domingo, 30 de novembro de 2008

Desconserto

Naquele meio-dia e alguma coisa, diante da tua imagem que desapareceu atrás de uma árvore reaparecendo depois de dois longos segundos, eu pensei na palavra saudade, mas ela não me pareceu mais parte de mim que a fome que eu sentia àquela hora. Sei que a minha existência naquele momento e naquele lugar te afetava, assim como a tua também me afetava; os gestos confirmavam: passastes os dedos por trás das orelhas como se tivesses cabelos que ajeitar; eu te abracei de lado pra que não notasses o galope do meu coração.

Foi desconserto, senhora, eu confesso, e pela segunda vez alguém me cantarolou a música do Chico. Não que eu ainda te ame ou pense em ti – em nós – mais que quando sinto ciúmes de alguém ou pense no quanto devemos a Portugal, mas é como reencontrar uma parte de si que se perdeu, depois de já ter aceitado a incompletude. Não que eu busque de novo esse amor inapelável e sem abrigo que começou com um recusa minha e terminou assim, com um teu fastio.

Tudo não passou de ciladas e enlevos. De tesouros buscados e achados e, depois de achados, abandonados, pois precisamos estar permanentemente à cata de horizontes e abismos. No nosso caso, mais de abismos que de horizontes. Naquela manhã, quando confessastes que o teu amor esgotara-se e pedistes pra eu não vir mais à tua casa, pareceu-me que eu recebia um golpe de misericórdia, como se minhas costas recebessem o restinho de força de uma mão que apressava a minha queda. E eu me abandonei por inteiro ao desabamento, como um condenado por um crime de paixão se entrega à forca. O negrume insondável de treze noites apoderou-se de mim por meses a fio. Eu esperava o baque surdo, a última nota que meu corpo produziria, mas ele não vinha. Os abismos não têm fim, e esse era o meu único consolo.

Sem inspiração suficiente para pássaro, aprendi a planar sem me valer das cartas geográficas. Informo-lhe que ando fazendo o de costume: defendendo o salário que eu tanto reclamo; amando a esmo; colecionando coisas e sentimentos. Não, não é amor que nutro pela senhora. Talvez apreço, pelas lições de anatomia e pelos poucos sentidos que ficaram insatisfeitos. E também por essa dor que me destes, esse rasgo no peito que me divide e me faz maior.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Velando a ida, esperando a volta

Quando o barco se foi, pesou-me a triste ladainha da semana anterior. Mil terços não resolverão este adensar de confinamentos em minha alma. Ao longe um farol meio apagado, o peito demasiado fundo. Lá para as bandas de ontem, onde estes ingratos suspiros condensam, a festa é apenas pela lembrança – algo que foi, não é mais e continua doendo. Lembro de quando éramos jovens, alinhando as vidas com linhas de paixão. Espero que este barco volte trazendo as trouxas da ida. Num retorno perpétuo e esperado, amarras no porto norte, donde nunca deveria ter partido. Hei de esperar por ela, de pé, com o olho irrestrito pensando que nunca se foi. Haverá de voltar o barco negro com velas baixas e poucas almas. Sem histórias nem naufrágios, apenas repleto de sal e saudade.

Histórias para depois do sono VI

É como viver do avesso. A cada beijo, o rumor da vida escolhida por ti, bem longe dos nossos, bem longe de mim. Ah! as escolhas terríveis. Quereres e mais traços. Além dos olhares, adereços, poucos horizontes interessados em nós. Não quero saber das coisas eternas em ti. Caso não tenhas percebido esta noite não cobre meus sonhos. E quando acordo almejando teus lábios? Só o canto e o rádio-relógio me impedem de estar morto. E mesmo que esteja errado, não se esqueça do apreço, dos vícios de te querer, que são a mesma coisa que a morte. E acordo, de repente, nas bocas unidas em beijos, nas ruas vazias de luz, atrasado na promessa de te dar simplesmente tudo. Eu que vivo de amores espessos me encontro sem ti, atrás de um gole de água, ou de um pedaço de sombra debaixo deste sol infernal.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Anistia

Algumas vezes escutamos histórias ou passamos por situações que nem imaginávamos. Seguido a isso as reações são as mais variadas. Alguns choram, outros morrem um pouco, outros como meu grande amigo aqui homenageado, simplesmente escolhem viver e contar suas histórias. Este texto é para ele... meu amigo distante a quem carinhosamente chamo de "Grande Homem".

Enfim avistaram Calle La Salette. Havia mudado pouco. Os bangalôs erguidos sobre o asfalto ainda muito negro. As pessoas curiosas vendo chegarem juntos aqueles rostos atônitos. Ninguém pôde reconhece ninguém logo que se viram. E como um encontro combinado às escuras, aqueles que chegavam – ou voltavam – continuaram em passos lentos, apreensivos. Aqueles que estavam às janelas, de pacíficos foram ficando inquietos depois espantados e finalmente exaltados. O choro foi quase integrado. Uma orquestra de reconhecimento mútuo, de espanto, de esperanças justificadas. Um a um, os rostos antes pobres de expressões foram mudando. Angústia, medo, procura, mas, sobretudo, felicidade. Como havia muito não se sentia na cidade. Os abraços no meio da rua sucederam-se, criando um bolo de corpos que já se procuravam fazia tempo. Uns incrédulos, outros certos de que haviam deixado os pertences de seus entes nos lugares de sempre, pois haveria de chegar o dia do reencontro. Mães, filhos, irmãos, vizinhos apenas. Um mar de reencontros, mas também de notícias ruins. Talvez já não seja importante falar desses momentos, contar essas histórias. Ainda resiste o odor daquele dia e as paredes ainda guardam as tramas sigilosas. Nas ruelas tristes, nas peles cansadas, nos olhos desenfreados a consumir infinitos, existe tempo, existe vida. Voltaram de longe e com dores secretas. Os corpos não eram os mesmos. Voltaram sedentos pelo sono abundante, pelo pão das manhãs e as mornas toalhas de preparar as mãos para as refeições. Um dia haverão de contar seus estados, de dizer suas ruínas, apedrejados que foram por um regime absurdo. Um dia haverão de acordar e dormir como antes, remotas crianças da cidade a contar a história dos acontecimentos com a sabedoria dos antigos. Mas até lá, o forte cheiro do regresso é que fica e as tardes escuras anteriores ao reencontro, são apenas sanha e pólvora recém usada. Um borrão na saudade evidente.

Os sinos

O que eu ouço são sinos. Dobrando-se longe dos olhos que procuram. Porque soares de sinos têm de ser invisíveis. Ouço-os, pois sinto presenças. E também porque admiro. Os sinos soam em limites de dor e palavras que sangram. Como eu, algumas vezes. Tenho os sons dos sinos embutidos. Aliciando meus tímpanos, como se fossem conversas de amor. Não existem campanários para os sinos das minhas breves alucinações matutinas. Não estão eles em igrejas. Eles vêm de distâncias não sabidas. Ecoam porque limpos, banhados em orvalhos ou lágrimas, mas silenciam às claques absurdas, como quando ditadores se impõem às multidões. Meus sinos são sacros. Meus sentimentos inundam. Meus sinos, enfim, existem e dobram porque estás em mim.

[...]

Antes eu tinha mania de ser escuro. De andar de preto e versar sobre autores impossíveis. Criava os livros que eu desejava que ninguém conhecesse e também os labirintos nas falas e artimanhas de esconder minhas paixões. Vivi nisso até que ela me deteve. No dia cinco de Setembro de um ano qualquer. Ela derrubou meus muros com uma frase certeira: - tu és tão teatral! E foi assim que se instalou no meu palco. Como se nada mais lhe pudesse mexer ou desviar, ficou me olhando. Bem para dentro e cada vez mais. Até hoje. Escrevo estas linhas com ela fazendo alimentos para nossa fome de gente, enfiada nos trajes estampados que a fazem tão íntima. Ela se sente pequena e eu, demasiado teatral para fazê-la desacreditar em mim. Também já não posso. – Vou já amor, acabo de gritar. Tenho um presente para ela. Sei que vai amar. Depois da cozinha me fará cessar outras fomes e eu poderei lhe contar as histórias que invento apenas para poder ver em seu rosto, o sorriso de que tanto gosto.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Coisas de alma

Tenho tantas almas que agora dei de enumera-las. Faço de conta que têm privilégios os primeiros lugares e lhes dou a primazia das respostas, como se fosse um sistema de rodízio interno. Mas isso se limita às dez primeiras. Ando em confusão. Sobretudo em relação às sinceridades. Eduardo, minha alma de número nove, contou a mentira desmedida de que eu andava com saudades da Clementina, que prontamente se arrumou em seus vestidos de mau gosto e se plantou na porta do meu apartamento. Antes de eu a poder convencer de que tinha sido uma mentirinha boba de Eduardo, ela me estapeou e correu pelas escadas do meu prédio me chamando de louco. Pobre Clemê, ainda acredita em almas.

Depois disso foi a vez de Xenóbias, minha alma de número dois. Não pagou o aluguel e eu agora tenho que correr a cidade atrás de um teto levando apenas as sobras das roupas que peguei na lavanderia e uma cumbuca de porcelana que nunca usei, mas me pareceu muito sozinha quando estive pela última vez na cozinha e Vanda Flores, minha alma número sete, pediu-lhe emprestada a beleza esquecida com os rabiscos chineses que bem poderiam ser de Caldas Novas. Seu Roberval, o síndico, enquanto isso, lacrou o apê até eu pagar a renda. Ando atrás das almas estudadas para dar um jeito nisso.

E tem aqueles que não são ouvidos há muito tempo, os que fugiram às regras ou que as redefiniram e não conseguiram se incorporar, desistindo das lutas titânicas com a razão ou a criatividade. Sérgio, por exemplo, minha trigégima alma, anda aos murros com a Carminha, a número cinco que se disparatou e pediu por favor para entrar no banheiro das mulheres do shopping apenas para ver como ficava a calcinha recém comprada de uma dona que deu toda a pinta de que entraria no banheiro para experimentar a tal calçola.

Mas o pior de tudo, foi Antônio, o último da fila do meu dentro. Gritou, manhã dessas, que estava morrendo. Se eu não fizesse o que ele pedia, estaria condenando uma alma esverdeada e de bons costumes, como se definiu. Nem lembrava dele. Aliás, nem dele, nem de muitos destes pobres espectros que se me habitam. Mas fiz a vontade de Antônio, que afinal, não sou tão mal assim com as tais minhas almas.

Ele queria ver o mar.

Fui com Antônio e todos os outros para uma praia deserta e ficamos lá o dia inteiro. Ele acalmou. Fez até verso. Antônio tem disso. É dramático, mas boa gente e sabe bem a poesia reconfortante que se faz às pressas, para criar bonitezas de urgência quando o mundo não anda muito agradável. Antes de voltar para seu lugar, Antônio me perguntou se eu não me cansava de estar distante, no que eu disse: estar longe é para quem pode, Antônio, estou perto, mas já não conto que as distâncias são assim, distantes. - Olha, Antônio, tenho que me lembrar mais vezes de ti, disse afinal. Antônio riu baixinho e foi dormir em paz.

Atrás do espelho

Quando a cama parece maior. Quando o olho se reflete sozinho. Quando os quadros e músicas se eternizam e as coisas a dois se igualam ao respirar. É nesse momento que a solidão ganha sentido e tantas noites mal dormidas amanhecem. Tantos claustros desnecessários se tornam pátios e eu, com o riso dantes preso e agora público, aprendo a dizer - que saudade!

Solidão, enfim, é estar só, com uma vida inteira por detrás do espelho.

Farwell

Recuso-me a acreditar que não aconteceu. Que a palavra saudade é apenas um folguedo das minhas noites em claro. Escreveste que estarias aqui, todas as vezes que eu virasse as páginas do livro. De fato estás. Mas destas últimas doze vezes, imóvel. Em que esquina desencontramo-nos. Deixamos coisas demais por lá? Pelas estreitas vias de um passado recente? Não sou Drummond. Não és Cecília. Mas tenho os dois em um mesmo rascunho. Num pergaminho sacro que guardo com tanto carinho. Somos Forrest e Amèlie, andando depois do cinema, falando mal dos amigos. Criando questões sem resposta. Talvez não lembres dos ditos. Talvez não recordes do cheiro. Mas há sempre um registro esquecido. Um retrato roubado (e no nosso caso tenho muitos retratos doados). Não há como falar em retorno. Não se retorna nunca. Afinal as coisas acontecem a despeito de nossos quereres e, às vezes, de nossos atos mais desesperados. Continuo existindo em pedaços. Tem um enorme guardado nos confins do Mondego amado, esperando a urgência da fuga ou das ciências para subir à tona. Grandioso e melancólico como um sonho de amor. E sempre cheio de saudade - aquela dor que por vezes é a única que faz bem ao espírito. J.M.N