Os clérigos
contaram suas histórias. Estranhamento e fuga. Deus era mais próximo do que lhe
diziam, era o que achava. Estava nos seus erros, estava em seu pessimismo e em
sua sincera falta de alegria nas coisas mais simples do dia-a-dia. Aliás sua
convicção levou-lhe a todos os cantos do mundo, procurando a Deus. Procurando-se.
Seus limites. Suas imensidões. Seu homem como espelho procurava, a humanidade
que se enfrenta em abraços cada vez mais escassos. Foi-se pelas águas dos mares
e pelas dunas secas de muitos desertos. Não era bem um homem de crenças. Cria
na humanidade, todavia. Certa vez teve uma visão e a seguiu durante muitos e
muitos anos: alguém abandonado na chuvaera mais bonito do que véspera de Natal,
mais bonito do que um barco minúsculo enfrentando o Pacífico. Uma pessoa
que se molha na natureza insuperável desse mundo é matéria de vida, uma
escultura preciosa de se ver. Tudo é silêncio ao redor. Tudo está ao seu
dispor. Não há a mediocridade da classe média, a mesquinhez dos abastados, não
há classes. Há a pessoa em si. Sozinha em si. Lavada pela única água que abençoa.
Cheirava à divindade que perdemos em nossas bocas humanas nas falas do tempo. Criando
limites, enxertando pesares quando tudo deveria ser um dia após o outro.
Cintilava a pessoa na chuva que ele viu e amou instantaneamente. Não porque
fora abandonada aquela pessoa que ele viu sozinha na chuva, mas por que era
perfeita. Seguia pela fina estrada da existência mesmo sem ter ninguém por si.
Encharcado de tanta vida que lhe foi impossível sentir-se diminuído pela
imagem. E assim virou o líquido que encimava a pessoa deixada à própria sorte.
Molhou-se de tanto sentir que era necessário estar disponível para todos em
todos os lugares. Dia desses, foi o que me disseram, ele foi visto enchendo
rios em províncias do sul. Choveu-se sobre mil pessoas que não bebiam águas do
céu havia anos. Encontrou-se. J.M.N.
Se ao menos você soubesse de onde eu venho, por
quais desertos passei. Se houvesse a mais remota chance de você estar em meus
sonhos e acompanhar meus medos mais hediondos sem a certeza dos que acham que a
alegria é a única decisão possível. Que ao cabo de contas, é uma decisão, enfim.
Se fosse viável a você chorar nos primeiros acordes de “sonata ao luar” e ficar
realmente chateada ao fim de “eles não usam black tie”, imaginando o que deu
errado com o romantismo. Talvez eu pudesse enviar um sorriso, uma rosa, uma
página arrancada do livro que mais gosto – em cujo título tem a palavra “assassinada”
– fazer um chá e sentar sob o sol torturante de Rabat numa de nossas viagens
imaginárias. Mas você insiste em dizer a todos que há mais fraqueza que
introspecção no meu mundo e que já não suporta mais falar comigo ou me chamar
de amigo, pois não quer ninguém de cabeça baixa ao seu lado em fotografias, nas
festas de fim de ano. Minha genealogia lhe incomoda. O fato de eu ser sempre
mais amável do que rude. Minha resposta macia diante de tanta aspereza. Eu não
morri. Apesar de já ter quisto imensamente. E se fiquei por aqui foi por conta
de outras tantas delicadezas que encontrei no fundo da minha mais desprovida
solidão. Saiba: não desejei tantos sensores de realidade fixados em minha pele,
nos meus olhos, nos meus dedos que teimam em segurar a pena e escrever
independentemente do que eu sinto de mais sofrido e escuro. Se você ao menos
pudesse sentir esse vento nos cabelos, e conseguisse na suavidade do tempo que
passa enquanto o vento sopra, anular a carga de raiva que nutre por não me
entender, saiba... A liberdade que você declara teria a mínima chance de
acontecer e ficar. As coisas não seriam assim tão desagradáveis e seu amor eu
entenderia como a única coisa possível desde que nos conhecemos, não essa sobra
de uma conta que não fecha jamais. Tenho menos esperança na alegria porque
dentro dela sou destinado a estar mais longe de mim e se isso me faz estranho,
bem, devo dizer que a mim, isso serviu como vida, serviu como aquilo que faz
com que os momentos alegres sejam ainda mais especiais. J.M.N.
Eis que algo novo começa. Alguns o chamam de ano. Eu de
tempo. Assim genericamente. “Começa um novo tempo”. E eu estou nele, mesmo que
vindo de outrora, de um século, de uma dúzia de mortes e pendências. Meu
cristal duradouro agora encandece. Um recomeço. Reinventar-me. Tudo em mim é revirar,
despossuir. Meter-me onde não sou chamado, onde as pessoas se consomem, onde as
línguas não têm importância, pois todo dito se compreende. O cerne dessa coisa coletiva
e ancestral que descobri há muito e participa intensamente de minha experiência
de eternidade. Essa coisa que chamo corpo. Tempo inaugurado frente ao tempo
contínuo que me antecipa e certamente me superará. E depois voltará à
inexistência quando tudo vier a ser a mesma coisa. Estou destinado a esta alma.
A mesma que desandei em Granada, a mesma que venceu as Púnicas e a mesmíssima
que varreu do meu dicionário a palavra amor, só de prosa. Sou essa mulher
escondida entre os dedos do autor. Na frase mais jocosa e entregue que se pode
escrever. Sou destinada a feder e implorar por beijos e cetins e sim, sou
daquelas que comem mal para manter as curvas e manter segredos entre os jejuns.
Sou igualmente o homem perdido em espinhos, cujo abandono nunca foi bem
interpretado e a sandice de ser perfeito o levou aos céus; deu-lhe uma
humanidade sórdida e carente para redimir. Sou aquela criança no banco de trás
quando ocorreu o acidente. Sem cadeirinhas ergonômicas, sem cintos de segurança
ou a asa de uma mãe protetora a me segurar. Varei o vidro da frente. Estatelado
no meio fio só restou chorar por mim. Eu que morri de abandono, de susto, de
fome. Eu que fui conduzido à cova enrolado numa rede com os olhos abertos em
uma procissão silenciosa no sertão do Brasil – única criatura com pureza
suficiente para olhar nos olhos de Deus. Eu meliante. Déspota. Escritor e poeta
com endívia nas palavras e feltros no lugar de dormir. Sou essa entidade
impúbere e crente. Ridícula, falando sobre amores e fomes. J.M.N.