sexta-feira, 18 de maio de 2012

Onde estão os portos IV

 

no 18 de maio, para os trabalhadores de saúde mental

 

Eu tenho uma pedra atravessada no peito. A pequena rocha me irmana com os índios que fizeram Potossí sangrar prata durante mais de um século. Quem me conhece pouco acredita piamente que a minha figura resume-se a este corpo esquálido e essas roupas noturnosas. Dizem que não tenho mais avessos. Que a pedra me chupou os interiores. Que a pedra me tomou a forma do rosto e que virou meu sobrenome e lugar. Acham que quem está no meio do caminho é a pedra e não eu. Que ela acabou com o amor e extraiu algo vital que morava no meu olhar. Para o bem de si mesmos não adivinham em minhas entranhas as suas próprias devoções. Desembaralham-se dos pecados ofertando-me seus préstimos, sua moral e acima de tudo seu perdão. Mas a minha residência final será sempre o esquecimento, pois sou sumo restado dos ódios, soma de planos fracassados, poeira de traições amorosas. Querem saber o que quero hoje? Dinheiro, e um pouco de silêncio onde eu possa matar a saudade da minha própria voz. WDC

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O que menos se entende sobre aquilo

Ah esta premissa de sofrer por amor. E tanto. Tão severamente que há no rigor dessa dor tanto mais de disciplina e inconsequência que de realidade ou desejo. Amor em si não dói. E, se nos opera, anestesia. E se nos esquarteja é apenas depois da morte. Da sua morte. Ou de uma deixa calada na cena. Após acabar o enredo e todos ficarem pasmos com o fim da trama. Quem chegou primeiro protagonizou as melhores falas, os versos, o frescor com que a história se desenrolou por sobre as peles. A fala demarcada de mais nada, senão alegria. Aquela folhagem espessa de antes da primavera varrer o que restou da outra estação, não cabe. Assim é que amar não compreende a podridão de vastos campos de folhas mortas. Amarelo sépia. O passado do amor apenas vem se convocado, pois quando acontece é naquele estado de intensidade e pressa. E tão depois de passar, seus rastros sussurram descontos aos maus pagos deixados. Há lugar para sombra. O sol da desgraça ou o breu da solidão noturna desaparecem por uns instantes. Sequenciado nos secretos tomos de nossa história. O amor contrariado, ferido, oculto ou desgraçado, emerge. E se nos pega na segunda feira mais desastrada de nosso trabalho, quem sabe na última hora do prazo de entrega da mercadoria. O amor desacelera o passar do tempo e se encaixa. Enquadra tudo. E se deixa humildemente num dos cantos da casa. A casa corpo que o serviu. A casa teto que o salvou da chuva. A casa abrigo que dele depende para continuar a proteção, contra todo o mal do mundo. Contra todas as vezes que usamos o seu nome para chamar um ódio qualquer. J.M.N.