sábado, 26 de setembro de 2009

O sono dela (ou Ensaio sobre o manso)

“Quando o homem dorme,
seu rosto se desmarca de todas as tramas
e de todos os desgostos.
Nada enternece mais uma mulher
que o rosto do amante, dormindo.
Ela se debruça sobre a face do amado
e descobre que eram simples palavras
todas as valentias que ele
lhe vinha dizendo ou dando a entender.”

Antonio Maria Moraes de Araújo
– Considerações sobre o sono, 1956.

Ela sempre se despedia primeiro. Não sem antes dizer que o som estava bom, a luz não incomodava, não teria problemas em dormir. Enfatizava o calor dos meus braços e a amplidão da minha voz dizendo-lhe: dorme bem, com um sorriso de olhos fechados e o corpo à disposição dos meus cuidados. Eu nunca lhe contei o que se iniciava depois de sua partida. A guerra silenciosa para me ater às imagens da TV. Minha insônia era bem vinda nestes momentos. Até tinha devaneios, sonhos diurnos de olhar para ela dormindo. E quando acontecia de um suspiro soltar-se de seu dentro, eu tirava o som da TV e tentava convencer meu corpo a gerar mais calor para seu sono acontecer completo, retornando à neutralidade do manso. Nunca deixei tantos filmes pela metade, ou me abandonei tão fundo no segredo de pulmões se enchendo. Nunca foi tão feliz o ressonar de outro ser. Enquanto as contas acumulavam e eu antevia desertos, desgraças e distâncias imensas, uma vida inteira acontecia no sono dela. E me confortava a realidade de tê-la tão próximo. De sabê-la tão oposta àquela condição de descanso, pois todos as noites em que se aquietava ao meu lado eu podia secretamente confessar-lhe meus afetos, minhas paixões, minhas dúvidas e capturar-me em sua beleza humana e algo desprotegida. Pude adorar mais que ser adorado. Pude entender do que são feitos os sonhos de uma mulher. Suas falas desastradas, seus efeitos de sono solto, convocavam-me cada vez mais ao centro de sua vida, ao interior de suas cavernas, ao páramo de sua ilha. Era feliz adormecer ao seu lado, muito tempo depois dela. Despencando aos poucos das alturas de minhas expectativas com a vida e com as manhãs seguintes. Era bom ser o único expectador de sua beleza adormecida e ir me entregando aos poucos, sem desistência, apenas serenidade, dizendo na voz mais baixa, no auge da mansidão dos lençóis: abre as portas do teu descanso para mim. J.M.N

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Se você tivesse cinco segundos para gastar, eu lhe contaria a história da minha vida

Sobre a música Half a Person, The Smiths

Você pode falar as piores coisas a meu respeito. Pode dizer à sua família e amigos que sou a pior das pessoas. Que nunca deixei você se aproximar de fato, que tudo ao meu respeito é mistério, segredo ou fanfarronice. Você pode escutar aquelas músicas odiosas e cantar a todo pulmão lembrando que provavelmente eu estaria reclamando e pedindo para você trocar de estação. Você pode se entupir de porcarias que não haverá reprimendas. Meus sapatos ao pé da cama não serão mais problema. Você já sabia que em muitos sentidos eu era tão diferente de você e tinha tantos defeitos que seria insuportável brigar e colocar tudo em pratos limpos. Esperando descobrir algo suposto, você abriu as janelas para os sóis de outros mundos e, finalmente, suas suspeitas tomaram forma, se tornaram verdade. Você tinha com que resguardar suas próprias impossibilidades. Eu não. Escolhi o escape. Talvez você lembre das coisas que contei sobre minha infância e adolescência naquele dia dentro do seu carro, com a garganta doída e com a voz embargada por ter reconhecido no afago de sua mãe, a minha falta perpétua. Talvez isso tenha lhe passado despercebido. Você não tem mais nenhum de meus objetos. Os que deixei em sua casa, os que lhe dei com todo o prazer. Você não tem as fotos do que passamos, rosas secas. Não tem um ombro que lhe entenda quando acorda de madrugada e sente nossa falta (incompletude, talvez acompanhada), pois todos os ombros em redor sonegam-se no pertencer, dizendo para que você esqueça e tente outra forma de ser feliz. O fato é que eles, apenas detêm a décima parte da história. Aquela ínfima soma que se fez conhecida em meio ao desconforto, à decepção. Não sabem do cuidado de nossas peles. Das massagens para estancar suas dores. Não sabem que lhe segurei firme quando freei bruscamente diante do buraco na estrada, em viagem a dois, tempos atrás. Não sabem como éramos juntos. O que tínhamos ou sonhávamos. Aqueles que a incentivam não sabem da tranqüilidade do sono braços nos braços, do despertar barulhento e feliz que resultava sempre em manhãs sorridentes e conquistas pessoais, as mais desejadas. Você pode me deixar no silêncio e eu peço desculpa por ter tomado tanto tempo de sua leitura. Digo por fim, que se tivéssemos mais cinco segundos em frente um do outro, saberia de pronto que meu riso acorda diante de você e que há tantas coisas inexplicáveis na estupidez da partida, no desencontro desses desejos de vida e certamente caberia, neste instante, toda a infinidade do tempo que prometemos passar juntos durante a vida em comum. A vida inteira em cinco segundos. J.M.N

Para ler escutando...

Como são estúpidos os corações

… como são frágeis em seu pulsar inconcluso. Como são abandonados nas trocas dos sangues, na exposição da mesa de operações. Como são tolos, feito a morte que tenta levar os que sequer viveram ou sentiram as turbulências elétricas dos colapsos de amor. São bombas de alegria e tristeza e rumos e melancolia, atados no peito-cárcere que não consuma fugas, pois dependente das obrigações deste servo das entranhas, dos pertencimentos. E quão insistente o chamado diário desse universo de câmaras e escuros. Ser duvidoso e talvez parasita. Que se enquadra nas telas românticas como um alvo. Que se reduz a cada morte da esperança. Que se despede a cada gota de loucura. J.M.N

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Redimir-se

"Perdão, perdão àqueles que sangram,
remota carne invejavelmente desperta.
Abre a porta dos mais que anos,
e relembra que não somos mais,
que existimos apenas no chão dos versos"

O Oráculo do Grão - texto X

Há de existir um dia sem a confirmação das desventuras que inventamos. Sem a lembrança esquisita daqueles dias pertencidos. E como o cuidado de mãos feitas para o ofício de cuidar, o sono acontecerá a despeito do medo de que se apaguem as memórias, que a vigília seja a única forma de proteger nosso castelo de areia, pois neste dia em que nada haverá de doer mais do que as dores dos anos, estará garantido na memória celular de nós dois, o metabolismo anunciado do que fomos e fizemos. E talvez sejam dignos os enfeites pensados para o aniversário do encontro. Talvez sejam estúpidas as distâncias polares. Quem sabe serão felizes os afagos nos outros e toda a história vivida será sintetizada num raio fulminante de poder super-humano, que dissolverá o aço na mesma medida em que unirá as coisas mais suaves que possamos inventar. Há de existir um dia sem a reprovação interna das euforias, sem o espanto das orações ofensivas ou o remoto desespero de perdermos o que sabíamos nosso, mas, sem jeito ou ciência, cuidamos para não ser de mais ninguém. J.M.N

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Sonetos em cor de saudade

Sobre a música Retrato em Branco e Preto,
Chico Buarque e Tom Jobim

As fotografias ficaram prontas. Nós na praia. Amanhecidos. Quase em ritmo de aparições – fantasmas atrevidos nesta vida tão desumana. Decididamente um universo paralelo. Não tenho um álbum para classificar as tais imagens. Ou argumentos para explicar as fontes de luz, motivos de enquadre ou sorrisos que estão ali eternizados como sonetos de poetas esquecidos. Não tenho, tampouco, amigos para mostrar o que passamos, para sentirem-se semi-vivos por não reconhecer aquela tal felicidade estampada sobre todos os fundos, as paisagens à nossa disposição. Será uma festa nossa. Um encontro no silêncio de fotografia. As imagens paradas. O coração a mil. Todos os vasos e todos os poros dilatados em busca de capturar no ar desta mesma cidade que nos derrota, a proximidade da recente existência mútua. Por agora basta dizer que é teimosia este deixar de histórias vivas em molduras nada originais. As fotografias estão comigo. Não têm cópias. Há que se ouvir o som confuso daqueles dias nos chegando suaves, feito o vento que soprou primeiro em teus cabelos e me trouxe um cheiro morno, algo insistente e em tons de preto, sépia ou acalantos, o qual reconhecerei em qualquer um destes retratos. J.M.N

Para ler escutando...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

em respeito ao teu segredo

... decidi escrever mais estas linhas. que a dor do teu dia nos aproxime. tu ai neste semblante muito avexado, com coisas meias à porta de saída e eu aqui, risos maltratados no escuro dos meus bolsos. decidi que és minha ainda, como gertrudes que nem flores são, como gametas que se nos destinam espécie e males. e antevejo sorte neste desencontro, pois quando do amor, arrebatamos nossos filhos fictícios. já sabes: esperas são os ensaios do infinito e a porta escura ainda não nos foi aberta. ouso em nome disso aliterar minhas verdades: há encontros luminosos la em marte. depois do chiste, note que a tarde é uma espécie de matriz. que retoca o desdizer destes meus passos e apreende o então dos teus finais. cumpre dizer que o tiro foi com a intenção devida e minha esquina ainda dobra com tuas pernas. venho aqui para afanar tua identidade e finalmente ter com que me reconhecer. j.m.n

Excertos Terapêuticos XIV

Para aqueles que vêem sempre por aqui...

"Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia... como uma pobre lanterna que incendiou!"

Mário Quintana - Eu queria trazer-te uns versos muito lindos, "Quintana de Bolso" p. 59

Setembros

É como viver do avesso. A cada beijo o rumor da vida escolhida por ti (depois do que fiz) endurece o ar. Bem longe dos nossos quereres e mais além dos teus olhares, padeço. Não quero saber minha amada, das coisas eternas sem ti. A noite não cobre meus sonhos e acordo almejando teus lábios. O canto me diz que estou morto, mesmo que esteja errado. Não se esqueça do apreço, dos vícios de te querer, das bocas unidas em beijos, nas ruas vazias de luz e nossos caminhos noturnos na carruagem, ao som de tantos acordes gentis. E eu que vivo de amores, do avesso me encontro sem ti, atrás dos sóis de setembro que mais uma vez te verá ganhar os anos sem mim. J.M.N

Cinco razões para o perdão (V)

Era perdoável traí-la. Era um costume de antanho. Sua entrega em potes volumosos era prioridade apenas para ela. Fechava as pernas em torno dele, como um colar, adereço de corpo inteiro e bom gosto de se ir para o inferno. Mas ele a resguardava internamente com a mesma anomia obsequiosa de outros instantes. Aborreceu-se demais para um dia ser sozinha. Convicta que estava em parecer maior e mais forte, abotoou a camisa de forma errada. Sua roupa lhe caia bem de qualquer jeito. Mas naquele momento, ele teve a impressão de que alguma coisa ia mal do cerne de sua alma. A primeira pergunta foi ofensiva. A segunda devastadora. A terceira uma imprópria guerrilha. Colou tudo ao redor do pranto e saiu comovida com a certeza de que ele nunca encontraria alguém como ela. O sorriso dela, nascido no instante em que lhe deu as costas não foi além de dois ou três momentos de felicidade. E nestas memórias, lá estava aquele ser. Um homem amado em cujo rosto de desamparo via-se o amor voltar à raiz, atrasado em sentir, cumprindo a pena de causar tantos danos. Um pedaço do corpo adquirido no abraço, a metade da certeza de que fora feliz. J.M.N

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Nos encontraremos no fogo aceso da noite santa

Estou convencido da amplidão desta história. Nossa história. Cujos acordes descobertos no medo de nunca ter tido, incorporam a fala morta que é meu canto sem ti. Sinfonia desprotegida sem dissonantes. Cantatas nos lupanares de teus beijos. Mas só de lembrar me expando. Divirjo. Sou mais que muitos, um estranho. Tu me convencias de que eu era pouco. Logo depois eu te fazia descer até o teu raso e por lá passeávamos de mãos dadas. Eu de calças curtas e textos farrapos, tu em longos e sinecuras. Completando-nos. Minha roupa acostumou-se à tua rotina de estudos. Estava sempre atrás da porta, pronta para te buscar e trazer de volta pra casa. Alvenaria pouco protetora quando de nossas odes e tanques e ataques. Tinha um pacto aberto de não deixar espaços, de não cruzar esperanças. E vinhas louca, despida, acrescida de prados e estepes, de ventos e mares. Tingida no rosa do amor de carne. E eu assoprava, feito a compressão da cabine, feito o urro do touro ferido. De capa em punho me domavas, dobravas minhas vértebras até o fim. Era teu, por conseguinte, nulo. Era tudo o que querias e podias ter. E quando aconteceu de nunca mais me deixar possuído, tua nervura açoitou nossa vida e em cantos opostos procuramos a descida, rumo aos desencantos, em frente aos suores mais anis. Lembro com força de tua mão sobre minha arquitetura e de tuas entranhas tragando-me para teu útero, em cujas paredes queria aderir como um feto, em cujo descobrimento quis escrever – eu te amo. J.M.N.

Para acompanhar a leitura...

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Cinco razões para o perdão (IV)

Não foi intrigante. Não foi abissal. Foi uma ruptura e tão somente. Regada a maledicências, projeções e um horror de fingimentos de asco e repulsa. Esteve morta por uns minutos e logo surgiu ilhada. Intrafegável na zona morta que era sua estatura, sua propriedade das coisas do submundo. Uma vilã imperdoável. Apertava os punhos para guardar suas violências e disparava contra os olhos uma carga desmedida. Um consórcio de verbos e imposições que bem poderiam ser para si mesma. Mesmo dura, era bela. Já que não havia bibliotecas em suas palavras, acrescentou que tinha nojo. Fez cara de nojo. Mas saiu do apartamento pronta para retocar a maquiagem como se nenhuma revolta molecular pudesse corromper sua insanidade. J.M.N

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Se quiseres morarei nos teus segundos

Acho que tenho te esperado no lugar errado. Acho que o endereço foi-se apagando com o suor do trabalho que dizimou o guardanapo onde escreveste todas as informações importantes sobre ti – a história dos teus camafeus em uma linha, o presságio ocorrido em teu sono escasso, nome próprio (sussurro e grito) e a primeira mentira que me contaste: achavas-me bonito.Talvez o efeito da água mágica que debitaste em minha conta.

Era possível esquecer tudo naquela noite, menos tua presença. E quando vi estava novamente entrando em tua memória e avisando para não me esqueceres. Te chamei por um apelido único, cujo dizer te causava graça, te fazia rir. Testemunhei tantas coisas incríveis de tua história feminina, que pensava estar sonhando ao te ouvir dizer, estou precisando refazer meu cabelo.

Teu convite à companhia das manhãs era a prórpia certeza de que nunca beleza alguma, superaria te ver arrumando a mesa para o nosso café. O que fazias com displicência e enredos sonoros que só tu entendias, passou a ser minha imagem feminina mais perfeita. O impressionismo vivo de tuas formas escandalosamente desejadas. Dei-te este nome nosso, especial, pois era impossível deixar de notar tuas pernas obstinadas a tornarem-se minhas peças de anatomia preferidas.

Como tudo em ti, sumiste. Eu dei razões. Fui isso que chamam… estúpido. Fico de olho naquilo que me resta teu, esperando que restem coisas minhas com que ocupes um mísero segundo do teu dia. Absurdamente, são estes os momentos mais extensos, mais demorados e íntimos. Mais significativos. Quero morar nos teus segundos, então. E quem sabe um dia, possa te doar uma ou duas horas de minhas memórias mais corpóreas, mais trançadas em noites de pertencimento. J.M.N

Para acompanhar a leitura...

[...]

Para além de Ceuta com seus dois céus e as histórias de conquista e coragem, partamos. Os olhos desabrigados, falindo em desventuras e coisas pontiagudas. Os barcos ao longe me lembram o velho Amazonas e suas trilhas d’água. Saudades dos portos conhecidos e dos desconhecidos caminhos a que pertenço. Se vou adiante atrevo-me num mundo que nunca me quis e se ficar, posso até esquecer de onde vim. Qualquer vento, por favor! É um pedido justo já que estou no limite. Ela voltou com água e docinhos estranhos. Deu-me um beijo e segurou a minha mão, Vamos? Me disse lenta. Eu fui. Ao longe, no outro lado dos estranhamentos, Gibraltar e a pungente existência dos amores e medos. Ainda tinha a certeza do amanhã no entrelaçar de mãos. Há terras que ainda ficarão desconhecidas e coisas em mim que nunca mais deixarão de existir. Como ela. J.M.N

Josés

Sou dentre eles o quarto.
Herdeiro inaudito das tramas,
das mansas, das duras. Andanças.
Daquelas em cuja esperança
dobrou-se o acorde dos sins.
Sou, dentre os mesmos, estranho.
Dentre os mortos o enfim.
Nomeado em alcunha extremada
e como versos, rimando as espécies,
repito um nome entrementes findo
e presente,
pois se os corpos extinguiram-se
quase santos,
o nome perdura semente. J.M.N

Cinco razões para o perdão (III)

Tornou-se viúva de si mesma. E respondeu ao pobre moço que nunca mais. Era perfeita para estiagens e desertos, pois dimensionada nas profundidades dos mares Cáspios (nela havia mais de um). Queria que ele encontrasse as tais palavras para tatuar-lhe a perna, mas encontrou o apelido que a tornava entregue e desprevenida. Sua vontade de carinhos abandonada, jazia esgotada nos problemas de sua mãe. Santa criatura que lhe deu vida. E nada mais. Estudava direito e economia como se fosse uma tábua de salvação. Esqueceu-se que animais assim, cumprem a solidão ao lado dos que ninguém jamais amou. J.M.N

sábado, 12 de setembro de 2009

O corpo é um animal sedento

"Se entornaste a nossa sorte pelo chão
se na bagunça do teu coração
meu sangue errou de veia e se perdeu"

Chico Buarque - Eu te amo

Andava com as víceras no monastério. Reclusas e abatidas com a distância do veneno. O que não mata pode ensinar uma lição, ou pode criar um hábito tão caro que consuma todos os recursos, a homeostase do engenho humano; e se volte a si mesmo num ciclo avassalador de desejo e execuções. Ao encontrar-lhe a carne, o apetite era de décadas atrás. E viravam noites umedecidos. Estendendo-se felizes à criança agonizante que era a entrega. Tudo queriam... tudo tinham... tudo perderam. Estas linhas se conformam nas sobras do divertimento, no ocaso dos atentados que não foram reclamados pelos grupos rebeldes de sempre. Compactuam, estes escritos, com a anatomia descoberta cirurgicamente pelos contratempos. Em riste o grão que os devolveu à terra, perdura. Em delírio o esgar do pedido atendido. Da concessão de existirem-se, a despeito da idade ou da distância. Em torno de tudo, a compulsão desalojada de um mecanismo humano de carne e ossos e portões e velhacarias. O corpo pede a presença instantânea da morte. O olho, ao contrário, requer o longe da miragem que instigou a fome, que instituiu os passos, que se transformaram em galopes, que erradicaram a covardia, que cumpriram o pertencimento e culminaram nas certezas de eternidade.J.M.N

Cinco razões para o perdão (II)

Nunca amanheceu tão desencontrada e na bagunça da casa dele, achou o cheiro que o denunciou. Perguntou sobre as bromélias e ele, displicente, ordenou ao empregado que fosse ao florista comprar girassóis. Não estava para amarelos. O que não cabia naquela sua atitude era a farsa de estar presente, seu próprio modo de ser, naquele ato tão imprudente dele. Vetou sorrisos e cumpriu sentenças. Mas nos abraços, foi infinitamente melhor. E estava lá, feito uma luz que passava, mudando a sombra dele à medida que se ia. Percebeu de pronto que o teria para sempre. J.M.N

Cinco razões para o perdão (I)

Ela não consegue suar de tão nervosa. Usa uma faca para atacar minhas palavras e mata o tempo dos meus ouvidos dizendo coisas iguais às da semana anterior. Revolta e mentira, era tudo o que não se podia combinar. Ela guarda renúncias apenas para as coisas menos desiguais e sonhadas. Era como se fosse um casulo aquele sacrifício de existir sozinha pedindo remédios para sua dor de cabeça permanente. Engavetou os projetos e partilhou com todos os parentes as desventuras, desde sempre. Isso me aborrecia, mas eu rezava. E tinha o pai onipresente em cuja boca restava seu fim, em cujo desejo restava seu desespero. Nunca o perdoara pela bofetada; e sim, ela precisava como nunca de um litro de beijos apaixonados. J.M.N

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Despertar


   Erwin Blumenfeld - Véu Molhado, 1937

Vivia nalgum canto. Entrecortada. Arrumando os vasos com plantas ao acaso. Seu armário respirava pouco. Tinha história seu cheiro guardado e a nula cor de seu vestido de primavera. Andava doce, como se aquela vida, trabalho, horror, não fosse dela. Muitas vezes se deixava abandonada às vontades de seus gestos e supunha pátios onde as paredes a cercavam. E quando a potência de seu corpo multiplicava, calava os músculos e seus ecos férteis com esforço abnegado. A ira interna era sua maior qualidade. Constava no livro de endereços e anteriormente viveu num conjunto de apartamentos. Houve um tempo, existia a dois, ancorada em um gelo estaladiço. Pouco soube das moções de adeus e apenas naquela tarde - quando num presságio cumprimentou o olhar do outro - conheceu certas propriedades de sua alma. E procurou em cada canto do seu ser, notícia que fosse sobre aquela espécie de encanto. O silêncio anunciou-lhe novidade. Suas noites, enfim, seriam mais do que descanso. J.M.N

Excertos Terapêuticos XIII

"Sim, lá estava, men are men, os melhores homens muitas vezes se esquecem deste lugar-comum nas embrulhadas da condição humana. Quando se pensa que não é possível existir tanta miséria, sempre alguém mais sábio ou mais pérfido terá oportunidade de dizer que os homens são homens para o bem ou para o mal, geralmente para as duas coisas juntas, porque no dia-a-dia elas comumente se misturam"

Carlos Heitor Cony - Romance sem palavras, p. 97.

Depois das escolhas fatais

Quando tudo se desencontra e o piso deixa de cumprir sua função. Quando estamos à beira do abismo tentando lembrar os últimos e miseráveis anos daquele furor antigo. Quando justamente sozinhos assaltamos um outro indistinto – a plenos sopros de vida e loucura. Estamos distantes de tudo. Vasculhando as secas do peito, o deserto dos braços. A tentar descobrir o que nos foi subtraído. Como metade perdida. Desespero irrestrito. Olhos desencontrados que não reconhecem planícies, aproximam-se demasiadamente – perigosos. Uma espécie de sobrevida que assimila nostalgias, averigua impossibilidades e tenta se instalar infinita. Neste minuto (pois, comumente, não se passa mais que um minuto) a única força que nos impede o primitivo retorno do que nos aniquila, pode ser a frágil esperança de um sorriso. Ou quem sabe a certeza de que nunca deixaremos de retornar. J.M.N

Enquanto o riso não acontecia

O último riso ficou represado. Indistinto no passadiço iluminado de todos os seus outros atos finais. O tiro que lhe extinguiu não veio do inimigo. Veio do cano de quem lutou ao lado, vida-a-vida na entrega da batalha. Até no fim conseguiu dar sentido e graça à sua estatura. Parecia maior e mais decente que os demais. Não resvalou. Pediu para que ele, o dono do tiro, lhe entregasse as orquídeas e foi assim que arrumou sua partida. Silêncio e flores. Não sem razão todos choraram demoradamente e o assassino sentiu que ele próprio morrera em vida. Morte e orquídeas – outra forma de dizer.
Não! Ele jamais esqueceria. J.M.N

Além das despedidas

A sombra dura que me encobre é a derradeira. Passageira como a alegria que desposa minha solidão. Num ato nulo de entrega onipresente, descobri que havia um luto decorrente da videira no jardim. Um esgotar-se natural como nossa história. Como sua vida.

Logo que viu seu corpo morto algo estranho lhe aconteceu. Uma vontade de antes mesmo da existência superou a calma daqueles passos pesarosos e violou a tranqüilidade sofredora do local. Em seguida instalou-se o choro. Bem depois espancava a carne hibernada no caixão e desesperava em grunhidos de animal, o senhor não tinha o direito! Viva de novo, desgraçado!

A próxima lembrança que teve foi o teto branco. Um ventilador rodando tão cansado que os intervalos entre suas hélices reproduziam os avatares da última descida celeste. A terra prometida, sepultando-o, definitiva. Um filme de roteiro amador onde a única coisa que se entendia era que a história contada durante aqueles tão longos anos, não tinha começo ou fim.

No marasmo de sua condição enferma, seguiu mais uns minutos o rodopio do vento e perguntou no tom mais baixo que encontrou, afinal, onde está meu corpo quando preciso dele? Era importante sair dali e voltar à vida. J.M.N

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Control

Queria começar dizendo que este filme me lembra muitas coisas incrivelmente boas de minha história recente. Além das imagens, a história da banda Joy Division e de seu líder, Ian Curtis, tem servido de pano de fundo para muitos momentos incríveis pelos quais passei. Aviso, portanto, que esta indicação é totalmente devotada aos significados pessoais e mais, à certeza de que é uma história que vale à pena ser vista por quem vive ou viveu grandes paixões. Então, como disse Curtis: I let them use you for their own ends.

Já faz dois anos. Talvez a euforia tenha passado e todo o ouriço internacional em torno do filme Anton Corbijn tenha se dissipado.

O que ficou?

A obra - o sensacional Control.

Não importa que ninguém mais esteja falando a respeito. Afinal, aqui, as palavras são de ontem mesmo. Aqui a intenção é manter viva a força de coisas que se nos assaltam vez por outra e deixam aquelas marcas indeléveis que valem à pena dividir com outras pessoas (ao que pensamos).

O filme é de 2007, mas a atração de fãs e a manutenção do mito Joy Divison são coisas vivas, que independem do filme. Ainda hoje é impressionante ouvir a banda e sentir a força lírica e vibrante de suas canções. Sem dúvida, ao ver o filme, quem conhece a história do Joy Division e tem material sobre a banda, não deixará de notar a semelhança de Sam Riley, com Ian Curtis, o que confere mais peso à sua brilhante interpretação.

Temos a opinião de que Anton Corbijn era mesmo o cara mais adequado para fazer este filme, uma vez que foi fotógrafo quase oficial da banda durante a meteórica, porém marcante carreira, entre o final dos anos 70 e incío dos anos 80.

O clima sombrio e lírico, ora soturno, ora de singeleza devastadora de Control, atualizam as especulações sobre a personalidade de Ian Curtis, apesar de deixar os fãs com apenas uma visão da história, já que o filme foi baseado no livro de sua viúva Débora Curtis, no filme interpretada magistralmente por Samantha Morton.

Um dos destaques é a cena em que o Joy Division canta no programa de TV de Tony Wilson, cena perfeitamente reproduzida, especialmente por Riley. Outros pontos altos do filme são: a entrevista em que Annik Honoré conhece Ian Curtis, momento que define muitos pontos da espiral de paixão e culpa em Ian se lança, o que, junto com a epilepsia representa, para alguns biógrafos oficias e fãs, o pano de fundo para a tragédia do suicídio.

Além de tudo isso, podemos ouvir de maneira contextual, as fantásticas canções do Joy Division e experimentar, mesmo que por duas horas e no conforto de nossas residências, a intesidade das performances de Ian Curtis e a força avassaladora de seus versos, tal como em Love will tear us apart:

When the routine bites hard
And ambitions are low
And the resentment rides high
But emotions wont grow
And were changing our ways,
Taking different roads
Then love, love will tear us apart again

Como fã, penso que a melhor coisa de Control é a possibilidade de colocar todos os rostos desta incrível história de pureza e transformação, de criatividade e lirismo que foi a vida e a obra de Curtis e do Joy Division, num mesmo pano de fundo, em cenários conhecidos porém não visitados os quais, na película de Corbijn, ganham contornos belíssimos em preto e branco. Lembrando que como no jogo de luzes e texturas do cinema, há sempre uma nova nuance a ser descortinada. J.M.N

Trailer...

Shadowplay...

O clássico... Love will tear us apart

Excertos Terapêuticos XII

Te perdôo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdôo
Por pedires perdão
Por me amares demais

[...] Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair

Chico Buarque - Mil perdões

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Aos olhos de quem?

Ontem eu a encontrei. No mesmo lugar em que costumava deixá-la para as atividades noturnas. As luzes muito fortes a desarrumar meus olhos, por um minuto, fizeram a esquina parecer Saigon no meio da insanidade da guerra. Apesar de nunca ter estado lá. Um cheiro de pólvora. Ela se movimentava feito aquilo que eu sabia possível ser ela. Uma dança estranha em meio aos desconhecidos. E o cheiro reatou nossos laços. O gosto sorrateiro daquelas noites. Ela estava lá. Serpenteando na multidão desavisada e eu enxergava seus passos e vislumbrava sua intriga e temia pelos desconhecidos que a encontrassem naquela noite, onde ela, especialmente vestida num tom de níquel e vilania, tornava-se o epicentro dos abalos, o vendaval solto à procura dos céus nublados. Talvez fosse apenas o vício me vencendo e exigindo um destino. Talvez fosse a certeza de sabê-la através do que eu próprio sentia e era. J.M.N

Ela não tinha um codinome

Para a "Preá", que leu minhas primeiras linhas
no verão esquisito de 92.
Com carinho e amizade sempre.

Demorei bastante tempo para me refazer daquele susto. A conversa que começara risonha descambou para um silêncio esculpido em angústia, suores e tentativas de agrado. Mas já não éramos nós. De um lado o mundo descortinado em amor alheio, de outro a irremediável invasão de um mundo em dois. Então é isso, fomos até o fim, ela me disse. E eu de amigo passei a assassino. Queria cometer aquele ato, com dolo, de maneira hedionda, com a intranqüilidade de quem tem mais coisas a dizer diante de surpresas assim. É preciso um tipo de amor específico para cumprir a promessa de compreender as coisas que mais doem e sempre dispensar um sorriso quanto se morre por dentro. Assim era. Estivemos sempre num descompasso. Enquanto um queria o mundo, o outro queria a carne. E foi ela quem primeiro espreitou minhas linhas. Foi com ela que aprendi a intimidade, a confiança. Naquele início de década, as coisas eram mais rápidas e avassaladoras que agora e nunca parei para pensar em quais circunstâncias nos deixamos atirados aos corners, como combatentes num duelo por um prêmio que jamais viria. Ela não tinha sido chamada daquele jeito por ninguém antes de mim. Seu codinome era meu, unicamente. Era um nome de bicho, atualmente inutilizável, talvez em desacordo com suas tantas qualidades. Nunca lhe perguntei se pertenceu a outrem daquele jeito. Quando naquele dia, ela me disse que se entregara, em minha ingenuidade de adolescente rebelde, afirmei raivoso, que jamais haveria de sentir saudades e decidi escapar antes que houvesse razão para mágoas. Antes que meus golpes fossem desferidos com a fúria cega de quem ficou numa paragem no meio do caminho. Este momento nos distanciou para sempre e agora, com a idade chegando, sinto falta de ligar-lhe no meio da tarde como fazia, evocando o codinome antigo, dando a impressão de que podemos restituir o passado apenas por devolver à boca, tramas e nomes de que jamais esquecemos. J.M.N

Belém 14.09.2000

Submerso retorno

"Os segredos do submarino tinham tal força,
que passavam a se apagar até no íntimo de seu guardião."

João Gilberto Noll - Acenos e Afagos

Continuo aqui evocando os poetas mortos para resistir comigo a mais uma noite. Continuo procurando malabares para criar alegrias, quando a medida que tinha para saber-me existindo era teu sorriso ao chegar em casa. E nada nunca se apresenta fidedigno, nada se encaixa naqueles teus sorrisos de mundo relembrados. Ora estranho os lençóis enormes para meu pouco defunto, ora sangro porque as feridas ainda não prescreveram. É como um julgamento diário esta saudade. É como a rota dos emigrados arrependidos. Não há promessas, não há recursos para extradições. E fico lá, empatado no aflitivo oco da tua voz ausente, que me assalta nas gretas de minhas paredes, nos sulcos de minha escrivaninha, na cor das minhas letras. Fico aludido num choro que não anda, que não despenca e quanto mais condensa na garganta, mais me impede de atingir as escalas de liberdade das canções que mais gostavas de me ver cantando. Desejo drogas e paraísos para um novo esquecimento, mas a verdade é que jamais sairias, pois arraigada aos mais mortais sentimentos de filho, aos mais ridículos versos de amor, à burocracia republicana de meus porques. Estás ancorada na costa de meu país, a poucos quilômetros de minhas rotas de fuga e sei que intervirás caso eu tente partir, porque ainda não me disseste tudo o que tens para dizer. A noite enorme é minha aurora, e parece que me contaminaste com as tais dores que te faziam pensar apenas em ti mesma. Volto sempre aos desenhos que deixaste, às cartas de amor e ao lema que só nós sabemos o que desarma. Não consumo fé ou crenças. Ando esperando que minha fisiologia se ajuste e tenho sempre a impressão de que estás por perto, pois quase nunca escrevo sem que desconhecidos me comentem ou se ponham à disposição. Sinto-me num escafandro, a pensar borboletas, como naquele filme recente. Gracias pela bebida, a vodka desfaz a lucidez destrutiva e vou desfalecendo encontrar Pessoa, Camões e quem mais estiver disposto a recobrar meus sentidos, meu sentido. Sigo escrevendo estas suadas linhas. Dormentes linhas. Pedindo para que teu sono chegue sempre abundante e denso como um buraco negro, onde as ondas de choque que nos colocaram em pontos extremos do universo não resistam e tenhas manhãs cuidadas e cortinas contra o sol do meio-dia, as únicas coisas que teria para te oferecer agora. J.M.N


Escutava esta música ao escrever o texto...

Das lembranças antecipadas

Um dia no futuro, sentaremos em nossas cadeiras de embalo para contar as horas da tarde e os primeiros sorrisos que dermos serão em homenagem àquele dia, muitos e muitos anos antes, quando brincávamos com nossos corpos abandonados ao sabor de nossas descobertas sobre nós mesmos, sobre nascimento e sobre a cor dos fogos de artifício, cujas explosões arquitetaram o mais bonito céu de nossas noites a dois. Mil anos não apagarão esta memória. Nesse dia, anos adiante, a música que buscaremos escutar estará gravada no tamborilar de nossos dedos, nos barulhos escassos que as paredes de nossa casa de inverno farão, no mosaico vivo das fotos antigas de nossas viagens. Nesse nosso alvorecer, apenas a calma dos embalos a nos conduzir. O mais leve toque de duas vidas encantadas e iluminadas por amores e pensamentos em comum. Claros reconhecimentos, como uma noite explodindo em fogos. J.M.N

Outra história de anteontem

Aqui estão tantas coisas que escrevi para ti. Tantas vírgulas que me fazem respirar nos momentos em que as lembranças saltam atônitas. As crônicas de minhas manhãs mudaram completamente. Não há barulho. Decisões precipitadas. Planos para aquela viagem de trabalho para o interior. Não há telefonemas de pedidos absurdos no meio das horas de labor. Por Deus, não há descanso. E mesmo as perturbações que causavas em nossa sanidade de cristal agora parecem tão menos inóspitas, pois casulos de tantos e intensos reencontros. Nunca te contei a tal história começada com os erros daquele dia estúpido e te vi fazer tantas obviedades e deteriorar tanto as memórias que apenas segui andando, cabeça em riste, olhando sabe-se lá que horizontes. Simplesmente andei adiante, esperando que um tiro ou poste me estancassem a caminhada e como nada disso aconteceu, continuo na estrada, sentindo saudade dos teus passos atropelados marcando a estrada ao meu lado. J.M.N

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Contentamento


     Gravura de Manoel de Barros

Este átomo que se expande e mata o tempo e o espaço é a simples idéia de não ter tido. Uma energia ultimada em potência incrível a impulsionar meus lábios para onde já havia esquecido e minhas mãos para onde as horas querem ir descansar. Eu espero com os cabelos arrumados para que os toque e vejas neste ato íntimo e exasperado um segundo de reencontro. Tua crença pênsil em nossas madrugadas ainda existe? Até hoje desacelero os passos para te encontrar em momentos exatos e vim de longe a correr e correr para te achar ao pé da escada, descendo de qualquer ponto celeste, irretocável como os algodões em flor. E digo estas coisas por saber-me restrito, sem muitos substantivos, sem adereços sequer e a escorregar entre as ruas decantadas da minha saudade, vendo as telhas azuis dos prédios baixos, dá-me por dentro uma alegria pequena e algo dolorida, cuja razão de existir foi nosso encontro. Esta cidade parece tão distante de mim agora, e mesmo assim, tenho vontade de correr ainda mais e chegar cansado e atordoado pela distância, para finalmente repousar meu corpo e deitar meu canto em tuas mãos incrivelmente macias. J.M.N

Euforia

Vem e reina sobre mim. A pedra demarca o longe e a grama, um céu no chão. Invertidos os papéis do firmamento, sinto-me livre e te libertas também.

A lua tesa espera um toque e todo o resto depende disso. Entrarei nas tuas pegadas, abrirei o rés do teu caminho. Aurora é circo. Atalho, passo.

Oculta meu pior pecado com tuas sinfonias e declama os versos proibidos de meu pai: o silêncio em minha morte, o fecho de meus umbrais, o triste fim de sua escritura. Ensina-o que o corpo vai, mas fica o nome e é disso que eu preciso. Do seu não estar nomeado. Fanfarras em anil, folclores de danças e cantos indigentes recontam meus votos. Estou abençoado.

Escrevo plumas e aforismos enquanto guardo minhas prendas para quando te encontrar. Dê-me panelas e cozinharei para ti. Dê-me lanternas e acharei vaga-lumes. Peça-me silêncios e te trarei uma orquestra de helicônias vermelho-sangue.

Enquanto isso não vem, achegue-se aos meus hiatos. Todos eles têm caminhos traçados e esperanças de que as distâncias os abandonem. J.M.N