domingo, 26 de outubro de 2008

Cenas da Fé

Cenas da Fé

Enternecedor é o livro com poemas de Emanuel Matos e fotos de Miguel Chikaoka. O livro me foi dado de presente pelo Neto, com carinhosa dedicatória do Emanuel. Presente bom é aquele que nos leva a outros mundos, outros tempos, aqueles de bem antes de anterdontem, como eu dizia quando moleque.

Esmagamentos e um sol de lascar, a mão firme de minha mãe segurando a minha e dizendo que já ia terminar – mais que respostas pra perguntas não ditas, lições para lidar com a ansiedade. Calças e camisas novas e sapatos lavados. Todo o exotismo do banquete paraense esperando na casa de algum parente. Um pouco de medo de ter que enfrentar os tios que sempre reclamavam do meu silêncio. Os dois pesadelos com aquelas bolonas do arraial: primeiro pesadelo: eu e meu irmão sendo engolidos por uma daquelas dentro do nosso quartinho da casa no Guamá; segundo pesadelo: minha mãe comprando uma daquelas e eu tendo que levar dentro de um Guamá Conselheiro atulhado de romeiros. Toda mobilização de nossos universos por causa da santinha que eu nunca via.

O Miguel enfocou bem algo que, em infância, eu nunca participei: a trasladação. Mostrou como são bonitos os fogos à noite, como a festa de explosões e luz pode compensar o barulho ensurdecedor. As imagens mostram ainda como a mãe de Jesus está entranhada nas vidas das pessoas em Belém (como na foto do que parece ser um açougue que eu coloquei no início do texto).

“A proposta do livro não foi fazer dos poemas legendas das fotos, e nem das fotos ilustrações do poema”, daí a liberdade com que Emanuel Matos espalhou seus poemas deliciosos pelas páginas de Cenas da Fé, polinizou mesmo, lançou os versos com mãos de lavrador. Sem pedantismos nem fanatismos, o poeta mostra como Belém se vê, pelos olhos da santa, em reflexos suavizados pelos ares de outubro. Como Belém construiu-se mais feminina que outras cidades por ter adotado como bordejamento para o desamparo uma rainha. O achado de Plácido parece ter sido mais que um milagre, foi o batismo de uma cidade da qual o livro me fez ter saudade.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Depois do abraço

19:30. Início de uma hora breve na qual acreditamos a casualidade do encontro. Hora das desventuras mútuas. De escutar o que o outro tem pra falar sobre os perigos da beleza e as lições da dor. Hora das gargalhadas rasgando o começo da noite e o disfarce dos sentimentos. Hora de estar de verdade com alguém, assim inteiriço, sabe? e, mesmo com o ar rareando no pulmão, tentar acompanhar a velocidade dos teus passos e frases. Aprender contigo: que quando se trata de vida, a aposta tem que ser sem reservas; que sofre aquele que tenta entender o feminino ao invés de simplesmente abandonar-se a ele; que sentir que o chão se foi é o primeiro passo pra estar nas nuvens. Depois disso logo deixas o meu ombro e procuras o colo da tua filha (ou vice-versa, dependendo de qual mulher estiver mais forte àquela hora). De longe, vejo que fizeste algo no cabelo que eu esqueci de comentar. Reparo ainda como sempre falta um abraço teu ou uma frase qualquer que expresse essa minha sensação de pilhas recarregadas e de coração azeitado após a tua ida.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O guardador de águas

clip_image002

Sempre que estou obscuro, procuro Manoel de Barros. Este seu pequeno guardador de água é especialmente recomendado para aqueles dias em que estamos mais "atraídos pelas doenças das coisas que por suas belezas". Aqueles dias em que cabe benzinho dizer para o espelho: É homem proposto ao escárnio.

Manoel de Barros coisifica sentimentos ermos e sentimentaliza coisas inúteis como pregos e latas fazendo-nos crer que a língua na qual escreve não é a mesma nossa língua-mãe. Tão essenciais como o vento e o canto dos passarinhos, suas palavras atestam seu destempero com o mundo.

Mas este destempero não é desgosto, como no popular mexerico, não! É coisa santa de segredos de relva, casas que que falam de suas assombrações e Bernardo... Ah! Bernardo, o tolo da estrada.

Guardando águas, falando sobre as grandezas do ínfimo ou tratando do nada, Manoel nos inspira a reconhecer a tez primitiva de nossa história pessoal e a nos atar às coisas da terra e do ar como sendo as peles necessárias à proteção dos sonhos e ao entardecer de nossas angústias mais infantis.

Ainda bem que Manoel existe e nos diz clara e corajosamente sobre o seu guardador de águas: Um livro o ensinou a não saber nada - agora já sabe. J.M.N

Sem sentido

O pior de tudo é a espera, esse acúmulo de tempo sem sentido. Um silêncio desconcertante em que as mariposas não surgem e o telefone jamais toca. Como noutra parte escrito: só resta a prisão do corpo e a eternidade das fugas impossíveis. Enquanto tudo volta num turbilhão feroz de anotações e convites não feitos, no peito insinua-se uma velha lição - mais coração, mais cicratrizes. Houvesse paz nesses dias de espera incerta, o ritmo de nosso centro de existir descompassaria, diminuiria seu trabalho e as razões de pulsar extinguiríam-se. Mas o silêncio que fica é impressionante, executa a beleza das sinfonias, isola o sentimento de partilha e quanto mais prolongado fica deixa menos sentido para a saudade. J.M.N

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Fogos na noite

Apoxima-se o primeiro e único aniversário daquela noite. Nosso templo de renascimento, onde até o céu aquilatou suas cores e pendeu sobre nosso abraço satisfeito, transformado em sucessivas explosões.

Os fogos do Círio anunciaram nossa chegada como os primeiros amantes da fantasia de fé que se encerrara para os demais, mas que se firmava entre nossos beijos e as cantilenas de adoração e encontro. E naquele preciso momento, também os fogos inauguraram a nossa existência paralela.

Naquela noite houve lágrimas e êxtase, e a entrega ofegante de um encontro por ambos desejado. Naquela noite em que findamos nossa entrega na mesma hora em que o céu inaugurou suas cores fictícias, a sensatez deu um passo atrás e a esperança pela eternidade declarada se instalou como uma promessa inquebrável.

Inquebrável?