quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Excertos Terapêuticos XI

Quando começamos a escrever os excertos, a idéia era de colocar pedaços de textos que nos diziam algo naquele momento. Algo que atualizasse as sensações vividas e dessem vazão às palavras incrustadas nas impossibilidades do dizer... Hoje, ao voltar à páginas de a Crônica da Casa Assassinada, reencontrei este magnífico exemplar para um excerto terapêutico, o qual passo a registrar no intuito, também, de dar-lhes mais elementos para buscar ler Lúcio Cardoso.

"Inclinei-me e, cego, colei meus lábios àqueles lábios já isentos de qualquer vibração. No princípio, quando eles tocaram a membrana dos seus, ainda senti aquele afago, aquele morno de fruta madura que são o íntimo de todos os beijos; mas à medida que lhe forçava a boca, e com a língua atingia-lhe o paladar, não era mais essa descoberta do húmus alheio o que me transportava, mas um odor rançoso, indefinível, que sobrevinha do seu âmago como um excesso de óleo que fizesse andar as escuras profundezas daquele engenho humano. Dirão aqueles em cujas mãos tombar um dia este caderno: delírio, mocidade. Delírio ou mocidade, que importa, era o meu único encontro com a morte, com seu subterrâneo trabalho de desagregar e confundir a harmonia interna de que se compõe cada ser vivo. A imagem da porta fechada não me abandonava o pensamento. No entanto, naquele momento, não era a fruição da vida o que me interessava, mas a da morte. Agi, e como agi, não sei – era um terror, uma ânsia de me completar em sua agonia. Ela própria não me incitara, não me dissera que era preciso atravessar o muro, possuir, romper e anexar os seres que amamos? Amei. Amei como nunca, sem saber ao certo o que amava – o que possuía. Não era um interior, nem uma mulher, nem coisa alguma identificável – era uma monstruosa absorção a que me entregava, uma queda, um esfacelamento. Sobre minha cabeça sentia girar da própria força do escuro e, como se estivesse no vórtice de uma vertiginosa água, meu ser ameaçava fender no embate contra um poder que me fazia rodar sem descanso, sem no entanto atingir qualquer coisa que em mim permanecia imune ao frenesi dessa espantosa viagem. Até o instante em que ouvi um grito romper o ar – e acordei. Desfalecida em meus braços, ela arquejava. E pelos meus punhos, pelos meus dedos, escorria um líquido que não era sangue e nem pus, mas uma matéria espessa, ardente, que descia até meus cotovelos e exalava insuportável mau cheiro. Abandonei-a, e ela afundou na massa mole de travesseiros. O líquido, vagaroso, ainda escorria pelos meus braços. Morta? Viva? A questão era inútil. Vivo era eu, ante as sobras da minha louca experiência. Vivo era eu, e esta consciência me fez ficar de pé, transido, olhando a coisa sensível que ainda ofegava sobre a cama. De todos os lados, como um rio invisível que fosse crescendo, e esbatesse suas ondas de fúria contra os limites opostos que representávamos, o sentimento do fracasso se interpunha entre nós; passo a passo fui recuando, recuando, até o fundo da parede, como se deixasse espaço para que aquele mar fervesse, e subisse até nossos peitos impotentes, e nos atordoasse com seu cheiro de sal e de sacrifício. Rapidamente o mundo recompunha-se no seu mutismo. Pela primeira vez, então, ergui o punho contra o céu: ah, que Deus, se existisse, levasse a melhor parte, e dela arrancasse seu sopro naquele minuto mesmo, e estabelecesse sua lei de opressão e tirania. Que até nos diluísse em matéria de nojo, e vivos, para maior divertimento seu, exibisse o atestado de nossa podridão e de nossa essência de lágrimas e de fezes – nada mais me importava. Literalmente nada mais me importava. Um vácuo fez-se em mim, tão duro como se fosse de pedra. Senti-me sorvendo o ar, caminhando, existindo, como se a matéria que me constituísse houvesse repentinamente se oxidado. E nunca soubera com tanta certeza como naquele instante que, enquanto existisse, proclamaria de pé que o gênero humano é desgraçado, e que a única coisa que se concede a ele, em qualquer terreno que seja, é a porta fechada. O resto, ai de nós, é quimera, é delírio, é fraqueza. Tudo o que eu representava, como uma ilha cercada pelas encapeladas ondas daquele mar de morte, admitia que a raça era desgraçada, condenada para todo o sempre a uma clamorosa e opressiva solidão. A ponte não existe, jamais existiu: quem nos responde é um Juiz de fala oposta à nossa. E sendo assim, desgraçada também a potência que nos inventou, pois inventou também ao mesmo tempo a ânsia inútil, o furor do escravo, e a perpétua vigília por trás desse cárcere de que só escapamos pelo esforço da demência, do mistério ou da confusão."

Lúcio Cardoso - A Crônica da Casa Assassinada (pp. 403 a 404)

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