terça-feira, 30 de junho de 2009

Antinome

Cobiçava demais aquelas tuas pernas. De manhã pareciam rolos de mogno bem torneados e envernizadas pelo meu toque denso, oleoso. As marcas que te faziam uma só, sem repetição. Como hei de chamar agora minha loucura? Como hei de nomear desafetos em linguagem de amor e culpa? Agitava o ar do quarto com violência, segurando teus braços, aos gritos dizendo que não era eu, que não podíamos chegar aquelas vias de fato. Mentindo sobre meu ciúme desenfrado. Ainda pensas estar ilesa à toda sorte que nos concluiu? Sei que não passas na minha rua, que não guardaste os presentes, pois as lembranças te atordoam demasiadamente nas manhãs de domingo e seria inviável guardar em teu armário estes pingentes de um passado bruto. Minhas roupas retornadas apodrecem, envenrgonham-se de não mais poder cobrir minhas vergonhas. Lembro-te apenas que foi um passado entregue, como um megaton eclodido. Como chamarei minhas dúvidas de existir e permitir ser a via de retorno para tuas desgraças antigas? Como pronunciarás a renúncia mentida que te fazia só minha e do mundo inteiro? Compreenda: te chamei de todas as formas, te dei o máximo de mim, mas precisava de um horizonte conhecido, de uma Vitória a apontar conhecidas praias; conheces minhas piores defesas, minhas mais abomináveis virtudes; e meus delírios, meus sonhos e minha entrega; o gozo eterno que foram aqueles anos aturdidos - barulho, nervura e catástrofe. Que nome darei para aquilo que me falta agora? J.M.N

Mentiras de junho

Estava escrito assim: Lembra do dia em que eu parti? Nenhuma estrada foi mais doída do que aquela que te deixou para trás.
Ler um milhão de vezes essas coisas deixadas um ano antes era um ritual, uma repetição consagrada. Como eram já de praxe as súplicas silenciosas pelo reencontro. O telefone que toca sem parar e devasta as esperanças, uma a uma – uma multidão de vozes que nada me dizem ou asseguram.
Rosas mal cuidadas que definham e o gosto já quase neutro do último beijo. Duzentos e vinte nove dias sem qualquer contato e de repente o anúncio da volta.
À frente de todos os sentimentos, a lacuna das coisas silenciadas à partida. O jantar premeditado e não cumprido. Os olhos trocados. As despedidas mal feitas e todas aquelas coisas ligadas aos dois por versos Pessoanos de intimidade duvidosa. Um sem fim de dissabores e noites mal dormidas, mas ainda assim, a soberania do desejo noturno e da aspereza da defesa de corações que batem, batem.
Amores indômitos como as loucas travessias marítimas de séculos antes. A languidez da entrega nas madrugadas sinistras da velha cidade. A cama desabada e entregue ao chão, como um aviso do que seria necessário para que vivêssemos em paz – uma queda e algo que nos aparasse. Um passeio em forma de oito. Um infinito sistêmico em completude e revolta. Mais que isso não poderia ser, dada a infalibilidade da despedida.
Um mês inteiro inventado.
Uma parábola cheia de significados dispersos e o tão imenso qualquer coisa impondo suas sutilezas mais severas e frias. Uns medos tortos, feito o chumbo estilhaçado de tiros. Alma fatigada. Ela que nem sequer tirou a roupa e encheu suas malas com raiva e desespero. Meu tecido emprestado. Carne que não cheira a mais nada.
Mas o que vale é o lirismo. O sentimento todo das coisas a dois. Eu não queria ter feito aquilo. Poderíamos ter dormido juntos e só. Perdoe-me. Foge comigo?
Já não é pouca a distância. O tempo consumiu os relógios que eu tinha e agora meço o tempo com ampulhetas. A precisão da areia descortina novos ritmos.
Oi, mais uma vez. Penso sempre em ti. A saudade é como um abismo pelágico. Nem sempre sinto a tristeza. Ela é maior quando deito e não levanto. Durmo sempre de prontidão para o caso de voltares.
Conheço a cidade dela. Tem uma lagoa chamada Conceição. Nos barcos que vejo nela, estão aportadas as coisas que eu nunca lhe disse por preguiça ou combustão. Também tens responsabilidades não assumidas e esta certeza me dá apenas tristeza, pois agora que não estás aqui, não posso te convencer de mais nada.
As cartas que escrevi desde aqueles tempos são papiros hoje em dia.
Até quando vai haver desilusão?
Essas perguntas vão para ti.
Amor nem sempre é seguro. Mas e eu com isso?
Quando descobri que não estavas mais lá, já era tarde e o elevador partira. Fiquei num interposto, descrente que existia, mas confirmei essa dor depois que vi os meus, reunidos, alegremente perguntando por ti e ao confirmar que partiste seus olhares eram mortos, repugnantes como quisessem dizer que sabiam.
Deste outro lado no mundo, as pessoas são menores e pensam mais. Tenho medos ainda sobre as coisas da escuridão. Nunca troquei a boca com que te beijei e caso queiras saber é o mesmo gosto da minha água, o teu beijo.
Amor! Aposto que nunca viste uma lágrima dourada!
As embarcações não tardam. A lagoa Conceição é feita de ti também.
A padaria que fica perto da tua casa tem os melhores quitutes. Os amanheceres seriam melhores se fossem adoçados com aquelas coisas que vendem lá.
Amor! Já vou de viajem, faz ternuras no meu sono?
Tantas coisas a pedir. Tantas outras para esquecer.
Lembro da tua roupa íntima e do cheiro das tuas carnes escondidas. Não fique envergonhada, tenho apenas memória, só isso. A tua camisola não tive coragem de entregar.
Quero um instante que seja nos entremeios das tuas pernas. Não diria nada senão movimentos erráticos e apaixonados. Um furor que aumentaria caso dissesses os contumazes nãos. Nada mais que brisa. Uma morte pequena e derradeira. Não queria estar de volta. Poderias me consumir inteiro para não sobrar nada para esta solidão desconcertante.
Amor eu menti. Falei que iria dizer sempre a verdade. Não foi assim. Apesar disso confessei minha traição. As mulheres querem coisas acabadas e fotografias destruídas. Você mais que todas.
Por tantas coisas que eu não sei responder ao certo. Pelas pequenas porções de vida que tive quando me lembrei de nós. Pelas idéias de eternidade. Minha verdade é tua. Minha saudade se arrepende de não ter iniciado antes, enquanto estavas lá para colocar tudo que me escapa agora de volta em meu peito. J.M.N

O que sei quando em ti

Nas dobras do querer
meus dedos tocam tuas ilhas
teus morros prometidos, brancos
a tez desse desejo intenso

São montinhos de palma de mão
teus suspiros a tufar meu tato
a despir meus vícios
de voltar dormindo aos teus braços

E encantas meus sentidos
com tuas formas nuas que me consomem
teu vale umedecido e entreaberto
chorando o choro idílico, transparente

Volto do dentro com a derme feliz
afoito no toque, deserto de mim
a recuperar oxigênio, sangue, vermelho
um ser disperso, desaguado em ti. J.M.N

domingo, 28 de junho de 2009

[...]

Ficaria mais tranqüilo se soubesses que naquele outro universo a coisa mais familiar era a lembrança recente de ter desejado estar contigo vendo as flores que só nascem nos campos de onde vens.

J.M.N

Encontro

A primeira vez em que pensei naquelas coisas de eternidade foi quando estive com ela no cais da cidade. Era tarde da noite e tive a estranha certeza de que aquele momento me contaria segredos por todos os anos que eu vivesse, porque mesmo com toda a vida para pensar em outras noites, aquela permaneceria, como se fosse um lembrete permanente do que estava por vir e, no entanto, jamais chegou. J.M.N

A flor que resta

Arde um tanto esta distância
Arde ainda, a pele fina
couro que insiste

Eu que sou
sem pele alguma
de tantas maneiras

Eu que lasso
busco a flor
ao pé da cama

Flor que resta
Simplesmente
Flor que fica

Sentido que táctil
Sente a vida
Vida inteira
Vida que nunca
Vida que sobra

Dor que ainda J.M.N

Impressão

O rio me trouxe tuas desculpas
Saudades das imagens de amor
Por trás das pérolas descobertas
O crime de tirar a vida, a concha morta

Amor demais, adunca a alma
Querer estar completo é muito duro
Olhos e mãos se manifestam inseguros
Minhas pálpebras já não impedem a tua entrada

Encontro em ti o que não tenho
Por isso espero que me componhas
Não sabendo o fim dos ditos loucos
Agigantam-se as linhas da nossa história

Meu amor é um algo que se inaugura
Talvez silêncios sejam íntimos desse amor
Verdades puras já não pretendo, irrestrito
Tampouco quero a desfaçatez de uma amargura

Vem, inaugura coisas que só sei de mentira
Deixa-te criar por entre minhas paredes
Amor demais, aventuras para a vida
Amor de menos, a solidão que cuide

Opondo-te aos males que me acometem, cura
A longilínea dor que me consome agora
No nosso teto, o cruzeiro em flor explícita
Guiará, infinito, a nossa mistura J.M.N

O herói mentido

Tu não me mataste, afinal.
Tolice de quem não estava pronta pra vencer... Eu não estava pronto para nada. Nem mesmo para dissimular minha alegria, ante tua derrota. Ou liberdade?
Caíste como previ.
Mesmo assim, maldita seja a tua resistência. Durou dois anos nossa batalha. O tratado de paz servirá de calço para o destino?
As feridas abertas incomodam é verdade. Mas, bem menos do que os arranhões secretos que, faço bem, escondo no escuro que é o mesmo da minha alma.
Muito pior que ser sozinho é ser multidão, enfiado num saco. Morto, por assim dizer, pelos próprios santinhos doentes que abandonam os andores e provocaram atentados sangrentos em nome de indulgências jamais conseguidas.
Como não tinha mais nada para batizar, ergui minha ira contra ti. Impus meus deuses, meus demônios. Sacrifiquei metros e metros de declarações de amor. De manhãs felizes. Em nome da única coisa que era inapropriada – aquilo que juramos não contar a ninguém.
É muito difícil ser a mão que mata. Pior ainda é ser a morre. Sem voz. Contrariada. Não poderia morrer antes de ti. Isso não. Muito menos por tuas mãos. Antes fosse por teu desvelo. Teu caminhar contrário. Abandonos tem deslumbre por calamidades.
Outonos cantados. Prisões de vento. Meus olhos atentos, já só dizem banalidades. Mas tenho a vitória recente, que me dá um nó na garganta e apazigua as inverdades sobre o meu bem-estar.
Talvez, afinal, nem tenha sido assim, tão vitorioso.
Destruí os quadros da sala, sabia?
O quarto, já não abriga meu sono.
Minha desgraça é que ainda sinto o teu peso. Tem textura esta ausência específica. Tua sombra ainda se amarra à minha e no fim de dois séculos de espera, ainda creio que és minha redenção.
Bebi toda a água-ardente que pude. Fiquei amarelo feito a apatia do engasgo e nada mais me resguarda da vida. Essa que talvez, já não tenha.
Tenho uma confissão a fazer...
Amei como ninguém queria. Como tu não querias. Aderi aos choros curtos para te dar espaço e acalmar tuas pequenices. Miudezas à parte, fui mais intenso. Comi as estrelas todas depois que elas pararam de brilhar.
E tu, o que fizeste?
De nada adiantou tua ternura, não é? Deixa que o resto se apaga. Pode ir que o espelho já me diz verdades absolutas e nestas embarco como que imitado, repetido.
É possível que me queiras ainda, lá pros lados da tua amargura. Mas é tarde de mais para continuar querendo, não é assim?
Continuo a confissão:
Ela me disse que eu tinha tudo, não consigo te ver assim – meu tudo. Malditas confissões terceirizadas. Sempre acredita em tudo o que ouves. Ainda mais, a meu respeito.
Acreditou na traição. Na viagem inventada. Nas flores para o velório da tua mãe. No enfeite de ouro que viera da Bélgica. Eu acreditei também. Inventei tão bem que nem soube separar as ilusões. Por preguiça. Por escárnio.
Tá bom, nada mais para confessar, nem mesmo a minha loucura.
Ainda tenho uma vitória.
Além disso, nada mais.
Andaimes incertos.
O trabalho vai mal. Minhas dores de coluna voltaram. Os excertos marcados a lápis se apagaram. Nosso livro acabou. Nem romance, nem novela. Minha hóstia não se consagrou. Não sou santo. Não comungo das tuas idéias. Minto por que não me reconheço sem ti. Fiquei mais paralítico. Tenho febres inexplicáveis. O dormir sozinho agora me assalta e nem o frio me motiva a busca pelo cobertor.
É possível que te peça para voltar. Não sei se compro um par de chinelos ou uma TV semi-usada. Meu diabetes aumentou horrores. Como eu dizia: talvez nem seja assim tão vitorioso e tu, quem sabe, poderia aparecer um dia desses, só para acrescentar ilusões ao desconcerto que tua ausência me causa. J.M.N

sábado, 27 de junho de 2009

Sentimentalidades II

Hoje acordei sem passos. Esqueci-os durante o sono. É possível que eles andem para além da minha vontade. Atrás deles, estão os teus. Como sempre enviesados de saudades. Aqui já não estás. Eu não posso te responder sobre o descuido de transcrever palavras inegáveis. Achas que a carne queimada foi muito grave? Só queria saber daquelas histórias de eternidade e, quem sabe, acordar falando em mitos e dilúvios. Minha nostalgia é aquilo que não me cabe. Se ainda gostas dos dias nublados então senta aqui, pois a tempestade já vem.

Sentimentalidades I

Toda a gente se acha em desespero. Quanto mais eu que nem sequer envelheço. Meus dias temem a partida do amor. Aquilo que mais queria era despistar esse incômodo que é sofrer. Minhas pernas doem ao andar. Caso não saibas, eu me encontro a dois passos do fim. Morrer é a única força que me resta. De outras circunstâncias também fiz a minha vida. Para além dos meridianos, é que levei minha jornada. Queria mesmo um Martini sem gelo, a rosa que colheste anteontem e a meia luz da tua sala de estar. Tango e amor podiam vir depois. J.M.N

terça-feira, 23 de junho de 2009

Entrega

É um ato desmedido esse de se entregar às palavras. De se doar como se fosse um risco de vida perder a frase em que revelam suas intenções e vontades mais secretas. A tessitura das coisas perdidas e amadas, necessárias ou quistas a formular um tear interminável e pungente. Exercício de vida e solidão. Não duvido jamais de uma morte iminente e tampouco do desespero das separações de amor ainda latente, impregnante, vivo e acometido de culpas, versos e noites incandescentes. Preparo mais uma entrega. A dracma perdida sob a qual empenhei minhas virtudes, escapa-me das mãos, são retomadas de mim. Meu sangue quente e minha história de vida vermelhos e circulantes em minhas veias. Cortejo delicadamente estas pequenas entidades que dizem, que são, que me libertam. Estou acordado, entrementes sonhando com um derradeiro desatino, onde as metades que me compõem se encontram no meio do mundo e reinauguram minhas verdades mais sofridas, como cantos suados, lambaris priscando e o silêncio de um sono-esperança a acomodar meu corpo e resumir esses dias malditos em linhas e linhas de vento e saudade. J.M.N

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A Valsa com Bashir

Quando minha prima/irmã Clara Matos me convidou para assistir este filme, não imaginava que sairia do cinema em estado de enlevo, arrebatado.

Ari Folman, um cineasta israelense cuja história de vida se enlaça com a do conflito entre Israel e Líbano nos anos 80, nos presenteia com uma história biográfica e documental envolvente e delicadamente transformada em animação 3D. As imagens são vivas e loqüazes, montadas em planos sobrepostos e texturas ora nauseantes, ora delicadas, mas sempre realistas e melancólicas, elevando A valsa com Bashir à categoria de filmes biográficos romanceados, quase como a Sangue Frio de Truman Capote, como romance de não-ficção.

O núcleo da história são os massacres de Sabra e Shatila em 1982, dos quais o cineasta e roteirista Folman, foi testemunha ocular, servindo como soldado no exército israelense aos 19 anos. A partir de uma conversa com um amigo desta época, Folman passa a revisitar a memória e buscar com outros colegas de exército, a complementação para as imagens e fatos vividos que lhe atormentam a mais de 25 anos. O resultado disso é delicadeza e força narrativa, engajamento político e social, transcritos em imagens fabulosamente desenhadas e movimentadas à perfeição. A seqüência inicial dos vinte e seis cães correndo para matar o amigo de Folman - em sonho - é sensacional.

Ao retomar o contato com pessoas e memórias da época dos massacres, o narrador chega a concluir que o exército israelita teve participação direta nos massacres e transfigura esse horror em sequências que, definitivamente, devem entrar para a história da animação de longa metragem em 3D, mostrando ainda que as defesas erigidas por sua mente protegeram-no das reminiscências dolorosas, mas agora precisam ser superadas e sublimadas. O caminho que Folman tomou para fazê-lo, mostra, antes de tudo, que arte e psique têm uma ligação que em muito transcende o usual e o utilitário, tornando-se muitas vezes complemento para o devir da sanidade.

Aclamado pela crítica e pelo público, A valsa com Bashir ganhou o globo de ouro e a história contada por Folman ganhou um enquadre sublime, elucidativo e poético, tenebroso e admoestador, desses que só podem mesmo resultar da fabulosa interação entre sofrimento e criatividade.J.M.N

 

Vou tirar você desse lugar - Tributo a Odair José

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Odair José é sensacional. Ponto!
É isso ai. Está nas lojas (em Belém: na FOX Vídeo e Ná Figueiredo) o tributo Vou tirar você desse lugar com as pérolas máximas do cantor e compositor Odair José. Um deleite para quem é fã do cara e gosta de tributos; para aqueles que acreditam que músicas cafonas e "setentonas" ainda fazem a diferença e, sobretudo, para aqueles que, como eu, gostam mesmo é de canções de amor rasgadas, trabalhadas com riffs e acordes dissonantes, onde letra e melodia conformam de maneira simples e despretenciosa aquilo que gostaríamos de dizer sobre os nossos sentimentos, mas não temos coragem para resumi-los com algo do tipo: cadê você?/ que nunca mais apareceu aqui/ que não voltou pra me fazer sorrir/ que nem ligou...

Acredito piamente que as versões originais são sempre as melhores e já gostava do Odair José ele mesmo, mas devo admitir que este disco me pegou de surpresa. Ademais, os tributos têm a vantagem de colocar cara nova e sensibilizar novos ouvidos a coisas que foram feitas lá atrás, muitas vezes com recursos escassos, mas que guardam a simplicidade de clássicos. Adicione-se ai, produções musical e visual impecáveis e bandas de referência no circuito nacional e temos um disco que realmente vale à pena comprar e ser deixado sempre ao lado do player.

Muitos são os destaques no set list: de Mombojó a Suite Super Luxo, começando com Paulo Mikklos e Pato Fu, o CD está recheado de estilos e vivacidade. Até Zeca Baleiro deu a voz por lá. As versões são mesmo muito boas e as informações sobre as bandas e sobre o próprio Odair, que estão no encarte, servem-nos de guia para um período onde a música popular tinha emoção e estilo, fazendo com que ícones, como Caetano Veloso, gravassem-nas.

No caso desse tributo, temos ainda a grata surpresa da presença de uma das melhores bandas paraenses, Suzana Flag, levando Vida que não pára, com a competência já reconhecida e numa gravação feita aqui mesmo em Belém e completada no home studio da banda em Castanhal. Foi esse elemento que realmente elevou o valor sentimental do CD para mim, pois dá para sacar Odair José com a cara do Suzana e isso dá um caldo muito, mas muito bom mesmo.

Não deixe de escutar o disco. Garanto que, se você tem o mínimo de sensibilidade para música de qualidade e letras que falam de saudade, amor, sentimentos controversos e nostalgia, não irá se arrepender.

Então, fica assim:

01 - Vou Tirar Você Desse Lugar (Paulo Mikklos)
02 - Vida Que Não Pára (Suzana Flag)
03 - Uma Lágrima (Pato Fu)
04 - Eu Queria Ser John Lennon (Columbia)
05 - Ela Voltou Diferente (Mombojó)
06 - Eu, Você E A Praça (Zeca Baleiro)
07 - Deixe Essa Vergonha De Lado (Mundo Livre S/A)
08 - Foi Tudo Culpa Do Amor (Suíte Super Luxo)
09 - Nunca Mais (Shakemakers)
10 - E Ninguém Liga Pra Mim (Leela)
11 - Cadê Você (Sufrágio)
12 - Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha (Picassos Falsos)
13 - A Maçã E A Serpente (Poléxia)
14 - A Noite Mais Linda Do Mundo (Jumbo Elektro)
15 - Uma Vida Só (Arthur de Faria e Seu Conjunto)
16 - Que Saudade De Você (Terminal Guadalupe)
17 - Vou Contar De Um A Três (Volver)
18 - Cotidiano Nº 3 (Los Pirata)

Música: Vou tirar você desse lugar

domingo, 21 de junho de 2009

Diário da tua ausência VI

21.06.09 (3:28 a.m.)

A cidade se prepara para me abandonar novamente. Encontro na exclusividade da chuva interna desses dias, a razão para crer que tudo está definitivamente voltado para o meu abandono. As ruas, as marquises, as mangueiras e os cheiros úmidos da terra que amo e renego, desprendem-se de seus lugares e transitam entre um escrito achado e uma inconformada saudade de coisas perdidas recentemente. Apego-me aos poucos amigos que ainda perguntam o que existe por detrás de meus olhos cansados e meio dormentes nesses dias turbulentos. Seus abraços confortam, mas deixam-me partir em silêncio. Como se nada houvesse a fazer ou somar aos seus carinhos verbais. E queria tanto pedir para ficar, para dormir entre vizinhos, pertencente a algo que não é apenas uma minha ilusão (medindo a minha altura, sendo aquilo que realmente sou). Torcendo para que cada um desses abraços funde em mim uma resistência contra essas manhãs sozinhas, telefones mudos e portas não usadas. Madrugadas sem a presença de nada nem ninguém. Por pouco não provoco acidentes em meio a músicas sentidas e lágrimas de amor. Por pouco não escapo morto depois de tanta vida ter passado por meus poros. A cada passo um novo começo e a soma de todos os meus medos a apagar meus passos mais seguros, antes tomados por bravatas e solidões cedidas, conjugadas. Estou de volta ao lugar nulo em que me encontrei com o primeiro raio de sol, quando não podia distinguir felicidade do seio farto de minha mãe ou de um beijo apaixonado. Estou estancado num pranto longo e delirante, cujo estado de arte remete aos mais longínquos quadrantes deste corpo que por ora, apenas executa movimentos repetitivos, desprovidos de sentido ou vontade. A cidade se prepara para me deixar suas esquinas desnudas, para imprimir pavimentos sonhados em ruas abandonadas e sem iluminação qualquer, em cujos traçados perfazem-se meus temores ancestrais, minhas virtudes abandonadas à partida. Anulo as equações de despedida. Sinto os cheiros ornamentais de uma fé jamais retomada e penso nas mãos dela a tratar de minha alma tão desencontrada, em movimentos que surgem como bençãos, transformam-se em afagos e vêm retirar, como num passe de mágica, toda a dor de finalmente estar conhecendo a solidão. J.M.N

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Distâncias (ou O noroeste da existência)

Aqui tá fazendo muito Sol. As tardes têm um cheiro especial de flores que eu nunca antes conheci. Teus olhos iriam fazer diferença no mar de olhares perdidos que se encontram em redor. Já faz um ano que me esforço para não chorar. Toda a tristeza se foi por ai. Já nem sei se preciso dela para a volta. Talvez possamos deixar de lado os porquês e entrar de vez no amor, não achas? Sabe o livro que esqueci ao deixar a casa? Encontrei por aqui e não pude ficar sem pensar que trazia as frases de amor que eu queria ter inventado. Por pouco a surpresa de sentir falta não se desfaz. Ainda ontem parei na praça e encontrei umas sementes de gerânios. Vou levar para ti. Assim como vou levar as distâncias todas que escusei de percorrer pensando que me levariam para muito longe, faz delas o que bem te apetecer. Mora nas minha pálpebras a desilusão com alguns dos meus sonhos. Vou precisar da tua certeza para desfazer o mal entendido. Talvez possa deixar um pouco de mim. Os pátios e conventos já me convenceram da santidade e o sagrado do teu beijo parece bem mais do que qualquer oração. O amor me confessou que sente inveja. Também eu sinto esse tipo de coisas. Queria ter asas. Queria o mesmo espaço que é infinito. Queria ser sabido e entender as coisas de cá. Para além disso, me faria feliz um ouro qualquer, apenas para conseguir construir um mirante. Sabe amor, lá eu poderia te roubar o vento das noites limpas e te mostrar as lonjuras por onde eu vim. Já não estaria mentindo. Teria menos pecados, pois tu me absolverias e os pequenos gerânios, brotando ao nosso lado, dariam o sinal de que qualquer coisa resiste, se estiver perto de ti. J.M.N

Histórias para depois do sono VIII

Na sexta-feira, depois de muitos desencontros ele ligou.
- Queria ouvir tua voz.
- Fiquei mal desde anteontem.
- Viste minha mensagem?
- Já depois de um tempo.
- Quase vou ai.
- Ias me pegar de pijamas.

Queria muito. Tem flores ou super-heróis estampados? (primeiro não dito)

- Amanhã sei que vais estar ocupado, mas te ligo mesmo assim.
- Vou gostar.
- Tudo de bom.
- Pra ti também, mas também liguei para te dizer que não quero que te afastes.
- Isso não vai acontecer.
- Então até. Dorme bem.

Como se eu mesmo estivesse ai para te fazer dormir e despertar em segurança (segundo não dito).
Questão: como deixar de dizer coisas assim? J.M.N

Conselhos?

Que isso acabe. Da melhor maneira. Com ou sem dor, que as coisas sejam atraentes o suficiente para numa noite qualquer daqui a vinte anos, um dos dois possa dizer... Uma vez eu tive esperança de estar amando (ou sendo amado). Dissipem a rispidez das defesas com a ternura quase santa da não despedida. Fiquem. Um no outro. Como pertencentes. Coisas mútuas, apesar de discrepantes. Mas com coragem para as diferenças. Olhem mais. Sorvam mais. Adotem coisas, filmes, animais e papel de pão para as coisas sem importância do dia-a-dia. Leiam clássicos. Deslumbrem-se. Animem-se ao sair de dia e ter a certeza de que terão alguém a espera. Mordaças já não cabem, assim como a escravidão. Não mintam. Digam. Não morram. Vivam-se.J.M.N

Passageiro da luz

Quietude é prenda arribada
Transeunte das ruas imaginárias
É nela que nasço, repleto de ti
A derivar traços e linhas
Como se fosse um poeta
Como se soubesse poesias
E nesses versos atônitos
A declarar nostalgias
De dependência e entrega
Recrio os nossos quereres vãos
Separo o céu da tua boca
Daquele estendido no ar
Quero vidas aleatórias
Histórias e rimas terçãs
Arando minha terra prenhe
Restituindo meu corpo cansado
Até que se depure e finde
Toda a certeza das manhãs

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Um segundo, como nunca mais

Ele pensou que as coisas já se passavam e que, de alguma forma, suas esperanças deveriam encontrar um abrigo. Dormiu e acordou como fazem os loucos. Bebeu a água de sua saliva. Transformou-se em mundos. Um perdido. Aflito que estava pela descoberta de algo novo. Queria contar a ela. Queria invadir seu apartamento de pantufas e cuecas de seda, pedindo-lhe simplesmente para ficar. Como não poderia mover-se daquele cansaço antigo, virou para o lado e cantarolou Tomara, do Vinicius. Torceu para que a manhã lhe trouxesse boas novas e descansou finalmente da sensação de estar sozinho. Mesmo que ela não o pudesse ouvir, foi o mais sonoro dos “boa noites”. Desfez-se a impressão de abandono e a noite se ergueu como um guia. Atrás dela, um sem fim de estranhos finais felizes, como filmes inacabados e ganhadores de prêmios, esperando para serem estrelados por eles. O sorriso já nasceu sem consciência. Sonhos, afinal, não levam mais que um segundo para trazer alegria.J.M.N

terça-feira, 16 de junho de 2009

Amigos recentes

Dormi profundamente aquele dia. Senti-me acolhido, resguardado. Sobretudo de mim. Impossível fazer coisa tola, esquisitices. Quando cruzei aquele portão, pude ver muito mais que uma felicidade duplicada, pude ver a lua que insistias em me apontar - não por maldade como disseste, mas porque ela estava simplesmente perfeita. Tinhas razão. Aquela lua secular é que habitou meu sono naquela noite. Obrigado por tudo. Pela confiança do segredo e pelas coisas que não se pedem a qualquer um. A manhã foi de festa, a tarde de gritos felizes na piscina com aqueles filhos adoráveis. E as frutas do quintal alheio. Meu quintal da infância reapareceu como num milagre - saudade postiça - e pisei até em formigueiro brabo. Tenho marcas dos mosquitos que vocês disseram não existir e muitas outras de coisas que finjo não terem acontecido - é o que posso fazer, já que doem tanto que nem sei como continuam existindo na memória ou como permitem rigidez aos meus tecidos. Talvez o pago, enfim. Anos e anos me protegendo de gostar de verdade dos outros. E vocês abriram aquele portão para que eu entrasse completo, um corpo sem morada, um surrão de cacos quem sabe perecíveis. É assim que me sinto hoje, chamando-os de amigos: casa cheia, festividades, lua alta dando tento da poesia do encontro... esperando ver o filme que vocês disseram lembrar de mim. J.M.N

Problemas e outras coisas que infestam pensamentos

As prestações vencem na segunda. 1º erro: achar que o passado está em outro lugar que não aqui - bem vivo. Meus olhos estão murchando. Conto com as coisas inventadas para saber que sou mais decente e merecedor de uma promoção. Minha chefa é uma débil mental. As chaves estão por ai, abrindo silêncios que eu nem esperava. Tudo vale no combate à dor de ontem. Volta para cama, amor. Quando ligares anonimamente fala comigo, fingirei que não te conheço. Quero os doces especiais de um lugar que nunca estive. Amor! me acende, me acalma, tira essa agonia. Te cuida, pois eu te quero. Eu não sou uma ameaça. 2º erro: achar que o futuro só se faz de coisas novas. Ameaçar é verbo que não pronuncias nunca. Será que por isso te sentes menos viva? Já chega! Me deixa morar nos teus amanheceres?J.M.N

Revelação

No fundo da foto, um olhar disposto a tudo. Ele nem viu quando ela saiu de sua mira e foi se misturar à paisagem.
Ela tinha dessas coisas.
Ficava por ali, dizia duas palavras, provava que existia e sumia.
Quando decidiu ser mais presente, teve problemas consigo. Já não conseguia.
Sumiu de vez.
Um amor irregular escreveu em seu diário.
Parou numa praia para catar conchas ou águas-vivas e o viu de mãos dadas com alguém.
Um pouco do seu dia morreu e talvez outras frações de si que nem sequer sabia existir, também escaparam no susto.
Deu o nome dele ao artesanato disforme feito com as coisas juntadas na praia.
Mudou-se para Roma, onde pinta paredes por muito dinheiro.
De vez em quando vai ver o mar e se lembra dele.
Já não cata conchas.
Tem medo de que elas se amotinem e lhe tragam lembranças.
Continua figurante de fotos, só que agora, evita provar que existe.J.M.N

Memórias em dialeto de esquecimento

Tentaram fazer por ti o que eu faria: acordes no vento da tarde; metades de amanhecer ensaguentadas. Não conseguiram. A desandar ficou quem disse que faria. Coisa qualquer de te aprender no desencanto. Tua beleza de esquecimento entumecida. Chega tato de aprender pertencimentos. Da pedra escassa, atinada no teu riso, retiro tempo. Esboço do tipo abandonado. Tem cristais de demência esta verdade. E escoras para os sozinhos esta escritura.J.M.N

domingo, 14 de junho de 2009

Ser como Sofia I – Da propriedade das coisas

- Sofia, eu comprei essa pasta azul pra guardar os desenhos que você faz pra mim.

- Uhum

- Eu vou fazer uma etiqueta no computador. Vou escrever “desenhos da Sofia”. Tá bom assim?

- Não.

- Não? Então como deve ser?

- “Desenhos do papai”.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Excertos Terapêuticos IX

"Sou do amor fulminante, como um enfarte. De perder a razão. Casar na hora, em dias, esquecer que não era possível, esquecer as dificuldades, esquecer os entraves e pormenores. Não dar tempo para criar problemas. Não dar tempo para ponderar com opiniões dos próximos. Não aceitar conselhos de ressaca, decidir ébrio e arrepender-se amando. Ultrapassar-se.[...]
Caso rápido porque nunca fui sozinho dentro de mim, porque a saliva é água potável, porque amor é urgência.
Ajeita-se a vida como pode. Um dia a menos não será depois um dia a mais.
Caso em segredo, a dois.
Beijo tem muito despudor para medo.
Não me exibo, caso.
Não faço futuro, caso logo para fazer passado."

Fulminante - Fabrício Carpinejar (em O amor esquece de começar, pp. 60 - 61.)

Então, confesso que vivi!

Se durmo sossegado quando minha memória olfativa interpreta a fronha recém-lavada como o cerne dos teus cabelos é porque algo definitivo ficou. Se acordo empapado em suores ordinários e quereres sem compustura alguma, ou envolto no vômito que o álcool da noite delirante me permitiu é porque as razões de ser e estar ainda requentam meu coração, minhas víceras, minha anatomia toda. Se em ventos chuvosos descubro o doce das frutas de teu beijo, a entrada macia de teu corpo que tanto desejo e tanto levou de mim, tua antanha descoberta de si, é pois válido crer que fiz por onde, que lá estive, que lá estivemos. Nas misturas mágicas, nas tinas de poção. Se posso mesmo com portas na cara, com amigos deixando-me à deriva, lutar contra esta força titânica que é a tua ausência e se nessa batalha sozinha eu ainda umedeço certas partes de meu corpo, alternando vitórias e derrotas, sorrisos e gritos de dor, ainda posso dizer que me encontro materializado, monumento para qualquer espelho. Pois as recordações construídas com tanto esmero e entrega são sim a vida que me rodeia, o sumo santo de meus encontros com a alegria e com a tristeza, com a pena e com o indulto. É, por vezes, assutador recobrar certas lembranças, mas é ainda pior, curvarse diante da vida e das coisas tênues que separam as recordações construídas dos ideais amenos e dos desejos do porvir.J.M.N

terça-feira, 9 de junho de 2009

Diário da tua ausência V

09.06.09 (1:32 a.m.)

Percebi finalmente que não há a quem recorrer. Que não adianta todo o esforço do mundo para reatar antigos laços, desfazer tropeços ou simplesmente dizer a alguém muito antigo em nossa biografia - sinto muito. Além desse gosto estranho nos meus alimentos. Além deste torpor infectante que me onera muitíssimo o passar das horas, ficou a solidão. Ela anda a me caçar. Estranhamente ganha densidade, passa a apreciar as mesmas coisas outrora guardadas a sete chaves, como se fossem seu próprio gosto. Ainda consta como indigente em minha geografia, mas sei que fará de tudo para conquistar os espaços nulos, as vigas mais escondidas de mim. Estarei pronto para quando ela atacar, pois em mim residem ainda as coisas todas que nos compunham e mais e maiores do que esta solidão atrevida que me espreita e provoca, são as lembranças do fomos e tivemos. Isso sim faz valer uma vida. Meter-me nestas vestes de memória é o que me faz resistir.J.M.N

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Comida

Já não dou título para as coisas que me afligem as saudades. Antes me empenhava em descobrir simbologias, enfeitar com poesia e sofismas de abandono e dor, os meus insuspeitos suspiros. Abro a janela e o ar de depois da chuva faz sua mágica, convertendo as tramas de ausência em coisas cheiráveis, bebíveis, mastigáveis até. Choro até o ponto de ter matéria para misturar com esse ar de chuva e pronto: um novo gole acaba com o susto. Antes de eu ter essa facilidade da chuva, tinha o péssimo hábito de guardar os nomes, os tickets de teatro, de imolar os corpos santos sem regras ou religiosidade. Antes de dizer estas coisas eu era apenas aquele que sentia. Posso não dar títulos a coisa qualquer, mas ganho peso por esses quitutes de saudade e dor.J.M.N

Constatação

Cinco meses de fortuna e ódio. Por um lado a destreza com os negócios me fez maior, mais enérgico, um tanto mais sozinho e afastado das coisas orgânicas sim. Separado do mundo por janelas de vidro à prova de balas cuja translucidez é apenas aparente e aumenta vertiginosamente minha miopia. Por outro lado a coisa de não poder comprar tudo, de não controlar o tempo e poder redefinir destinos recentes que foram parar na sarjeta. Desta feita, a carta que recebi pela manhã foi desesperadoramente intrigante, infinitamente mais absurda do que os movimentos financeiros. Terminava de maneira instantânea, quase estúpida: ainda bem que acabou! Isso depois de tantas declarações de amor. Nuca te entendi, essa é que é a verdade. Aliás, nossos enganos começaram muito antes do que nossos acertos e quando chegou o ponto de estarmos amáveis, entregues e completos, o passado já era uma bola de neve gigante descendo com força estupenda a montanha por trás de nós.J.M.N

domingo, 7 de junho de 2009

Biografia

Encontro-me à espera da idade para deixar os segredos de lado, como se fossem os anos que perdoassem as traições e soterrassem os mistérios das euforias romanceadas de tempos atrás.
Jamais soube o que me gritavam os homens do porto. Passei por eles ainda muito novo e indolente.
Um ano antes de morrer, deixei escrito em testamento: todo meu ouro, minhas palavras e as provisões de ano novo são para ti. Muda. Faz o que eu não fiz.
Se te deixei faltar algo, perdoe-me.
Escolhi o caminho adiante, sem curvas ou reticências. Não era natural?
Hoje eu sei cada vez menos e ainda me recupero da primeira morte que tive. Posso apenas te anunciar umas poucas verdades:
Meu brado é amargo e vazio. E sorrateiramente desisti da construção da casa.
Dei a ela os tesouros que nunca te dei.
Nossos filhos catam ventos sem ter nada para comer ou vestir. São livres, então.
Meu sofrimento está tingido de azul e a única coisa que me resta é uma vida toda para esquecer de ti.J.M.N

Pequena fábula de se tu estivesse

Na hora do rush te espero para almoçarmos naquele lugar de sempre.
Olha que a pressa um dia acaba e vamos todos andar de costas, a história ao lado.
Vamos para Atenas recuperar pedras, textos antigos e algum sentimento. Desafio o teu peito a esta busca e talvez cobre caro a tua eventual desistência.
No sábado que vem, podíamos catar conchas em Albuquerque, de calças curtas. Andar na areia pedregosa daquela praia triste. Lembrar de quem já foi, pedir por quem chegar. Reler Weber, Epicuro ou Dilermando e falar bobagens sobre cultura e TV em cores.
Na janela de nossa casa poremos dálias e estas serão regadas à nostalgia. Tive a informação de que florescem melhor assim, talvez tenham me enganado.
Onde andas que não enxergo mais teus passos?
Foste tão longe que só ficaram estas lembranças?
Amanhã te conto dos anos que passamos em Roma e na Riviera e talvez esqueça que nunca estiveste aqui.J.M.N

Amor em cores

Azul celeste ou encarnado, vermelho puro. Foi assim que criamos nossos gostos, um pelo outro, em contraste com a frágil presença do rosa em suas bochechas.
Fingíamos encontros ao mesmo tempo, depois soubemos.
Treinávamos as falas corriqueiras dos muitos anos do matrimônio esperado em frente às nossas cabeceiras, como artistas num palco iluminado.
O muro alto da casa dela era sempre um desafio, mas escapulíamos por entre as frestas da cerca velha e fazíamos nossos arco-íris no quintal do Venâncio.
Naquela época eu tinha uma barba rala e muito ímpeto e ela cultivava seus peitinhos nos vestidos leves e sem amparo.
Depois do verde das tardes entrelaçadas de mãos veio o intenso rubro dos beijos roubados e dos entregues também.
Nunca irei esquecer a dor de dormir sem escutá-la.
Lá naquela imensidão investida que foi nossa história, resta dormente, mas ainda viva a tez de aquarela dos nossos quereres.
Deixou a cidade uma semana depois.
Naquela tarde em que ela partiu, meu olho alegre decaiu muitíssimo e minha sombra encolheu antes de mim.
Cheguei atrasado para o embarque. Ela também. Vi apenas seu braço erguido, num arco longo e triste de adeus. Ficando cada vez mais longe com seus olhos açudes. Sua despedida fazendo ventos diminutos e doloridos, cinzas, como as tardes chuvosas de fevereiro.J.M.N

Marrocos, em agosto

Ouvi dizer que lá tem coisas fantásticas. Existem feiras ao ar livre e todo o tipo de coisas espalhadas pelo chão, para vender. Um dia vamos lá. Vamos descer até a Espanha e atravessar o estreito, com as mochilas mais vermelhas que encontrarmos. Em Rabat, pintaremos os rostos como vasos antigos e dançaremos adormecidos pelas ruas da cidade. Marrakesh não tarda. O farol será nossa lua. Teu beijo é mais demorado que de costume. Posso dormir aqui? Te perdi. Nos perdemos. Sob os meridianos atentos, a Terra se reencontra em nós. Estamos completos, cosidos como um tecido caro de textura fluida. Fomos por fora do mapa, através de Casablanca. Repousamos diante do mar e estamos queimados. Nossos corpos incomuns à beira da praia, derramados como líquidos que se misturam. Depois o sul, através de Settat. Chegamos ao fim. Rumo à casa que já não será a mesma. Nem sequer os olhos, ou os braços e os corações. Tudo ficou para trás. Como andarilhos desatentos, demos nossos passos para longe dos caminhos conhecidos – desconexos.

- Te mando uma carta no fim do ano.
- Vamos nos encontrar em Bordeaux e depois vamos a Lille, certo?
- Guardo para sempre o teu abraço.
- E eu a tua presença.
- Até mais. O fim do ano já chega.
- E a saudade?
- Repartimos. Espero que isso nos ajude a voltar.J.M.N

sábado, 6 de junho de 2009

A primeira ilusão

"Abrindo o olho para o que se sonha,
tem-se cautela ao que se descortina,
pode-se estar na diretriz divina,
pode-se entrar na direção medonha."

Catecismo - Paulo Cesar Pinheiro

João acordou ensopado. Teve poucas horas de sono. Um sono amargo, pouco descansado. Acordou no meio de um pesadelo e qual fosse real o que sonhava, continuou agindo. Sonho real numa manhã inventada bem antes do que deveria. Olhou para o lado e não havia nada. Nem o quente do corpo dela, nem a mansidão endividada de suas manhãs antes do trabalho. Lembrou que era melhor em dar amor do que solicitá-lo, pois assim teria que admitir que não tinha. Esse pensamento o confundiu um pouco. Estendeu o braço esquerdo à imagem que se formava meio translúcida e cultivou inoportunas violetas em torno dela. Levou uns minutos para se descobrir acordado. João, decerto, não intentou roubar a razão dos sonhos. Presumiu revoltado que a instalação daquela bruma era tudo o que restara da pequena ficção a que se dera direito desde que tudo começou. João enxugou o rosto, mas viu que continuava úmido. E entendeu o motivo, depois de sentir os olhos ardidos. Acordava como nas vezes anteriores em meio a um choro dormente. Vazio de contrários e vida contundente. Sentiu que a pressa passara, que a teimosia de não se conformar nunca, esta sim, adormecera e ressonava esquecida em qualquer quadrante de sua memória. Quando haverá outro dia esperança, quando? Jamais se conformaria com o fato. E sua glória administrada cedeu, uma culpa secular recobrou seus laços, atada permanentemente aos seus intentos. Ter sem culpa, não era possível. Com a triste combinação de verdade e impedimento que se lhe guardavam essas manhãs conturbadas. João chorava a falta. Simplesmente aquilo que já não tinha e que, demasiado tarde, descobriu que jamais poderia ter, pois tais apostas pedem riscos muito elevados. Definiu com a respiração ainda ofegante que aquele dia seria mais um dia. E somente mais um. Onde tudo começaria com o bagunçado envolvimento de seus sentidos com as horas inagurais da manhã e acabaria em sua escrivaninha, rabiscado nas folhas de papel branco, começando, quem sabe, as silentes profecias dos amores acabados de repente, as quais diariamente se convertiam em diários, cartas, e livros intermináveis. João, na verdade, queria apenas um pouco mais de sono, mas não conseguiu. J.M.N

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Diário da tua ausência IV

04.06.09 (madrugada)

Obrigado pela carta. Sei que foi tão difícil para você escrevê-la quanto foi para mim ler. Mas também sei que completudes é que lá estavam registradas, e isso me basta por agora. Naquele exato dia, em que recebi das mãos do carteiro usual tua correspondência, estive lutando com todas as minhas forças para não te ligar, internar-me no hospital em que trabalhas ou descer pelo telhado de tua casa para assaltar teu sono com meu desespero. A queixa seria a mesma... órgãos liquefeitos, torções de alma, essas extremidades dos meus sintomas mais diversos que conheces tão bem. Comi um pouco e flagrei dois vizinhos brigando alto por causa de uma conta de luz. Encostei-me na parede mais próxima ao som, e fechei os olhos para concentrar-me na briga. Deixei de lado meia maçã e todos os meus pecados recém descobertos em prol da desavença muito próxima. Em meio às reclamações dela, um punhado de coisas que nada tinham a ver com energia elétrica, ou a falta desta. Havia em sua palavras sulcos tênues de abandono. Por eles escoavam os raros, mas preciosos, ditos de pertencimento, de entrega e vício (por que não?). E nestes filetes que usualmente conduzem às dores mais violentas, ouvi transportarem-se esperanças, medo, pedidos para que aquilo parasse e a noite pudesse, enfim, dar-lhes o sossego necessário. Tudo acabou de maneira bruta, com um grito de ordem para que a conta fosse paga no dia seguinte. Uma porta bateu seca. De minha parte, segurei tua carta contra o peito e atendo-me às mais sutis veleidades de quem tem se encontrado mortalmente com a solidão das madrugadas, suspirei um quase riso, tão baixo como o tocar de pés de escaravelhos em fuga e me tranqüilizei, apenas por saber que naquele exato momento, alguém mais estava tão infeliz quanto eu.J.M.N

terça-feira, 2 de junho de 2009

Dois perdidos

Um par de coisas aconteceu entre o bater da porta e a descoberta da ausência, naquele dia. Poderia dizer que houve uma certa precipitação por parte de ambos e comentar que, afinal, o fim era o único caminho. Mas isso seria fácil demais, direto demais e para os autos, demasiado insignificante diante da história toda.

A despeito dos rumos tomados, não parece justo assegurar depois de tanto tempo, que ambos escolheram aquele caminho e enveredaram suas desavenças para as portas do inferno de uma vida a dois sem vida. Não. As coisas aconteceram como tinham de acontecer. E devo dizer que foi assim desde o início.

Dia de chuva…o rio tinha subido aos céus…

Chego atrasado se isso continuar. Nem me fale. Essas chuvas já estão fora de época. E de proporções bíblicas, não acha?. É mesmo. Quer um?. O que é?. Biscoitos de laranja. São caseiros?. Devem ser. Sinto muito, não posso aceitar coisas de estranhos. Você está brincando não é?. Claro que não, você é um estranho. Nestor, prazer. Lisa Maria, igualmente. Gostei. E os biscoitos?. Você disse que não aceitava. E você se apresentou. E?. Isso fez de você um conhecido!. Acabou. O biscoito?. Não, o tempo. Tempo de quê?. Da validade da oferta dos biscoitos. Mas estão cheirando tanto. E estão gostosos. Só um?. Não. Então para quê ofereceu. Para te conhecer. Eu me apresentei. Mas só depois de mim, e dos biscoitos. Mas você se apresentou. E antes te ofereci biscoitos. Débil mental. Sua sem biscoitos. Passa logo chuva. Não vai passar. Além de doido você é meteorologista?. Sou. Não pode ser, nunca conheci nenhum meteorologista. Onde você vive? Em Marte?. Grosso. O biscoito está uma delícia. Você vai me dar?. Só se você ficar surpresa com o que eu vou te dizer!. Como assim?. Que parte você não entendeu?. De quê?. Do que eu te pedi… de se surpreender. Não vejo razão para isso. Não quer os biscoitos?. Não. Ok, então me dá seu telefone. Nem pensar. Vai. Nunca. Palavra vasta essa. Escuta, você é mesmo um meteorologista?. Não. Há, agora é que não dou mesmo meu telefone. Você é um mentiroso. …que tem os únicos biscoitos de laranja desta parada de ônibus. Não acredito que essa chuva não passa. Não acredito que você acreditou que eu era meteorologista. Eu tenho fé nas pessoas, tá bom?. E eu tenho biscoitos de laranja. Chuva estúpida. Você vai para o centro?. Que te interessa?. Vai ou não?. Vou, e dai?. Não deixa de passar pela praça ao lado da prefeitura, é linda. Não passo por lá. Mentira!. Perdão?. Você tem de passar por lá para chegar ao seu trabalho. Como é que é?. Que parte você não entendeu agora?. Seu idiota! Que história e essa de… como você sabe onde eu trabalho. Calma Lisa. Lis… como você sabe meu nome. Você me disse ainda há pouco. Hã! E sobre o trabalho?. Eu trabalho no andar de baixo, edifício Avenida, 371 – sala 1005. Hã… o que é que tem lá?. Meu escritório. De quê?. Agora é sua vez… na praça do centro, perto da prefeitura, tem uma estátua de um infante, na base dela tem uma pedra solta que ninguém conhece, lá vai ter algo para você. Como é que é?. Ai meu deus! Você é difícil, heim?. Tô passada! Me dá um biscoito. Acabou. Vai à merda. Vai ao cinema comigo?. Nem pensar. Que pena, achei que valia à pena pegar essa chuva por você. Quem é você afinal?. Sou o Nestor, já disse. Não, digo, o que você quer?. Cinema com você. Nessa chuva?. Não, pensei em sexta-feira às 20. Já disse que não. Na verdade, você disse nem pensar. Você é irritante. Sou sim, mas também acho que você é a melhor coisa do meu dia. O que?. Você é distraída mesmo… semana passada, no seu consultório?. Que tem?. O cliente que saiu e te deu um abraço. Claro, mas, mas. Tirei a barba, como você disse para eu fazer. Eu não acredito. Sem problemas, eu aceito seu esquecimento. Não é isso…. Cinema?. Mas eu nem te conheço.J.M.N

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Excertos Terapêuticos VIII

Eu faço versos como quem chora
De desalento. . . de desencanto. . .
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente. . .
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
– Eu faço versos como quem morre.

Desencanto - Manuel Bandeira (em A Cinza das Horas)

Uma dessas coisas primeiro

"I could have been your pillar,
could have been your door
I could have stayed beside you,
could have stayed for more.
Could have been your statue,
could have been your friend,
A whole long lifetime
could have been the end."

(One of this things first - Nick Drake)

Foi justamente isso... Remissão e sacanagem.
Se eu dissesse que tinha sido amor estaria mentindo.
Caras e bocas. Invernos aconchegantes nas estâncias térmicas do país. Muito dinheiro gasto com sonhos e cachecóis.
Não compramos um apartamento. Nem lava-louças.
Deixamos às traças os livros raros que herdamos dos respectivos pais. Nódoas nos panos de mesa da avó dela. Mofo esverdeado nos carpetes. Tristeza. Espelhos partidos. Manteiga estragada e comida ruim.
O sexo foi o de menos. Havíamos piorado muito já no fim do primeiro semestre. Dai pra frente, amantes. De cá e de lá, pelo que sempre desconfiei.
Estávamos certos. Estávamos errados. Nos conhecíamos. Nos odiávamos por causa deste conhecimento e juramos ser amigos para sempre.
Nunca se falou em amor.
Nunca se falou em casamento.
Nunca se falou em separação e, no entanto, quase nos matamos umas três ou quatro vezes.
Olho aquele nada que foi nosso primeiro ano.
O segundo, nem isso foi.
Sua bunda já não era mais a mesma. A minha nunca tinha existido. Defeito de fábrica, preguiça dos meus pais, sei lá. Uma armadilha anatômica para os meus pés, que viviam desfazendo a barra das calças.
Nossas caras já não escondiam a vergonha e a antipatia daquela desgraça compartilhada.
Jantares interrompidos. Meu telefone. O telefone dela. Desculpas esfarrapadas. Bilhetes anônimos escritos por nós mesmos. Mentiras afluentes que nem se distinguiam das coisas doces que inventávamos de vez em quando para acreditarmos em nossa humanidade para variar.
Mas nunca, nunca a palavra adeus.
Certo dia, acordei às duas da manhã e chamei-lhe pelo nome. Obviamente estava sonhando.
Ela acordou assustada. Olhou-me e não disse nada.
Foi a primeira vez que vi lágrimas nos seus olhos.
Nenhuma palavra e o abraço mais seguro que já tive em vida.
- Desculpe! eu disse
- Não diga nada!
E dormimos assim, eu nos braços dela e minhas culpas debaixo da cama. Apenas por aquela noite carreguei o peso das coisas sozinho. Ela era sóbria. Eu, um covarde. Precisava como nunca daquele abraço.
Seus olhos brilhando. Minhas mãos tremendo. Eu encurtando. Ela me chamando de amor. Corações quase implodidos. Devaneios à madrugada sórdida. Desconcerto. Ternura. Rancores entulhados...
O abraço noturno seguiu até de manhã. O amor do avesso se acalmou.
Soltamos os corpos.
O vazio tinha outra forma.
- Quer café? Alguém disse.
Sem resposta tomamos um dejejum forçados.
Temperado pelas palavras malditas que se escondiam nas bocas medrosas.
- Banho?
Ela concordou.
Depois da água veio um calor insuportável e o cheiro espesso do cotidiano.
- Não vai pro trabalho! Ela pediu.
- Tenho uma reunião importante.
- Claro, claro. Desculpe! Ela disse com melancolia.
Pela segunda vez na vida eu a vi chorar... Desta vez sem lágrimas.
Voltei do meio do caminho.
- Cancela a reunião, pois tenho que amar alguém, foi o que disse para a secretária.
Dona Lúcia, minha companheira de tantos anos sorriu e disse do outro lado da linha:
- Já não era sem tempo.
Dona Lúcia me conhecia melhor que ninguém.
Cheguei em casa atônito. Com ares de amante latino. Muito vulgar, cheguei babando...
- Tira a roupa!
Ela nem sequer me escutou e pulou da cama me derrubando.
- Você acha que é tarde demais? ela perguntou.
- Não sei, respondi.
- Então me come.
Naquele momento impreciso dissemos tudo o que estava por vir havia tempos...
- Me destrói?
- Me culmina?
- Me atira uma pedra?
- Afoga minha ira?
- Me transpira?
- Me reinventa?
- Constrói um edifício pra mim?
- Te transforma numa estrela?
- Me chama de puta?
- Puta!

Eu cedi. Sempre cedia.
E acordei com a beleza daquela estranha que odiara por tanto tempo, transformada na obra divina dos meus ancestrais. A mulher prometida.
Olhei-me no espelho equanto ela dormia. Rugas salientavam minhas desgraças. A barba mal feita denunciou meu abandono e o corpo que ali estava, parecia ser de um outro alguém.
Apesar disso, ri e emprestei as lágrimas dela.
Disse para a imagem destroçada que via no espelho:

- Quem disse que se pode deixá-la?

Não tento nunca mais.J.M.N

Los dias sin dias

Em 2003, conheci este pequeno vídeo que me comoveu imenso. Depois de algumas perdas sentidas e viagens que renderam cicatrizes mil, lembrei dele quando li uma reportagem sobre como o mundo e as pessoas parecem cada vez mais desamparadas e precisando de cuidado, cercadas de medos e neuroses de angústia e ansiedade, esperando em silêncio que alguém as salve. Imediatamente pensei que era isso que este filminho representava - cuidado, o afastar do desamparo... Então, ai vai.J.M.N

Para o Super, com saudades

                                                                 para um outro Neto,
                                                                                 que já foi descansar.

Ele é a primeira imagem de pureza de que me lembro. Na minha infância esteve ali, como um ser encantado que segredava suas origens para além dos dias da criação. Sua secreta linguagem de verbos e de corpo me aturdia como as coisas do além, sobre as quais depois descobri, o medo não deve repousar. Fez parte de muitas tardes felizes o Super, como disse que queria se chamar numa de nossas brincadeiras. Foi companheiro de muitos ofícios infantis, inclusive os inconfessáveis. Junto com seus irmãos encheu minha memória de sagrada presença.

Fui vê-lo no hospital. Já quase perto do fim. E tive a impressão de que minhas primeiras saudades eternas de pessoas de minha geração chegavam inelutáveis. Encontrei com parentes, irmãos, sua mãe sempre perto, gentil e cuidadosa, seu pai silencioso. E ali respirei um pouco do tempo em que estivemos juntos e muito do tempo que nos sonegou a vida. Senti, no fundo de algum lugar esquecido que queria as coisas diferentes. Irretocáveis, puras, cheias de descobertas e risos cúmplices como as tardes em Mosqueiro, há muitos anos.

Num tempo em que as pessoas mais intensamente se empenham em cultivar suas solidões e cumprem destinos cada vez mais opacos e sem sentido, acredito que Super cumpriu o seu com dignidade. Não deixou de sofrer por isso, mas mesmo no fim, a dor não corrompeu sua pureza, deixando tempo para gracejos e espontaneidades como as que nós - os outros, precisamos tanto nos esforçar para produzir e que por isso, talvez, não mereçam ser chamadas de naturais.J.M.N

Durma em paz...

Uma rua

P2040021

Encontrei esta foto em meio às fotos preferidas. Lembras? É a reunião de nossos olhares desta cena tão comum. Uma rua estreita que tinha cheiro e guardava tão intensas memórias que podíamos tocá-las ao passar as mãos pelas paredes extremamente próximas. Não sei porque pensei em pertencimento, em estar próximo. Tão próximo que as paredes seriam invisíveis e que as coisas todas que acumulamos ao longo dos anos aparecessem compactas e familiarmente agregadas, como nesta rua, agora cheia das minhas saudades também. J.M.N.

Sobre os comentários

Caros leitores,

Ficamos muito felizes com as manifestações de satisfação pelo "retorno" por assim dizer. Elas chegaram, em sua maioria, através dos nossos e-mails pessoais e serão sempre muito bem vindas.

Decidimos abrir novamente a postagem de comentários sem moderação, pois isso, ao que percebemos, limitou bastante o número de comentários. É mesmo chato ter de ser moderado, pois nunca precisamos, reter nenhum comentário por falta de decoro.

Sendo assim, esta casa é mais sua do que nunca.

Um abraço,

Palavras de Ontem

Diário da tua ausência III

01.06.09

Ligaram de lá. Não deixaram muitas esperanças, mas, afinal, quase sem esperanças foi que vivi estes anos todos. O importante é que ligaram, dirias. Sinto falta desta tua força a me dizer que tudo vai dar certo e que um dia... Hoje o dia passou definitivamente sem razão. Louça suja me divertiu. Que azar ter encontrado a vizinha da briga de sexta bem na porta do prédio. Mais uma série de impropérios, baixaria ao ar livre numa segunda de manhã. Meu café da manhã só não voltou porque tomei as devidas precauções. O fato é que tenho algumas dúvidas sobre o sereno, dormir de bruços, arcordar no meio da noite e pisar descalço no chão frio. Muitas outras coisas me assaltam agora e o frio da geladeira indica toda a temperatura dos meus sonhos mais pungentes. Queria acordar disso tudo, mas hoje cortei o dedo com a faca de pão e o sangue me deu indícios de que desta vez não estou no campo do sono, não durmo ou estou sonhando. O incômodo desta constatação gera uma tensão absurda. O telefone faz parte da conspiração, calado me lembra que guarda a chave do meu destino e mais, grita malcriado a minha falta de coragem. Desisto. Lavei louça por diversão. Escrevi três linhas do relatório para o pagamento e me atirei de volta na cama. Um esforço estupendo este de existir. Sinto falta da tua força. De quando dizias que tudo daria certo e dava.J.M.N.

I think I need a new heart

É tudo sobre este título!

Pensei em começar falando sobre a música homônima de Stephin Merrit, do Magnetic Fields, abordando de maneira geral como ela se encaixa perfeitamente no conjunto de suas 69 canções de amor (69 Love Songs, 2004) e depois passar para um entusiástico elogio ao grupo, sugestão de outras faixas e CDs... blá, blá, blá. Mas senti que estaria perdendo uma grande oportunidade de me aventurar no mundo da crônica (apesar de nem ter pistas de como fazê-lo, por isso me desculpem se sair mal), pois a canção traz pérolas de inspiração, tais como:

Time stand still
All I can feel is the time standing still
As you put down the keys
And say don't call me please
while the radio plays
I think I need a new heart

E, afinal, quem jamais quis dizer ou disse coisas assim um dia?

O fato é que Merrit acertou em cheio, como fez tempos atrás ao enfiar numa música um refrão que dizia mais ou menos que ele dedicava aquala canção a alguém que o tinha feito realizar coisas desesperadas. E coisas desesperadas nos fazem querer um coração novo, fazem-nos querer escrever uma crônica... Mas também coisas belas, ternas e verdadeiras o fazem.

Como não descompensar quando se chega ao fim de algo tão profundo e importante em nossas vidas e ao ligar o rádio, ou abrir o music player de nossa área de trabalho no computador, achamos "engatilhada" a tal música, aquela que resume nosso estado de espírito diante da perda? Mais que isso, encontramos organizado de maneira nunca antes percebida, em suas estrofes, aquilo que queríamos ou deveríamos ter dito?

O Magnetic Fields também nos brinda, em 69 Love Songs, com uma música (the luckiest guy on the lower east side) que diz entre outras coisas que, apesar do protagonista saber que muitos outros caras e circustâncias fizeram bem à mocinha, eles têm um segredo, uma cumplicidade e que a manutenção disto é o que faz com que, em sua companhia, ela ria mais do que em qualquer outra ocasião. Numa livre imterpretação: acho que estou escrevendo isso, pois queria ter a oportunidade de fazer alguém rir de novo.

Pensei que a música título deste pequeno escrito, apesar de autenticar, um desejo de mudança, traz uma felicidade melódica que só se encontra em momentos de reconhecimento e entrega, de solidão e busca de si, onde a verdade daquilo que sentimos e somos não pode mais ser escondida, nem por todos os esforços sentimentais ou teatrais... Como em:

Cause I always say I love you
when I mean turn out the light
and I say let's run away
When I just mean stay the night

Queria, em muitos momentos, poder escrever 69 canções de amor para explicar os trubilhões por onde surgem nossas desagraças particulares (as minhas, pelos menos), os quais fazem surgir em nossas histórias os mais tristes e falhos atos de desespero e imaturidade, como também as mais belas lembranças de entrega, companheirismo e amor, mas decidi apenas apresentar Stephen Merrit e elogiar seus 69 achados de amor.

Na vida, como na música, as coisas se conjungam ou se distanciam, e muitas vezes correm mal e os resultados são terríveis: vendagem baixa, vaias em shows, descrédito na grande mídia. Mas algumas vezes é possível achar a combinação perfeita entre palavras e melodia, entre o dito e a presunção da verdade (e digo isso, pois a verdade é a de cada um) e nesses momentos eu sempre agradeço por ter a música em minha vida.

Em momentos assim, podemos, mesmo tristes e perdidos, solitários e intranqüilos, encontrar conforto e desejar o impossível - um coração novo que seja, mas também simplesmente cantar uma boa música, de olhos fechados, respirando devagar e lembrando que nem tudo o que nos condena, define aquilo que somos. É! Eu também acho que preciso de um coração novo.J.M.N.

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Serviço:

69 Love Songs - Magnetic Fields (Domino Records, 2004)
69 Love Songs cover

E esta é a música título (o vídeo não é oficial, foi a única versão que achei):

E mais uma preciosidade do mesmo album: