terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Somos todos um teu poema


Hoje percebi que os anos já te pesam como segredos de ex-amantes. Que contas histórias com nitidez de detalhes: a renda do teu vestido de casamento, o nome dos teus netos legítimo e dos contrabandeados por essa tua descendência sem freios. Narradora trabalhada nos preciosismos, mas que não lembra pra quem contou as histórias, repetindo-as como quem quer se eternizar.

Afumentar, jejuar, catar, alinhavar, cerzir. Esses verbos que, de tanto uso, só a ti pertencem. Dos tempos anteriormente a nós mesmos vão saindo psicologias que nos explicam a todos.

Daí de casa nos observa, rainha, como formigas morcegando a perdição.

Esses filhos teus. Já obraram coisas que mais se assemelham a oficinagens do capeta. Mesmo assim nunca abriste o portão desse vazio pros crentes que batiam. Te reservava às novenas e Deus te obedecia (ai d’Ele!). Quando salvar era a tua súplica, ele acorria. Quando era para o Bem trazer e o Bem deixar, Deus operava bonitezas de não poder. Inclusive na vida deste um no que a tua demão parece que já se desbota.

Mas não. Não te ponhas em engano. Eu cheirava os livros do Zeca a te buscar, essa tua ternura que eu fingia ser pra ele sendo pra mim.

Queria teu olho abandonando a máquina e rebrilhando a avivamentos como quando eles se fecham na roxura do açaí. Queria tua mão pintada e o teu cabelo, mais uma vez, vermelho. Poder te dar uma última chance de reveres os teus sete erros como quem mira sete versos, e não encontra um poema. Queria essa tua liberdade de viver apenas pra quem se ama. WDC

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Fúria

“Thou therefore whom thou only canst redeem,
Thir Nature also to thy Nature joyn;
And be thy self Man among men on Earth,
Made flesh, when time shall be, of Virgin seed […]”

John Milton – Paradise Lost, Book II, lines [280-285]

O Paraíso é certamente sem sentido. Dominante o gosto pela morte. Vem sempre a despeito de tudo. Remédios, coragens, escritos. Esforço-me para usar a maquiagem de todo dia, por o disfarce e sair por ai. Hoje não, hoje não. Espalho os frascos de mentira. Serei apenas eu e minhas todas desgraças. Hoje o contato com a mais secreta estrutura me acende. O mais essencial e primitivo me expulsa da cama com a força dos megatons de Hiroshima. Primeiro, esmurro a parede. Depois decreto a morte de alguns amigos de antigamente. Execro o sorriso dos vizinhos e vejo tão pouco à luz do dia que dispenso a visão. Será, então, o que sinto. Apenas isso. Mais do que posso diminuir com eufemismos. Prefiro a boca amarga da dúvida que de cima do muro acena solícita e sedutora. Como podem as ruas me dar caminhos? Não sigo seus mapas. Quero estar perdido. E quero tanto que orações invento, que deuses exumo. Não vou por essa retidão sem graça que me impinge os parentes, os professores o amor até. Vou degradado e sincero, a preferir o sangue dos pés que andam à saudável refeição de quem não sai do espelho. Isso me custa um bom pedaço. Pedaço que dou como fosse uma fúria, como se fosse a carne de Milton – “And be thy self Man among men on Earth, Made flesh, when time shall be”. E se é isso e apenas isso o que tenho – a fúria – dou-a também a quem neste dia se encontrar comigo. Fúria de ver tudo novo e cuspir aos que me acusam de absurdo, fúria de descobrir que nenhuma tragédia é maior do que o alcance das palavras que aprendemos. E continuar aprendendo palavras para escarnecer o sentido duvidoso da alegria, fazendo-a tão sensível ao corte, como é a solidão quando invadida. J.M.N.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Detesto Belém

________________________________________________________________________

Escrevi esse texto em 2010, esperando poder publicá-lo numa revista da terra. Infelizmente não foi possível. O amigo Angelo Cavalcante o abrigou em seu blog Veia Pop e por lá ele ficou conhecido. Recebi uma ótima quantidade de e-mails comentando o texto e fiquei com a impressão de que tinha acertado a pena. Num começo de ano onde pipocam discussões acaloradas sobre Belém nas redes sociais, evolvendo, inclusive, amigos meus, acho que vale à pena reproduzi-lo em nossa casa. Entre idas e vindas, bem ou mal, falar sobre Belém é sempre instigante.
________________________________________________________________________

Detesto Belém! Seus azulejos e sobrados antigos. Detesto esse charme de cidade-luz, incrustada na densidade das matas do Norte. Algo que não nos abandona nunca, mesmo que estejamos de passagem. Não gosto de imaginar as ruas cercadas de mangueiras centenárias por todo o centro da cidade. Muito melhor percorrê-las, sentir o corpo de suas lendas. E partindo de um desagrado ambivalente a respeito da sombra de suas árvores e da distância entre aqui e meus sonhos é que entendi que meu coração já estava cercado de presenças, da alegria dos encontros, dos cheiros esquisitos das coisas de minha terra. Descobri, em meio ao tumultuo de ir e vir, que o mais triste seria não ter raízes, não pertencer a lugar algum, não poder dizer que nasci em uma cidade cujo nome em si é um poema – Santa Maria de Belém do Grão Pará.

Em minha cidade tem chuva farta, a qual não cansa até que sequem as nuvens e estas, vizinhas da floresta mais imensa que já se viu, não sossegam assim tão fácil. O choro dos céus regula a vida das pessoas, ordena o dia e faz com que os amantes marquem seus encontros para depois de passar a chuva. Um banho nessas águas longas de, às vezes, dias seguidos é mais do que uma experiência, do que uma brincadeira infantil, é sentir-se limpando escaras escondidas no centro de nossa existência. A chuva de Belém é como um outro rio a descer sobre nós.

No mercado do Ver-o-Peso, mulheres certas das simpatias de amor vendem suas efusões em garrafas coloridas e perfumadas, chamando os clientes a resolver seus problemas sentimentais com alguns banhos de ervas e iguarias que só existem aqui. Há praças e cantos que exalam história e triunfos de civilidade e vanguarda. Foi de seu Forte do Presépio que partiu a primeira esquadra de guerra que acudiu o vizinho estado do Maranhão cercado pelos holandeses, no século XVII.

Quando estou longe, o pensar em minha terra dói muito além de meu peito. Dói no esqueleto que sustenta minhas aventuras pelo mundo e minha estrutura de gente recorre às linhas de Dalcídio Jurandir, Rui Barata e Paes Loureiro, além do Verde Vago Mundo de Bené Monteiro. Quando estou longe, doem-me os versos da canção de mestre Edyr Proença e Adalcinda Camarão, em cujas linhas se pode reconhecer um amor de adoração infinita pela cidade natal, traçado no morno de tardes descalças, nas lembranças do povo, do rio e dos peixes. Estas lembranças salvaram muitas noites solitárias em terras frias e distantes.

Tudo se vê em Belém. Esquisitos monumentos ornando as vias. Casas antigas com imagens de santos nos cumes mostrando a força de uma fé que congrega a todos e se renova. E a cidade anda pelo mundo. Seus filhos são fiéis adoradores do pertencimento, bem mais que simples bairrismo. Espalhados pelo Brasil e pelos continentes, ao falar sobre Belém, parecem querer traduzir a necessidade de levar a cidade no bolso, onde quer que se vá, como uma memória mágica, um amuleto para as horas de saudade intensa ou um código para o reconhecimento dos pares. As pessoas daqui não dizem que são familiares de Silvas, Mattos ou Oliveiras. Elas são de Belém.

A Belle epoque nos deixou o Theatro da Paz, onde ainda hoje podemos assistir festivais de ópera. Tem uma praça que congraça boêmios em frente a uma igreja, onde se podem escutar raridades da música brasileira ao ar livre, comendo um bom peixe frito e escutando as histórias dos loucos de plantão. A cidade tem tradição em reunir sagrado e profano, de concluir os rituais religiosos com festas pagãs de rara beleza e personagens inesquecíveis.

Em outubro de cada ano, as pessoas, como santos, andam e rezam e pedem graças, compõem ofertórios, visitam parentes, cozinham pato no tucupi, maniçoba e amenizam suas culpas. Caminham horas pelas principais ruas da cidade, numa procissão pela Virgem de Nazaré. Muitos destes fiéis vão atados a uma corda que, vista de cima, parece uma imensa cobra d’água a serpentear no sacrossanto espaço da fé – o Círio de Nazaré é para mim o boato mais forte de que neste ponto da Amazônia, encontram-se muitos dos bens celestiais, a confirmação de que o Brasil tem terra e gente abençoadas.

No último dia desta festa, os fogos abrem o manto negro da noite e riscam nos olhos da multidão como que estrelas efêmeras de cores várias trazendo para dentro de nossa genealogia, uma lembrança de existência bem próxima ao paraíso. Como não ter o ritmo do coração alterado ao ver o espetáculo da noite em festa? Como não percorrer o arraial e tentar a sorte nos folguedos? E como não provar as comidas, não querer saber da história ou conter os sentidos nesta girândola de novidades?

Assim como vive banhada pelas águas do rio Guamá, Belém banha as palavras que escrevo desde sempre. E essa presença em nossa biologia é difícil de vencer. Mesmo tendo de criar asas, de buscar fugir um pouco dos seus contrastes e derramamentos, e ir cheirar o mundo que sempre vi nas revistas e sobre o qual ouvia nas histórias de família e amigos, não foi fácil partir. Não foi simples deixar estas ruas. Impossível esquecer a arquitetura, ainda mais achando seus traços em lugares como Minas Gerais, Bahia e mais distante, em Portugal.

Detestei Belém por me causar esse tipo de espanto. Por se esconder em minhas histórias sobre o que temos aqui – palácios, palacetes, a Catedral da Sé, as obras de Antonio Landi, a igreja de Santo Alexandre. Por promover texturas em minha fala delegando-me um sotaque único.

Como tudo o que se ama e teme, Belém vive em mim como a morena que primeiro inspirou meus versos, como a cigana que leu em minha mão a verdade líquida de minha alma, sublinhando que eu vinha de um lugar onde o céu tem estrelas únicas, que só reluzem deste lado do mundo. Algumas vezes tenho vontade de partir, outras vezes vontade de nunca tê-la deixado. Belém dorme junto comigo sempiterna e dolorida quando me ausento, escancarada e turística quando regresso. Oferecendo sempre algum canto novo, alguma nova forma de me seduzir e manter.

Conquistei títulos, avistei lugares, li manuscritos de poetas admiráveis, mas voltei correndo. Cruzei o Atlântico sem pestanejar, assim que senti que os sabores daqui morriam em minha boca, que meus amigos iam ficando íntimos de novas pessoas, dos novos lugares, dos monumentos e prédios reabertos. Dá medo pensar que esta cidade pode me esquecer. Que pode pensar que eu a traí em outros portos, em outras praças, maravilhado pelas descobertas. Quando parti sentindo raiva por sua existência, remoendo o infantil apego pelo que não era meu – o desconhecido. Quando atinei para sua presença em minha saudade mais sofrida, achava, presunçoso, que ela era minha. Foi de longe que descobri ser seu prisioneiro e como nos versos do poeta português Luis de Camões, este, sem dúvida alguma é um estar-se preso por vontade. J.M.N

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Imprudência

Para A.P.D.

Poucas vezes vi tamanha confluência de perfeições.
Olhos, cor, cabelos negros, atrevimento.
Incômoda presença que não me está ao lado, mas numa tela, solando sua incrível textura de impossível por muitas horas da minha tarde sobre as ondas da rede.
Será possível que eu esteja vendo um ídolo antigo, esculpido em virtual realidade? Não em bronze ou pedra – carne, osso, funções renais, coisas assim.
Tão viva que nem a distância do espaço ousa calar o que ela causa.
Olho-a com os temores de quando eu descobria meu corpo e de pronto me vem uma janela suspensa.
À noite, relicário dos amores primitivos, entravam ilusões e cristais pelo balcão onde eu esperava que o mundo me conhecesse.
Ferve a têmpora desacostumada a ser tomada de surpresa. Sinto esse corpo que não pode ser meu. Tão potente. Tão estrangeiro.
A imagem dela mais que perfeita em seminudez projetada, feita pelas mãos do fotógrafo para desmantelar a gente.
Arrasto o trabalho. Golpeio tudo que não diz respeito à perfeição. O dolo acontece por tê-la na ponta dos dedos, tocada na inviolável figura de musa.
Ela cede ao meu olho e parece piscar-me de longe. Uma única chance.
Seu maneio de cabeça da foto seguinte foi para mim, certamente.
Vou com fome.
Boca aberta direto à luz daquela imagem.
A língua em pluma sente o deslizar estéril da tela. Led ao que parece, sem gosto algum.
Ela não entrará nos meus sentidos por essas vias. Não há tato que eu possa dedicar a ela e então construo o que me recompensa.
A ideia de que foi apenas intuição.
De que alguém assim não pode existir. Se não a vejo frente-a-frente, inexiste.
Minha tarde está refeita.
A partir de hoje andarei com a cabeça baixa, impune por ter lambido a mera possibilidade e com medo de encontra-la por ai, tornando-se aquela que me diria para eu ter cuidado com o que desejo. J.M.N.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Porque ela disse “quem sabe?”

“Na dúvida me reconheço.
Quando ela propõe incertezas,
amo-a de fazer universos,
amo-a
como um demente animal.”

Cantídio – O livro dos esforços mínimos

Hoje acordei propenso a simplicidades e idolatrias. Me vens sem compromisso, mas por primeiro. Não herdaste nada do nosso último encontro. Eu, entretanto, fiquei com os pesos, os ouros, trejeitos até. Aumentas a frequência da tua música. Impetuosa e certeira como uma corredora de curtas distâncias. Me chamas aos fatos. E pedes. Que nosso maior encanto seja o silêncio esmagador dos nossos olhos se encontrando, a despeito do toque e do sabor que dedicamos um ao outro dentro dos beijos. Aproveito para chorar. Pois é impossível resistir ao arrebatamento do que dizes e perfazes em mim com esses pedidos e tão poucas loucuras. De minha parte, tenho essa enorme agonia ao ouvir teu nome palpitando em mim. Um frenesi desalmado que me entope os ouvidos e não repara nunca se está sendo depravado ou íntimo, mortal ou singelo. Não acho que deva pedir desculpas. Nossa energia de atração é essa. Uma estrela gigante em permanente nascer. Nada há de mais enérgico do que uma estrela nascendo. E no que declaro isso em voz amena estou implicado. Enlaçado na possibilidade de mais ser. Agora sim reclamas teu lugar devido. E como não há mais tempo para distâncias, desalojo meus órgãos e te ponho pra dentro. Tal como te sinto, me sentirás intensamente em nossas próximas pulsações e sentidos. Mesmo que nosso tempo não passe de um segundo. J.M.N.

Um líquido

Sob o molho da chuva me esparso. Sinto-me líquido, porém impenetrável. Esta força decantada das nuvens me redime. Estou completo. Agigantado. De meus dedos aguados destila-se minha essência. Encontro-me com as plantas, com as náuseas dos outros, com suas esperanças. Como água, flutuo sobre os cantos do telhado, o passado descoberto por entre as frestas. Vou-me espalhando. Acabo em lago. A chuva para e eu deitado ainda insone. Esta noite lembrarei a experiência. Contarei a ela que me dissolvi em hidrogênios. Essa noite quando abraçar minha própria esperança, o etéreo e o límpido podem não estar, mas certamente estarão minhas certezas e, dentre elas, as vontades de um mar, o amor de um porto e o vento que me espalhou como chuva pelos quatro cantos do mundo pela manhã. J.M.N.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Sobre o que foi decidido

Retorno do arco dos sonhos e o que vejo é a realidade ainda mais dura e inquieta. Falta-me o costume de receber as coisas com naturalidade. Cada nova beleza – uma conquista; cada tragédia – meu último dia. Sigo pensando: como fazer para abraçar o que é normal? A dúvida cai quando a lembrança engraçada reflete: não existe tal coisa – o normal. E então posso cantar para ela com seu enxoval costurado desde os 11 anos. Posso absorvê-la na indiscutível maciez de um desejo exaurido e gostar ainda mais do que ela me foi. No mesmo instante, outro me vem. Mesmo que negue, que surja de supetão uma saída para sua interminável tristeza, posso ver dentro dos olhos dele a comoção cruel que o tempo passado lhe causa e dizer-lhe com a mesma calma dos que aceitaram à pena: essa dor é para sempre. Este meu estado de agora, como uma era descrita em seus milênios, porém vivida todos os dias, como se fossem comprimidos de um passado secular. Vem em meus escritos o nome da casa. Ocorre-me o perdão que deve ter sentido o assassino ao morrer pelas mãos de um seu semelhante. E penso nela mais uma vez. Resistindo às evidências, apesar da razão pura que consagra. Deixo, sem rir, a sala das lembranças e vou direto ao porto do abraço. Envolvente. Sólido. Feito de humanidade e sentido. Interminável no tempo das letras, meu castigo se locomove entre seus braços. Enquanto escrevo romances e contos fictícios, ao mesmo passo que invento personagens e perigos, ela golpeia a realidade me oferecendo um suco, um doce ou outro abraço. Por um fino segundo. Espalhada entre o tempo de eras e a seta de tempo, indicativa do presente, ela é como ilusão e verdade, matéria e antimatéria. Contínua e descontínua em meus desejos. Fazendo-me bem quando necessário e talvez, por isso mesmo, eu sinta a voz da sabedoria e da idade, dizendo-me em tom solene e finalmente amigável, que eu tomei as decisões corretas, ainda que para mim, tenha sido tão somente a decisão de amá-la. J.M.N.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Para o ano que chegou

Todos desejam as suas felicidades antes que o ano acabe. Faço-o depois dele ido. Acho justo que descansem seus dias exaustos, e, desrespeitoso que se os esqueçam antes mesmo de acabarem. Pois com o ano que acaba ficam as coisas que já não suportamos, entrementes aquelas que nos foram caras em seu tempo e continuam. Termina-lo antes de seu último segundo é, com efeito, empurrar a sujeira para debaixo do tapete. Um dia ela volta. Assim como amputar o efeito benéfico do que foi bom, faz da sujeira escondida o menor dos pecados.

Dou conta de que já estou no segundo dia de um ano novo quando a escuto dizer bom dia. E isso é hoje – presença e escolha acontecidas humanamente. E vejo que as coisas sucedem, não transgridem ou retornam. Nossa invenção mais funesta – o tempo em linha reta convoca. Há também um beijo longo e amoroso. O ano novo já é nosso. Finalmente novas horas e tragédias. Novas marcações do tempo, do que se deve fazer, do que não se fez. E o que ficou de anteontem, um ano antes?

Para o espelho mais uma ruga, uns cabelos brancos, minha tristeza costumas e bem aceita – minha propriedade. Veio ainda dormitando junto ao respirar espesso da manhã cinzenta, a ânsia descomunal de querer tudo o que é bom e justo ao meu filho. Além disso, a linha verde de uma esperança insistente e desejosa: a semente que espera florescer em breve e ser acolhida pelas mãos bentas das infinitas possibilidades próprias dos primeiros momentos da vida. Há um nascimento no porvir, maturado desde antes de minha espécie.

Ainda passou para este ano de agora a figura de minha avó depois de uma queda terrível, sorrindo sua simplicidade e resignação não como um castigo pelo que não sou, mas como a substância que, agora reconheço, também faz parte de mim – aceitar. A culpa segue seu curso e atesta suas obras por dentro de mim. Fiscalizo-a com a pertinácia devida – ela define, eu a defino – sou tanto dela como ela é minha e, portanto, somos necessários um ao outro, parceiros cooperados de um mesmo fazer – a existência.

O ano novo, propriamente dito, já veio riscado com meus planos, com a lista interminável de tarefas que tenho de cumprir para sobreviver ao dia-a-dia e mais aquelas que não serão cumpridas jamais, sobre as que o sótão da consciência atormentará ou simplesmente deixará na sombra, esquecidas mesmo, sem nenhum efeito deletério ou nostalgia atrelada. E todo risco se pode apagar. Não há tinta perpétua ou plano que não mude.

Então é isso! Feliz e infeliz ano de anteontem. Esteja bem na sua morada de história. Vou andando neste novo e ainda pouco bagunçado calendário. Ando por sobre. Vendo o que me é possível ver. Não pretendo que seja apenas feliz. Só a felicidade não conforta e não faz bem. Espero o que me espera à frente ou às costas dos dias. Branco, preto, azul cobalto. Espero que venha potente. Que me deixe puto, que me faça ultrapassado, que me cause mais cicatrizes e ódio e me faça cometer asneiras e ser o que se pode: imagem e semelhança do deus em nós. Seja ele quem for.

Mas quero também as janelas e portas. Novas em folha para que eu as ultrapasse e aceda aos novos cômodos do destino. Com camas macias ou pedras para fazer de travesseiros. Quero que o cuspe do outro me sirva de banho, me ponha no lugar da insignificância charmosa de quem usa, certamente, seus personagens como irmãos e como escudos. Vou dizer que quero a beleza impagável dos novos versos que eu comerei, das muitas pernas e bocas que me farão temer o que carrego no cerne da minha humanidade. E, sim, espero que cada um dos anos que me constituem sejam louvados, por preces, canções ou por meus votos de amor.

J.M.N.