sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Detesto Belém

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Escrevi esse texto em 2010, esperando poder publicá-lo numa revista da terra. Infelizmente não foi possível. O amigo Angelo Cavalcante o abrigou em seu blog Veia Pop e por lá ele ficou conhecido. Recebi uma ótima quantidade de e-mails comentando o texto e fiquei com a impressão de que tinha acertado a pena. Num começo de ano onde pipocam discussões acaloradas sobre Belém nas redes sociais, evolvendo, inclusive, amigos meus, acho que vale à pena reproduzi-lo em nossa casa. Entre idas e vindas, bem ou mal, falar sobre Belém é sempre instigante.
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Detesto Belém! Seus azulejos e sobrados antigos. Detesto esse charme de cidade-luz, incrustada na densidade das matas do Norte. Algo que não nos abandona nunca, mesmo que estejamos de passagem. Não gosto de imaginar as ruas cercadas de mangueiras centenárias por todo o centro da cidade. Muito melhor percorrê-las, sentir o corpo de suas lendas. E partindo de um desagrado ambivalente a respeito da sombra de suas árvores e da distância entre aqui e meus sonhos é que entendi que meu coração já estava cercado de presenças, da alegria dos encontros, dos cheiros esquisitos das coisas de minha terra. Descobri, em meio ao tumultuo de ir e vir, que o mais triste seria não ter raízes, não pertencer a lugar algum, não poder dizer que nasci em uma cidade cujo nome em si é um poema – Santa Maria de Belém do Grão Pará.

Em minha cidade tem chuva farta, a qual não cansa até que sequem as nuvens e estas, vizinhas da floresta mais imensa que já se viu, não sossegam assim tão fácil. O choro dos céus regula a vida das pessoas, ordena o dia e faz com que os amantes marquem seus encontros para depois de passar a chuva. Um banho nessas águas longas de, às vezes, dias seguidos é mais do que uma experiência, do que uma brincadeira infantil, é sentir-se limpando escaras escondidas no centro de nossa existência. A chuva de Belém é como um outro rio a descer sobre nós.

No mercado do Ver-o-Peso, mulheres certas das simpatias de amor vendem suas efusões em garrafas coloridas e perfumadas, chamando os clientes a resolver seus problemas sentimentais com alguns banhos de ervas e iguarias que só existem aqui. Há praças e cantos que exalam história e triunfos de civilidade e vanguarda. Foi de seu Forte do Presépio que partiu a primeira esquadra de guerra que acudiu o vizinho estado do Maranhão cercado pelos holandeses, no século XVII.

Quando estou longe, o pensar em minha terra dói muito além de meu peito. Dói no esqueleto que sustenta minhas aventuras pelo mundo e minha estrutura de gente recorre às linhas de Dalcídio Jurandir, Rui Barata e Paes Loureiro, além do Verde Vago Mundo de Bené Monteiro. Quando estou longe, doem-me os versos da canção de mestre Edyr Proença e Adalcinda Camarão, em cujas linhas se pode reconhecer um amor de adoração infinita pela cidade natal, traçado no morno de tardes descalças, nas lembranças do povo, do rio e dos peixes. Estas lembranças salvaram muitas noites solitárias em terras frias e distantes.

Tudo se vê em Belém. Esquisitos monumentos ornando as vias. Casas antigas com imagens de santos nos cumes mostrando a força de uma fé que congrega a todos e se renova. E a cidade anda pelo mundo. Seus filhos são fiéis adoradores do pertencimento, bem mais que simples bairrismo. Espalhados pelo Brasil e pelos continentes, ao falar sobre Belém, parecem querer traduzir a necessidade de levar a cidade no bolso, onde quer que se vá, como uma memória mágica, um amuleto para as horas de saudade intensa ou um código para o reconhecimento dos pares. As pessoas daqui não dizem que são familiares de Silvas, Mattos ou Oliveiras. Elas são de Belém.

A Belle epoque nos deixou o Theatro da Paz, onde ainda hoje podemos assistir festivais de ópera. Tem uma praça que congraça boêmios em frente a uma igreja, onde se podem escutar raridades da música brasileira ao ar livre, comendo um bom peixe frito e escutando as histórias dos loucos de plantão. A cidade tem tradição em reunir sagrado e profano, de concluir os rituais religiosos com festas pagãs de rara beleza e personagens inesquecíveis.

Em outubro de cada ano, as pessoas, como santos, andam e rezam e pedem graças, compõem ofertórios, visitam parentes, cozinham pato no tucupi, maniçoba e amenizam suas culpas. Caminham horas pelas principais ruas da cidade, numa procissão pela Virgem de Nazaré. Muitos destes fiéis vão atados a uma corda que, vista de cima, parece uma imensa cobra d’água a serpentear no sacrossanto espaço da fé – o Círio de Nazaré é para mim o boato mais forte de que neste ponto da Amazônia, encontram-se muitos dos bens celestiais, a confirmação de que o Brasil tem terra e gente abençoadas.

No último dia desta festa, os fogos abrem o manto negro da noite e riscam nos olhos da multidão como que estrelas efêmeras de cores várias trazendo para dentro de nossa genealogia, uma lembrança de existência bem próxima ao paraíso. Como não ter o ritmo do coração alterado ao ver o espetáculo da noite em festa? Como não percorrer o arraial e tentar a sorte nos folguedos? E como não provar as comidas, não querer saber da história ou conter os sentidos nesta girândola de novidades?

Assim como vive banhada pelas águas do rio Guamá, Belém banha as palavras que escrevo desde sempre. E essa presença em nossa biologia é difícil de vencer. Mesmo tendo de criar asas, de buscar fugir um pouco dos seus contrastes e derramamentos, e ir cheirar o mundo que sempre vi nas revistas e sobre o qual ouvia nas histórias de família e amigos, não foi fácil partir. Não foi simples deixar estas ruas. Impossível esquecer a arquitetura, ainda mais achando seus traços em lugares como Minas Gerais, Bahia e mais distante, em Portugal.

Detestei Belém por me causar esse tipo de espanto. Por se esconder em minhas histórias sobre o que temos aqui – palácios, palacetes, a Catedral da Sé, as obras de Antonio Landi, a igreja de Santo Alexandre. Por promover texturas em minha fala delegando-me um sotaque único.

Como tudo o que se ama e teme, Belém vive em mim como a morena que primeiro inspirou meus versos, como a cigana que leu em minha mão a verdade líquida de minha alma, sublinhando que eu vinha de um lugar onde o céu tem estrelas únicas, que só reluzem deste lado do mundo. Algumas vezes tenho vontade de partir, outras vezes vontade de nunca tê-la deixado. Belém dorme junto comigo sempiterna e dolorida quando me ausento, escancarada e turística quando regresso. Oferecendo sempre algum canto novo, alguma nova forma de me seduzir e manter.

Conquistei títulos, avistei lugares, li manuscritos de poetas admiráveis, mas voltei correndo. Cruzei o Atlântico sem pestanejar, assim que senti que os sabores daqui morriam em minha boca, que meus amigos iam ficando íntimos de novas pessoas, dos novos lugares, dos monumentos e prédios reabertos. Dá medo pensar que esta cidade pode me esquecer. Que pode pensar que eu a traí em outros portos, em outras praças, maravilhado pelas descobertas. Quando parti sentindo raiva por sua existência, remoendo o infantil apego pelo que não era meu – o desconhecido. Quando atinei para sua presença em minha saudade mais sofrida, achava, presunçoso, que ela era minha. Foi de longe que descobri ser seu prisioneiro e como nos versos do poeta português Luis de Camões, este, sem dúvida alguma é um estar-se preso por vontade. J.M.N

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