quinta-feira, 28 de maio de 2009

Históras para depois do sono VII

A menina veio. Cabelos e vestido como um só, espanando o ar da praça com delicadeza infantil. Correu até ele e se atirou em seus braços. Não ouvi o que disseram um para o outro. Histórias de felicidade, talvez. Um algodão-doce prometido. E se foram de mãos dadas. Ele a cortejar as copas das árvores intentando mais além o céu que as recobria. O céu de suas descobertas, de suas virtudes, quam sabe pensava nos planos para o próximo trabalho. Ela, na altura de sua coxa, estourava bolas de sabão e se ria dos feitos como se estivesse inventando purezas e descobrindo céus encapsulados nas bolhas. Quem sabe fosse isso. Os céus de ambos estavam em dimensões diversas, mas afagavam-lhes os espiríritos de maneira tão peculiar e densa que a beleza da cena simples me encheu os olhos. Céus encontrados serão sempre motivos de alegria. J.M.N

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Diário da tua ausência II

27.05.09

Manhã cedinho. Coleto sangue para exames de rotina. A enfermeira brinca dizendo que nunca vira sangue mais vermelho. Respondo dizendo que, na verdade, é meu coração liquefeito. Sua risada dura apenas um segundo e ela percebe que falo sem alegria alguma. Talvez minhas células mostrem as coisas raras que a ciência chama de estudo de caso. De minha parte apenas a preocupação com um pulsar que parece vai diminuindo. Para além desse ritmo desacelerado, apenas as idéias intervalando meus sentidos como a redenção de tudo o que inventei para desfazer minha casa. No fim a enfermeira voltou-se para mim: isso passa! E colocou o curativo com um cuidado extra. Não fiz mais do que agradecer. Isso já passou, expliquei-me. E essa certeza liquefez meu coração. Amanhã, mais exames, vamos ver o que mais está se esvaindo de meus órgãos em agulhas e tubos de ensaio. Talvez fique o suficiente para contar a história de minha biologia, talvez tão bem analisado que te faça entender o que de confuso ficou indizível.J.M.N

P.S. não pude deixar de pensar nesta música, quando entrei no carro e senti-me só o resto do caminho.

Sentença

                                                                  "É uma estrada nua,
                                             nem mesmo a lua se atreve a lhe doar caprichos.
                                                       É pele inventada, destituída de músculos,
                                                                                      veias e sentidos.
                                                                                    
Direção de nada."

                                                                   (O oráculo do grão - texto XIII)

É quase certo que há vantagens no esquecimento, mas no fundo eu as substituiria todas pelas resistentes mágoas de um amor desfeito em meio a traições, perigos e não ditos. A humanidade tropeçou no amor e não o contrário. E havia aquela mulher atirada na varanda, chorando abandonada me pedindo pelo amor de deus para esquecê-la, pois seu desespero era não poder resistir às minhas investidas e eu, de minha parte, assaltado pelo terror de querer confessar minha vaidade, minha fragilidade e covardia diante do monumento de sua entrega, apenas enxuguei as lágrimas e essa foi a pior decisão que tomei na vida. Ao ver suas unhas bem feitas, seu vestido passado com gosto e cuidado, suas presilhas de cabelo bem postas conforme sua vaidade recente, tive uma raiva de mim mesmo, pois parecia que havia destruído a sua beleza natural, havia drenado suas forças para o vazio de minha espera pelas sombras de um passado, nem muito belo, nem muito amável. Olhei àquela enorme figura que se assomaria aos meus fantasmas mais assustadores – como quando em criança vi o seio avantajado de minha ama a procurar-me para o alimento da manhã. Em tons agrestes de verde e cinza, minha vista foi-se escoando de seus significados e passei a contemplar a mais bela forma que jamais vira, quase sem saber se existia ou se era produto de minha imaginação. Ali, estirada sobre seu choro corrido, olhei-a muito mais dona de si do que eu jamais poderia ser e soube que havia cruzado uma fronteira proibida. Havia alcançado às terras desoladas da doença de estar sem ser e como fosse possível esconder meus medos, dei-lhe a mão pedindo-a para sair. Foi quando ela me olhou nos olhos e disse sem nenhum tipo de mágoa ou amor: nunca mais sairei dai! E apontou para o meu peito. Naquele instante, soube de pronto que jamais estaria sozinho.J.M.N

terça-feira, 26 de maio de 2009

Holden - Fantomatisme

O meu conceito de um dia feliz inclui o reencontro, a amizade, o inesperado de coisas enternecedoras. Talvez por isso eu tenha passado o dia todo de hoje com um risinho meio contido. O disco da dupla francesa Holden saiu assim, sem aviso nem nada, pra que a felicidade fosse intensificada pela surpresa. Os compassos, os descompassos, as músicas delicadas e ao mesmo tempo complexas, com inúmeros andamentos, tudo nos leva num enlace com momentos bons, vividos com pessoas amadas, filhos e sobrinhos em volta, mesa posta, família. Tudo isso tem na música deles. Não sei francês, mas mesmo assim me sinto totalmente acolhido dentro desse disco que, como sem propósito, irá me acompanhar por algum tempo ainda. Deixo aqui a tracklist do disco novo e o vídeo do cartão de visita da dupla, a música Ce Que Je Suis. W.D.C

01. Les animaux du club 03:59
02. Dans la glace 03:32
03. MIA 03:47
04. La fin d'une manche 04:00
05. Un toit étranger 03:57
06. Où sont vos bras, Monsieur ? 04:15
07. Longue est ma descente 03:41
08. Maureen, Katie, Maya aussi 03:50
09. Les grands chevals 03:22
10. LA CARTA 03:28

Diário da tua ausência I

25.05.09

A porta bate. Existe no ar uma série de arranhões e ferimentos ditos. A vergonha impede o caminho do olhar - o meu. Outras coisas tantas retornam para somar-se ao nada que se instala. Vaga de conforto, de pertencimento. Uma sensação de estar sem dentro. No fundo do ouvido, um sopro de segredos ainda frementes, inegáveis, porém sinceros, mas que na luta por um pouco de razão agasalhan-se na confissão silenciosa de quem perdeu. E não saem; morrerão doídos feito mãos envergonhadas. Não encontro dádivas para ofertar. Oração nenhuma vai sossegar minhas noites. Nossa foto, abraçados no frio de fevereiro, voltou à estante. Ficará lá para sempre, reconhecida como a única sanidade habitada, como a felicidade que anunciaste irrecuperável. É irremediavelmente doloroso sentir-se demolido, aniquilado. Falido por não ter meios de limitar meus investimentos, meus gastos. A vergonha senta ao meu lado e toma uma dose de vodka. Acabamos juntos a bebida e ela - a vergonha - antes de mim anuncia seu sono. Neste preciso momento finalmente fiquei só. Lembra dos quebra-cabeças a dois? Não os tire de tua parede. Tento sem sucesso recompor o que me reuniu ao saldo dos desesperados, dos mortos de fome. Insaciáveis pelos gostos intensos, mas fugazes. Tento lembrar de quando virei este ser que desconheço, mas desisto quando me lembro de tuas palavras: foi assim sempre. Quase sem forças para botar-me na cama, deitei com o corpo dormente. Não lembro das rotas que tomei para o esquecimento, mas lá cheguei, quase perto de despertar e reconheci o fundo branco do recomeço, com menos brilho do que naqueles anos em que nos pertencemos... Por hoje, apenas por hoje, queria realmente saber te explicar quem eu sou e, não fosse pedir demais, saber um pouco mais disso para mim também. J.M.N