele dia. Nos dias seguintes não reclamei de seus silêncios. Não pedi que me torrasse o pão. Não assumi meus crimes cotidianos: copos largados na mesa de centro, papéis em seu escaninho, quadros desalinhados. Certo dia, em meio a um beijo apaixonado, disse-lhe que parasse de fumar. Ela me beijou mais forte e em meio àquele acre veludo da nicotina descobri que havia chegado mais próximo. Talvez entrado finalmente. Continuei apertando sua boca descortinando, extasiado, suas improbidades. Passei pela infância solitária, pelos anos de rebeldia, talentos desperdiçados, usura, maldades. Passei por suas traições e me instalei, enfim, naquele espaço que seria só meu – seu desamparo. Continuei a acrescentar verdades às nossas noites, cada vez mais insanas. Troquei os discos desanimados por guitarras e distorções. Continuo passando o tempo a esperar que ela volte, mas digo apenas: traz o pão. Aprendi a mentir. A ser pela metade. Admirar suas esquisitices. Não pretendo ser perfeito ou que sejamos os últimos amantes desse planeta. Redobrado em cuidados próprios. Devolvendo sua distância para me aproximar dos seus sentidos. Espero apenas estar ocupado em ocupá-la de mim, criando impossibilidades para que ela supere e se alimente. Sigo me sentido amado e, de outra forma, sigo adiante na luz de seus olhos. J.M.N

Não cometa a gafe de morrer sem escutar 7

 
Agostinhos dos Santos

Muitas vezes ao lembrar de uma bela canção, aquilo que dá substância à memória é a letra ou a melodia. Neste caso em especial, posso dizer que qualquer uma das músicas que ouvi na voz de Agostinho dos Santos são belas canções, pois sua voz garante a limpeza dos acordes a profundidade da letra e texturiza o ambiente em que nos encontramos com o sublime, com o belo.

Dolores Duran compôs a Noite do meu bem e Agostinho interpretou-a magistralmente. É indiscutivelmente terno escutá-lo soletrando sua emoção nos tons mais altos da melodia, ápice que acompanha versos como quero, a alegria de barcos voltando/ quero ternura de mãos se encontrando/ para enfeitar a noite do meu bem.

E ele ainda interpretou Manhã de carnaval de Tom Jobim e Vinícius de Moraes no filme Orfeu do Carnaval de Marcel Camus, que conta, também, com a fantástica interpretação de Felicidade com Tom ao piano. Não bastasse estas referências, Agostinho gravou Serenata Suburbana, Por quem chora Ana Maria, Dindi, Estrada do Sol e tantas outras pérolas do repertório nacional.

Faleceu num desastre de avião em Paris, ainda muito novo, privando ao menos a geração seguinte de conviver com sua voz encorpada e sua presença nas rádios nacionais. O pior é que pouco se escuta falar de sua voz, de seu sucesso e, de certo, falta sua presença em tantas referências musicais, mesmo dos mais carolas.

Não disco que seja melhor, não há tempo inglório para esta voz calada tão cedo. Como sempre costumaos frisar aqui, este não é um estudo sobre a qualidade da voz de Agostinho. Não. É apenas a constatação de que sua interpretação merece ser conhecida, por esta e por outras gerações. J.M.N

Romaria

De noite a Santa repousa. De dia arrastam-se os pés descalços. Orando os filhos postiços, atrás da virgem, vão cantando.

Tem homens caindo em redor.

Mulheres julgam-se amigas. Atrevem-se a chamá-la de “minha”.

O dia é quente que dói.

Um mar de gente, já diziam.

E eu esperando ela passar.

Finalmente passa por mim, repara que estou ali e me faz um sinal.

Santinha, obrigado pela existência do meu amor, das tardes de sexta-feira e da saudade, que afinal é o nosso grito infinito!

Vou me envolvendo na multidão. A romaria agora é minha. Sagrada seja a multidão em que ela anda. Sagrado chão percorrido.

Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco e ela certamente é comigo...

Numa serenata, talvez

Por que tantas coisas se desgovernam? Por que o tempo se redobra e faz curvas improváveis nas nossas vidas? Por que olhar pela janela se torna penoso quando sabemos que a menina de tranças longas já não passará pela rua para deixar a tarde justificada e a existência um pouco mais íntima, mais impressionante? Por que as naus e ilhas dos livros de aventura, não se cruzam nos pátios do colégio, quando os amores inauguram dores mais agudas e quando parece que todas as viagens, são viagens de perdição? Por que, naqueles anos longínquos, não te disse as pequenas verdades que estavam tão à medida dos nossos quereres e poderes? Por que não tomamos o mesmo ônibus, dia após dia, percorrendo caminhos recém descobertos e melhor, parecidos? Como se ajusta os ponteiros do relógio implacável da vida? Como sabotar os sorrisos mais livres e os vincos cada vez mais comuns, os avessos profundos das nossas peles amadurecidas? Devemos esperar que as esquinas se realinhem e que nos encontremos íntimos num bar qualquer, como se tivéssemos passado a tarde anterior revivendo as lembranças que nunca foram nossas, mas tornaram-se comuns, num tempo outro que não esse que nos endivida? Responde! Faz isso fazer sentido! Nem que seja forçado, escreve-me teorias para explicar esses amanheceres afoitos que não se percebem dias, até que tenhas aparecido e feito meu dentro explodir feliz. Talvez assim, revele-se um rumo qualquer. Talvez teus saberes de andaime nos ergam aos topos dos arranha-céus e tornem inteiras, as frações dos nossos tempos distantes. Talvez eu descubra cantigas e te oferte uma serenata, numa janela distante desse esquadro mudo onde não posso te cantar tudo aquilo que deverias ouvir. Não pelas cantigas, não por romance barato, mas por amor mesmo. J.M.N

Entrega

Eu que me entreguei. Do avesso derramei meu sangue. Verti, escorri e de vermelho pintei teu mundo. Enquanto era desespero, não tinha nome, era um intruso. Eu que interditado me libertei por tanto amar. Um eloqüente mudo nos olhos teus. Atrevi ver-te por entre as brechas, através das ranhuras da porta, pelas fechaduras. Espreitando teu corpo feito uma proibição pagã. Eu que nunca encontrei vestígios do amor que dizias ter, em cujo ciúme apenas imprimias tuas próprias armadilhas. Derramei-me atrás de ti e pelo caminho o pranto também se tornou um rastro que levava a ti. Tudo me levava a ti. Voltei tantas vezes de mãos abanando, com prazeres de menos e coração demais. Por tantos anos acreditei que estavas morta e que minha saudade era a única coisa que restara. Eu que nunca sagrei-me um cavalheiro, por crer que era teu e simplesmente não podia desrespeitar tua loucura, tua baixeza. Quando te vi anuviada, desesperada por outro abandono, tive a certeza de que eras tu. A quem nunca a alma disse chega! A quem nunca o mundo puniu o suficiente. E mesmo na raiva guardada dos anos, pude correr e cobrir o teu corpo, pois quando a tua dor tomou conta da rua e eu próprio senti que morrias, quis provar que ainda era teu e que eu poderia colocar tudo de volta - o que te escapava, o que te exauria, o que nunca tiveste. E naquela noite em que eu te disse dos meus amores, a única coisa que precisavas fazer era morrer em meus braços e acabar com agonia. A minha, sobretudo. Apesar disso, como é teu costume, continuas viva, para além dos meus desejos, rindo de quando eu te ofereci alumbramentos.