terça-feira, 12 de setembro de 2017

Duas esfinges

Perguntei-lhe para que servia a tira de pano amarrada à fechadura da porta do quarto de hóspedes. “Descobri que assim posso abrir a porta mais suavemente e não a acordo, sabes que tua avó precisa descansar”. Era de manhã cedinho. Ela acordou duas horas antes de mim. Foi até à padaria. “Dois carecas branquinhos, por favor”. Voltou para casa, tomou banho e ficou zanzando de um lado para o outro na sala. De vez em quando espiava pelo corredor para ver se eu já vinha. “Me conta como estão as coisas por lá, as minhas amigas já sabem, que bom que deu tudo certo”. Ela repetiria isso inúmeras vezes para quem quer que fosse, eu sabia. “Seu trabalho é bom? Como são as pessoas? Fulana ainda chora a morte da filha, disse que não se endireita, isso de perder filho é uma merda”. Meu café teve gosto de infinito. “De repente eu sento e dói aqui, dói ali; mamãe está bem melhor, mas se esqueceu o que é um sino [risos]”. Não há maldade em suas palavras, mas o nervoso de ver isso tão próximo de si, o esquecimento. E nisso, somos iguais. Suas mãos estão mais enrugadas do que a última vez em que reparei. Meu tempo passa por essas mãos, passa por seus olhos claros, pelo jeito como se intromete nas filigranas do que faço até hoje e isso me dá um prazer enorme, o que no fim das contas tem o mesmo peso involuntário de um incômodo constante por perceber o quanto sou feito dela. “Ainda tenho muito que fazer, não é fácil, dormiste bem?, vai que teu trabalho é muito longe. Espera! Me dá um beijo”. Um beijo que comporta tanta aflição e saudade, medo e ruptura, mas, sobretudo, bons sentimentos. Saio apressado. “Tchau, tchau, tchau”. Três vezes para ter certeza de que eu precisava sair e eu respondi ‘até mais’ bem baixinho, com medo de que fosse para sempre. Meu dia ficou entre política, indústria, um pouco de psicanálise geral e, debruçado numa aflição que para mim se confundia com o gosto do regresso, não podia esperar por vê-la novamente. Volto aqui e ela simplesmente me cuida!? “Quando chegares tem aquele arroz de que tanto gostas”. Ainda nem tinha saído e ela já sentia falta. Preciso aprender essa antecipação belíssima da saudade, como se fosse uma pré-saudade, uma coisa que chega antes e anuncia que vai doer, mas logo vai passar. Minha presença incita isso? É o que de melhor o dia me dá, a brevíssima certeza de que sou tocado pela coisa própria de quem se encontra consigo mesmo, a sensação de pertencer. Acabo de entrar. Sei que deixei o quarto arrumado, mas ele está ainda mais limpo e cheiroso, com toques de quem esteve entrando e saindo de lá, melhorando em detalhes finíssimos os ajustes já perfeitos do amor. “Tira a camisa, está molhada, assim gripas, assim podes até ter asma de novo”. Claro que eu tiro, claro que eu penso que nada mudou e por uma fração de segundo sinto um incômodo estúpido por estar em suas mãos. “Vamos comer?”. Espera!, eu digo. Me conta do teu dia. Seguimos ao sofá da sala e, sem resposta ela aceita o peso do meu cansaço em seu colo. Não houve palavras dali em diante. Ficamos apenas sendo. Enfurnados um no outro com nossos enigmas e segredos. Eu o filho. Ela, minha mãe.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Quando eu resolvi me esquecer

(coisas perdidas de 2004...)

Sem dó nem compaixão me esqueci. Dia cinco de mês e ano quaisquer. Em meio ao abraço, desaparecido. Promessas de eternidade quebradas. Amado eu já tinha sentido ser. Porém não naquela altura. Tinha esquecido qual era o gosto de saber-me. De qualquer jeito, acabara ali minha unidade com meu antes. Deu-se um salto no tempo e passei a me relatar feito história acontecida. Nada mais disse. Você não me obrigou e, mesmo assim, eu fiz um discurso de abandono. Fiz meu monstro literário nascer bem ali. Escrito a sangue no primeiro dia de meu esquecimento.

Você não tinha culpa. Não tinha peito. Sequer uma cama para abrandar minha luta. Não tinha fósforo para o incêndio. Eu me despia e era seu, apenas isso. Um nó no peito. Dó de não me ter por perto. Endireitado como um esquecido. Como um violado. Minhas palavras nasceram sem mãe nem pai. Deuses e Diabos contribuíram. Carne de primeira aquela sua. Jamais voltei. Perdi o terço. Minha avó sabia quando me indicou Santo Expedito. Estou preso diante de mim. Esperando do lado de fora para entrar. E vejo saindo os arrependidos, os mal vividos. E eu não saio nunca. Tampouco entro.

Você não tinha jeito. E eu não tinha direito de ser sem mim, antagonista desta vida inteira. Tanto quanto eu, você era sem ser. Não tinha trejeito que recompusesse. Eu sabia tão pouco sobre mim e mesmo assim, fui adiante. Vê se me esquece. Cresce e desaparece. Nunca mais volte ao passado que lá eu sou apenas meu. O que escrevo, escreve-se e fala sobre amanhãs e postais. Meu monstro dorme insuperável e eu, apenas esqueço uma ou outra palavra. Meu bicho, se você não sabe, é uma mulher que nunca existiu. J.M.N.

Para ler escutando...


Excertos Terapêuticos

"Espalhou-se que estava morto, louco, sujo das lamas da rua, seus trapos fediam, sua cara era outra. Achavam que se o deviam chamar pelo nome da pior das bestas. Perdera a propriedade de ser gente. Grunhia. Enfezava-se por qualquer besteira. Qual o quê! Estava perdido da esperança. Prenderam-no num quarto escuro e perguntavam-lhe insistentemente qual sua maior culpa. Ele disse mil vezes: não a ter amado mais. Não ter sido menos meu. E viu-se diante do que fora incapaz de admitir. Não havia mudado em nada. Não fedia. Seu nome era comum e registrado em cartório. A prisão era um sonho recorrente. A culpa esta sim, alimentava-se dele e dele extirpou suas melhores horas. Não estava sob a mira de ninguém. Ninguém o perseguia. Quedou-se morto em si mesmo. Arrependido de não ter dado um último beijo, não ter sentido a respiração dela em uma última noite em claro. Voltara a um tempo de pouca ou nenhuma comunhão. Tempo antes do amor."

Cantídio - Livro das culpas perfeitas