quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Ídolos

“Ídolo – do grego aedolum: imagem”

Ando no frio de janeiro por sua pele de mundo, suas calçadas e corcundas. Contradições, malefícios e energia. Criança, ainda estimando quanto posso gastar. Quanto posso perder. Quanto devo investir no pensar subsistente depois de deixa-la. As luzes das ruas, os negros do Harlem, os yankees de fato. Meninos em carros de luxo, tenazes e inexpressivos como as linhas da bolsa de valores desenhando os destinos como traços assassinos ou sorrisos sádicos na tela negra de um computador. Destino, quem sabe. Chego ao restaurante e peço o mesmo prato de vinte anos. A comida chega bem quente. Ao meu lado o passageiro de toda minha autonomia de agora. Meu filho. Mastiga o sabor da cidade com olhos atentos aos quadros de rock. Lou Reed canta Perfect Day em algum canto. Mas talvez seja apenas minha imaginação. Estamos na Times Square, oito e meia da noite, pertinho de uma delegacia de polícia que recebe prostitutas desgarradas. Há certa gentileza nos passos daquelas mulheres e nos braços dados dos policiais que as conduzem. Talvez pelo frio ou pela coincidência de ex-clientes reencontrados. Tudo acontece bem rápido. Sei que alguém morre em redor. Alguma desgraça acontece na vizinhança com um imigrante equivocado que depositou todas as esperanças nas costas daquela cidade. Alguma coisa acontece comigo. E prometo, não sei por que, nunca mais voltar. Já estava na calçada, à frente do restaurante, quando isso me ocorreu. Quis voltar no tempo, para quando entrei ali pela primeira vez e senti uma felicidade me invadindo ao som de alguma música do U2. Desta vez senti uma indiferença crescida, viscosa. Quase desagrado. Mas ai nasceu um sorriso. Meu filho pede para eu tirar uma foto sua. O quadro se eterniza e finalmente entendo. Não é a parede cheia de artefatos dos meus ídolos que me enche os olhos desta vez. Não são as luzes dos outdoors e sinais de trânsito frenéticos. É a presença dele. Com a mesma idade que eu tinha quando me encantei pela cidade. O frio congela a lágrima cadente que cairia abundante, mas sei que ela liquefará quando eu olhar de novo a fotografia daqui a alguns anos. Não preciso mais do encanto posh da Big Apple. Não preciso dizer que viajei para lá desejando encontrar as tribos, as belezas e as desgraças da cidade grande. Viajei no tempo naquele instante, encantado pelo que nascia em meus olhos. Instante do qual a máquina de fotografias captou apenas um contorno. Dentro de mim, além da foto, do quadro e da pose dele, seus dezessete anos de vida brilhando incomumente mais do que todas as placas luminosas da avenida. Todas as dúvidas sobre como fazê-lo sentir-se bem ou feliz, simplesmente dissiparam. Toma, agora bate uma foto minha que senão eu esqueço quem sou, foi o que eu disse entregando-lhe a câmera. Antes de me enquadrar ele me disse: Meu pai, oras. E tirou a foto. Como se fosse alguém muito mais experiente do que eu. Sendo, a olhos vistos o que eu sempre quis que fosse, uma grande parte das coisas que eu amo. Aquilo que eu mais lembraria numa viajem ao centro do mundo. J.M.N.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Dez Encontros (III)

Espera um pouco. Quero aproveitar que abristes a porta pra te falar algo. Te contar da falta que fazes na mesa do café. Que perder o sono tornou-se insuportável sem a surpresa de te ver chegar devagar na sala com os olhos ainda intocados pela madrugada. O que quero te dizer é simplório. Talvez não seja mais que ficar em silêncio diante de ti a me espantar com as nossas semelhanças. Desculpe te dizer, mas quanto mais te diferencias mais te pareces. O teu quarto cerrado me faz lembrar aquelas gaiolas cobertas com um tecido branco e um passarinho dentro. Não ver esses passarinhos me deu sabedorias de adolescências.

Sei que dentro do teu confinamento enfrentas monstros e esperas um beijo que te conclua. Mas não que eu ouça. Não que teu irmão veja quando te brecha deitado no chão por essas horas de infinita solidão que é a infância. Ele te ama como se ama a própria vida. A saudade que sentimos de ti tem cheiro de penas caídas. A tua beleza me exaspera, tem vezes. Piora quando sei que as promessas de infância todas já perderam a validade.


Desculpe meus gestos e sentimentos irrefletidos. Volte pra sua oficina de voos e desassossegos. Aprendi contigo que vida é metáfora e metamorfose. Tenho aprendido a esperar, sabe. Qualquer dia te busco na escola e conversamos. Gosto da tua voz baixa, da tua timidez e desse jeito de estar no mundo sem querer ser notada. Só não me deixes à mercê da idade e da memória, e sem essa coisa que verdeja dentro de mim quando ouço o barulho da maçaneta do teu quarto. WDC

domingo, 19 de janeiro de 2014

Dez Encontros (II)

Não dava crenças àquela solidão. Havia os peixinhos muito ocupados em existir. Faziam-lhe uma líquida companhia. Ela dava-lhes comida todos os dias e água novinha todo final de semana. A eles, aos peixinhos, sobrou todo zelo, preocupação e as reconfortantes queixas cotidianas: cuidar ancorava sua vida a algo delicado e definitivo. Pensar isso a fez sentir-se pertencida. Há 6 meses perdeu seu homem numa dessas curvas demasiadamente abertas que a vida, sorrateira, vai interpondo entre dois seres até transformá-los em breves fantasmas do que foram. Baixou a cabeça e olhou pra frente daquele jeitinho que ele adorava. O espelho se esforçava pra dizer a ela a verdade da forma mais gentil. Notou os sulcos crescidos percorrendo os subúrbios dos seus olhos. Foram dois anos de rega e escavação, eles tinham mesmo que crescer. Pensou neles como quem se abandona ao tempo e compra um conforto. Já não se reconhecia nessa parte de si nascida da barriga de um homem. Criara uma amizade com o presente. Deixou os ventos avarandarem suas ideias. Restada naquele encontro consigo mesma, não olhou pra trás nem pra certificar se a nova lingerie cumpria a promessa de tornar o viço da juventude mais que uma doce lembrança. Aqueles pés de galinha não caminhariam pra longe de seus olhos assim fácil. Pegou um de seus cremes, enroscou o tampa e afundou o anelar na pasta branca. Sorriu e desenhou um círculo em volta do pezinho do olho direito. Estava em paz. WDC

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Por não te ver

Não te vejo nas cinzas espalhadas na mesa. Não estás deitada em meu sofá. As coisas que ouço ao teu respeito são mais ilusões auditivas que realidade. Ouço-me, portanto, a dizer coisas sobre ti. Coisas que nem sempre são boas. É esta ausência. Sentido aludido quando não estás, porque não sei nada de fato sobre ti. Invento. Inventas-te ao longo do nada que sei. Em razão de não estares, crio um tempo instrutivo, minutos e horas de informação e verdade. Vão passando a me dizer que te quero, que não devia ter partido. São meus instrumentos de saber e punição. Descubro-me entre as palavras de Pedro Paixão, entre as fotos que tiramos desde o mirante de Santa Clara onde fiquei. Sim, foi lá que me perdi. Meio homem, meio bicho. Impulsivo a desbridar teus lábios, tuas vergonhas, tuas defesas. Por não te ver eu pinto corais com tuas tintas. O mar entre nós é um braço do rio de minha terra. Vou aos nados se precisar. Senão desatraco tua jangada e peço-te, pela última vez, para ficares perdida por minha causa e alegarei nada menos que amor e brevidade, natureza e quietude. Enfim, tudo do que foram feitas nossas noites e as inúmeras tardes que defendemos lado a lado nosso silêncio comum. J.M.N.

 

domingo, 5 de janeiro de 2014

Domingo

O que me salva
É essa coisa que vem da tua mão
A bênção.

Quem dera fosses
Testemunha de Jeová
Para nos domingos me surpreender
Com palmas no portão.

wdc