segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Coisas de alma

Tenho tantas almas que agora dei de enumera-las. Faço de conta que têm privilégios os primeiros lugares e lhes dou a primazia das respostas, como se fosse um sistema de rodízio interno. Mas isso se limita às dez primeiras. Ando em confusão. Sobretudo em relação às sinceridades. Eduardo, minha alma de número nove, contou a mentira desmedida de que eu andava com saudades da Clementina, que prontamente se arrumou em seus vestidos de mau gosto e se plantou na porta do meu apartamento. Antes de eu a poder convencer de que tinha sido uma mentirinha boba de Eduardo, ela me estapeou e correu pelas escadas do meu prédio me chamando de louco. Pobre Clemê, ainda acredita em almas.

Depois disso foi a vez de Xenóbias, minha alma de número dois. Não pagou o aluguel e eu agora tenho que correr a cidade atrás de um teto levando apenas as sobras das roupas que peguei na lavanderia e uma cumbuca de porcelana que nunca usei, mas me pareceu muito sozinha quando estive pela última vez na cozinha e Vanda Flores, minha alma número sete, pediu-lhe emprestada a beleza esquecida com os rabiscos chineses que bem poderiam ser de Caldas Novas. Seu Roberval, o síndico, enquanto isso, lacrou o apê até eu pagar a renda. Ando atrás das almas estudadas para dar um jeito nisso.

E tem aqueles que não são ouvidos há muito tempo, os que fugiram às regras ou que as redefiniram e não conseguiram se incorporar, desistindo das lutas titânicas com a razão ou a criatividade. Sérgio, por exemplo, minha trigégima alma, anda aos murros com a Carminha, a número cinco que se disparatou e pediu por favor para entrar no banheiro das mulheres do shopping apenas para ver como ficava a calcinha recém comprada de uma dona que deu toda a pinta de que entraria no banheiro para experimentar a tal calçola.

Mas o pior de tudo, foi Antônio, o último da fila do meu dentro. Gritou, manhã dessas, que estava morrendo. Se eu não fizesse o que ele pedia, estaria condenando uma alma esverdeada e de bons costumes, como se definiu. Nem lembrava dele. Aliás, nem dele, nem de muitos destes pobres espectros que se me habitam. Mas fiz a vontade de Antônio, que afinal, não sou tão mal assim com as tais minhas almas.

Ele queria ver o mar.

Fui com Antônio e todos os outros para uma praia deserta e ficamos lá o dia inteiro. Ele acalmou. Fez até verso. Antônio tem disso. É dramático, mas boa gente e sabe bem a poesia reconfortante que se faz às pressas, para criar bonitezas de urgência quando o mundo não anda muito agradável. Antes de voltar para seu lugar, Antônio me perguntou se eu não me cansava de estar distante, no que eu disse: estar longe é para quem pode, Antônio, estou perto, mas já não conto que as distâncias são assim, distantes. - Olha, Antônio, tenho que me lembrar mais vezes de ti, disse afinal. Antônio riu baixinho e foi dormir em paz.

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