Anteontem recebi tua carta. Muito obrigado. Havia tempos que me perguntava se não haverias de me responder. Mas depois cheguei a conclusão de que o tempo foi ideal, pois, afinal, também demorei a escrever e como somos muito parecidos em relação às repostas e compromissos sabia, no fundo, que demorarias para responder tanto quanto eu demorei a dar notícias. Nada mais justo.
Notei um tom de memória em tuas linhas, como se não fosse prático ou seguro falar no tempo presente, como se ainda fossemos ontem, novas palavras para antigamente. Obviamente, deves ter percebido, que te escrever é uma artimanha para fugir do fato de que podes, simplesmente, ter superado tudo. Esquecido. Ou, como tão polidamente registraste, o que é da memória é da memória. Queria, neste ponto, que o tempo ou o local não fossem os mesmos.
Sabe, as coisas se encaixam como que por força de uma realidade para sempre desabilitada a me descrever. Um homem não deveria escutar as tais coisas que sempre me dizias, é muito perigoso. Passei longe das prudências e tenho saudades da tua mãe, por mais incrível que pareça. Sou da noite, um impostor, como me disseste. Mas jamais deixei de freqüentar os sentimentos mais profusos a teu respeito.
Obrigado pela resposta. Apesar de curta e dura e certeira. Obrigado por assinares estas linhas. Posso sugerir ainda aquela nossa música para a tua fúria recorrente e que dirijas para aquela praia em que nos encontramos na primeira manhã depois do retorno. Obrigado, sinceramente, por estares me dizendo com pequenos atos que ainda tendes estar por perto.
De noite a cidade se transforma em meu interior. E as tuas ruas, as tuas janelas, o portão do teu prédio são meus quintais. Perto de minhas lembranças mais meninas e seguras de que ainda serei um homem bom. Visito estes teus espaços, provando o acre das horas sem sono, porém lembrando das moitas e esconderijos onde eu ia existir quando criança, esperando esse torpor que eu sabia, tua lembrança desde sempre me causaria. J.M.N