segunda-feira, 24 de junho de 2013

Cartas a ninguém (27.03.2013 – 03:57)

Meu amor,

O vento sopra e a tarde tem aquele cheiro que costumavas dizer, nasce das coisas que se perdem umas das outras. Hoje entendo. A distância exala. Mais atrás do que eu vejo, há o poente violeta que sempre esperei. As coisas vão bem sim, apesar de não ter me dado com o chá de hortelã que sempre indicaste e eu levei mais de cinco anos para experimentar. Não faz mal, até por dentro eu contesto. Apenas isso.

Assisti ao nosso filme, de quando éramos. Tanto tempo depois ele me invade com a mesma violenta maneira de enaltecer e culpar. As imagens dançando sobre o que eu mesmo nem sei mais se posso chamar de saudade, tão constitutivo que é dessas linhas, dos meus trabalhos domésticos, da minha obra de esquecimento, da minha lentidão ao acordar e saudar o mundo rindo das últimas notícias, sejam estas boas ou ruins.

Mas assim vai-se indo. Ponho café demais no leite da manhã e a escuridão da xícara dá conta do meu estado de nervos. As pessoas gargalhando por todo canto e eu achando que todos são uns cretinos por não dividirem a receita desse estado de suspensão constante, onde não lhes atinge a fatal pergunta de todos os dias: e agora?

Sim esse sou eu. Ainda eu e ainda o que sou. Um otimista tímido que, apesar das desavenças com a morte, não a deixo sem um prato de comida todos os dias. Que seja a indulgência das religiões e as bênçãos dos que me querem melhor, as minhas proteções. Otimista, digo, em ter esperança de a esperança morrer com dignidade sobre o poema. De não ser sacaneada quando o resultado esperado for alcançado e um filho de chocadeira qualquer vier dizer que foi apenas a nossa obrigação.

Porque veja, quando rio, não é sempre alegria, quando mato uma personagem não é maldade nem vingança e, oxalá acredites, que nenhum de meus mortos te representa, amor, nada disso. Vou por este meio-fio a me proteger, pé ante pé dando linha ao tempo. Otimista pequeno do fim suado do dia, da esquina que não guarda o cano de uma arma, apontada para minha indiscrição de querer seguir andando.

Por isso, amor, quando a cena final terminou e todos estavam felizes, acalentados, respeitados em seus tormentos, felicidades ou incertezas, eu soltei um suspiro. Nada de se preocupar. Nada de exagerado. Mas cheio de intimidade e atávico nas coisas que me deixaste. Dentre as quais, a maior delas, a mais robusta e inextinguível: saber que pedras no caminho foram feitas para chutar.

Uma hora elas voam para o vazio do infinito e sua distância vai fazer parte do cheiro da tarde. Outra hora, simplesmente, nos quebram os dedos e temos que ficar um tempo de molho, sentindo as dores de nossa coragem ou as troças de nossa imprudência. Foi só depois de saber e viver isso, meu amor, que minhas tardes realmente puderam cheirar a esperança.

Sinceramente,

J.Mattos

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Dez Encontros I



Há muito que o acaso puiu as tramas  das desculpas dadas  pra que os dois, depois de tanto tempo,  estivessem frente à frente. Mesa de uma padaria. Território dela, uma cidade cujo nome fora dito, há uns anos, como uma fuga anunciada. Pra ele, em devaneios, o lugar nunca passou de uma reunião de praças e igrejas e da morada de uma mulher cuja alma carrega as marcas de um amor sem freio.

Pela força que usou pra assoprar o café, ele descobriu que ela não tinha pressa. O tom da voz ao falar com o garçom lhe fez pensar que seus dias de agonia mensal já se avizinhavam. O pedido... sim, ela estava preocupada com o peso – sempre o excesso de bunda e coxas.

Esse conhecimento prévio, assentado em gestos e cheiros, chegava-lhe mesmo que a contragosto. Era como um dom que ele possuía, mas que só usava quando na órbita daquela mulher.

Ele vinha com todos aqueles vazios enfeixados nas mãos tomando o lugar de um buquê. Gentileza discreta que aos dois apetecera em demasia.

Conversaram sobre o amor, o deles, seus saldos e dívidas. O que teve fim e o que restou inconcluso. Foram em cima, foram embaixo. Concluíram que uma fração de todo aquela ânsia de entrega sobrevivera. Incômodo. Franzino e irrequieto, como o filho que uma vez sonharam ter. WDC

terça-feira, 11 de junho de 2013

O ausente à espera

Agora é só esperar que ela venha. Trazendo nada menos que as peras de Lion e sua interminável irreverência sobre as merdas que o Wood Allen escreve. Sambinha no mp3 player e as conseqüências de uma puta dor de barriga. Ela finge estar inteira e eu rio da minha quilometragem. Vamos nascendo. Quando chegou só dei por ela depois de quinze dias, tão natural que ela me faz parte e seu lambido é o mesmo que a chuva do meu verde domínio. E percebo feliz que a pele dela me ensopa, que as unhas dela me arranham e que a comida que eu detestei, na verdade, era a boca dela se deliciando sobre a minha, uma mistura doida. Fertilizante. Isso é que somos. Saem plantas de dentro da gente depois dos meses, saem frutas. Tulipas, papoulas e calêndulas. Adoro dizer esses nomes. Todos a representam. E passo a escrever idiota sobre o silêncio que fere, sobre a gaze do meu curativo que escapa. Furo meus calos. Adoro os prazeres matinas de tê-la entre meus dentes. Carnívoros e amáveis, como só dementes podíamos ser. A sintaxe me falha. O verbo zera todas as ações e eu me fluido. Vou sangrando das dores dela, entre parênteses. Escrever assim só a quem sente. Escrever como se sente só a quem a dor prestou serviços. Não fosse ela minha retaguarda estava fodida. Meu dorso, meu tempo minha negra orixá, morreriam. Mas ela presente, sento como um rei. Namoro a pálida constituição dos avessos de maneira infinita. O que sai? Essas letras. Anátemas do pouco que tenho, do muito que a vida já me deu entre seus beijos. E fico simples. Passável. Instrumento para qualquer coisa que não tenha peso ou sentido ou mesmo, sequer, signifique algo nas palavras dos homens. J.M.N.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Porque vale ressaltar

Sobre todas as coisas eu te amo. Mesmo sem o brim que não compraste para minhas calças ou a proximidade da gripe que te afastou dos meus beijos. Te amo da mesma maneira perplexa com a qual descobri teus anos de aventura, de direito pessoal e intransferível sobre tuas decisões estúpidas e sobre o acerto de contas com tua família. Acordei hoje com vontade de dizer isso. Com gosto por relatar as coisas que, mesmo antiquadas ou prematuras, iminentes ou deixadas de lado, me fazem te adorar ao ponto de esquecer minha culpa neste amor de comprimento euclidiano. Mesmo sem o gato que me faria espirrar e o canário que atrapalharia teu sono eu te amo. Amor de sal e benção, mesmo que eu não creia. Dos doces com castanha de tua mãe e da presença dela engolindo nosso sossego no domingo. Por sobre todas as guerras, todos os noticiários de crianças perdidas que te fazem ir à igreja pedir por cada qual, eu tenho que dizer que te amo. Tenho que dizer que espero e esperarei sempre a tua chegada. Esperarei tua calma de antes do sono e tua ferocidade sobre eu ter esquecido de usar a aliança. Sobre todas as incertezas que ainda tenho sobre como seguir vivendo, eu te amo. E não tem rito ou crime que me façam desistir. Não há pessoa no espelho que me force a calar o que digo. Pois, se mesmo tão diagonais ou oblíquas nossas esperas se encontraram, quem sou eu para negar esse acaso fabricado tão naturalmente. J.M.N.