Quando ia dormir apenas eu sabia que querias o lençol do avesso, com as rugas e as bolinhas de linha formadas pelas lavagens, distantes da tua pele, para que não houvesse arranhões no finíssimo sono que trazes desde a infância.
Eu trazia a chuva para os teus ouvidos, cantando antiquíssimas canções de embalo que aprendi com minha ama e ela com sua mãe e com minha avó, sempre zelosa em não deixar nosso sono sozinho, preenchendo de cantos à escuridão por dentro das pálpebras.
Era libertador sair do teu lado e ver que estavas tranquila. Uma vez que tinha a certeza de que dormias, o mundo me pesava menos e ia sorrindo dizendo a mim mesmo que eras feliz com estes pequenos enredos que faziam começar e, principalmente, acabar nossos dias.
E por tempos vivemos assim, começando e acabando o dia um do outro. Fomos feitos para isso. Veio a idade e tínhamos que comparecer aos almoços, aos domingos em família, às promoções do supermercado, ao bolo para a reunião com os amigos. De repente não sabia mais te colocar para dormir.
E sempre esperava que cobrasses o avesso do lençol, numa infantil provocação noturna. Começamos a chamar nossa casa de “lá”, e com apenas esse gesto de língua corrente matamos a substância que nela nasceu e vicejou linda durante anos.
Apesar disso, hoje, daqui desta distância impressionante que me permiti com esta jornada, queria que soubesses, mantive o chiste de virar meu próprio lençol do avesso, de não querer unhas em meu descanso e assopro-lhe um vento chuvoso para que lembres: jamais seremos os mesmos. A noite que corra para saber como deve terminar. Eu sei que minha trilha acabou naquele dia de março. J.M.N.
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