segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Reminiscências

Anteontem recebi tua carta. Muito obrigado. Havia tempos que me perguntava se não haverias de me responder. Mas depois cheguei a conclusão de que o tempo foi ideal, pois, afinal, também demorei a escrever e como somos muito parecidos em relação às repostas e compromissos sabia, no fundo, que demorarias para responder tanto quanto eu demorei a dar notícias. Nada mais justo.

Notei um tom de memória em tuas linhas, como se não fosse prático ou seguro falar no tempo presente, como se ainda fossemos ontem, novas palavras para antigamente. Obviamente, deves ter percebido, que te escrever é uma artimanha para fugir do fato de que podes, simplesmente, ter superado tudo. Esquecido. Ou, como tão polidamente registraste, o que é da memória é da memória. Queria, neste ponto, que o tempo ou o local não fossem os mesmos.

Sabe, as coisas se encaixam como que por força de uma realidade para sempre desabilitada a me descrever. Um homem não deveria escutar as tais coisas que sempre me dizias, é muito perigoso. Passei longe das prudências e tenho saudades da tua mãe, por mais incrível que pareça. Sou da noite, um impostor, como me disseste. Mas jamais deixei de freqüentar os sentimentos mais profusos a teu respeito.

Obrigado pela resposta. Apesar de curta e dura e certeira. Obrigado por assinares estas linhas. Posso sugerir ainda aquela nossa música para a tua fúria recorrente e que dirijas para aquela praia em que nos encontramos na primeira manhã depois do retorno. Obrigado, sinceramente, por estares me dizendo com pequenos atos que ainda tendes estar por perto.

De noite a cidade se transforma em meu interior. E as tuas ruas, as tuas janelas, o portão do teu prédio são meus quintais. Perto de minhas lembranças mais meninas e seguras de que ainda serei um homem bom. Visito estes teus espaços, provando o acre das horas sem sono, porém lembrando das moitas e esconderijos onde eu ia existir quando criança, esperando esse torpor que eu sabia, tua lembrança desde sempre me causaria. J.M.N

Os passos do homem morto

Tazes-me aqui sem cuidado ou semelhanças. Trazes-me aos puxões, bramidos de ordem, gritos de horror. Não me domarás jamais, se é isso o que queres. Jamais terás minha euforia. Não desse jeito de perder o rumo ensejando tua realidade difusa, amiúde. Os cavalos de tua carruagem partiram. Perdeste o rumo. Teu abrigo, bem sei, é inverdade. E busco em teus olhos a razão deste crime de sempre. Trazes-me apreensivo, mas não em perder a vida e sim por te saber tão sozinha. E nesta solidão ocupas outros braços e sortes e te vingas de teus pais, com todos aquelas necessidades exdrúxulas. Não deverias pedir nada. Viemos dos mesmos lugares. Os solitários são propensos a assassínios, quanto mais os de próprio punho. És assim, pouco acabada, desinformada das coisas reais e aflitas dos lugares a dois. Amor dá trabalho e o que não queres é construir. Chega desse impasse, executes o que tiveres de executar. Minha voz não tem soluços, mas é límpida e firme, pois livre. O que quero te deixar, antes do tiro é meu olhar mais apaixonado, minha esperança mais ancestral. E tudo o quanto sair de mim por conta disso, deixo-te, também, como herança, como o testemunho de que meu pertencimento não foi um vício ou uma impostura. J.M.N

domingo, 29 de novembro de 2009

Encontros Possíveis

Furtivos, em tardes de fuga ou descanso. Planejados, em salas de teatro e tentando perceber, depois do teu cheiro, o odor das tintas usadas na pintura secular do teto. Velados, costurados por olhares, bilhetes em papéis de cadernos e discretas mensagens sms. Furiosos, pois perdidos na confusão daquelas saudações e abraços que só serviram pra nos imiscuir a dúvida sobre como nomear essa constelação de sentimentos cheios de esperas. Sempre insuficientes, pois perto de ti não tenho certezas, e longe me exaspero. Desculpe te dizer isso assim, na lata, mas dos mundos que imagino nenhum é possível sem a esperança de te reencontrar.

À sua engenharia

Rompe-se em mim o caminho fadado. Altera-se a cartografia de minha descoberta e eu nunca chego onde preciso. Ando em círculos em minhas aparências, perdido no jogo inadequado dos espelhos, onde não me encontro jamais, onde sequer sou objeto. Eu não sou um nome e você não é ninguém. Minha vontade é que lhe inseriu no programa feito para eu existir. Você é minha nudez delatada, remontada em minhas vergonhas mais infantis. Em tudo o que me foi vetado, enquanto aqueles que me deveriam cuidar interessavam-se mais em não permitir ver repetido em mim o furor da aventura, a náusea da descoberta das paixões. A chama intensa dessa vertigem meio memorial, meio improvisada é que me atiça agora – forno de fundição. De um lado minha consciência extravasa em palavras perigosas a minha falta sua, minha recente desgraça. Do outro lado, acordado feito um leão feroz, meu desejo corre atrás das semelhanças com uma morte pretendida, num segundo onde ressurreição e glória se encontram em meio a sua carne lisa. Estou neste momento arrebentando meus pontos, minha cirurgia reabre e me expõe as vísceras mais uma vez. Gosto de ser assim, vitorioso das coisas que me dilaceram, pois que é nessa freqüência e apenas nessa, que acontecem minhas vidas sucessivas, mais das quais ofereço a esta lembrança – abrigo ou desterro. Eu sou o que você me faz ser. J.M.N

sábado, 28 de novembro de 2009

Cicatrizes

Eram três a contar do lado direito de tua barriga. Nem apareciam muito, mas encucaste com elas. Querias apagar as tais marcas para sempre. Talvez esquecer um sofrimento, talvez deter o tempo que se esconde em tua pele. Não entendia essa tua pequena obsessão. Como não entendia tantas coisas a teu respeito. E naqueles dias de chuva e solidão deixei de compreender a mim mesmo. Deixei de me perdoar, de me redimir por não saber, por não admitir que era tanto e tão profundo que me assustava. Era comum, à hora de irmos para cama, reclamares. Era óbvio que eu sempre tinha uma desculpa. E seguíamos o sono até Antares e além, devorando os céus de março, suas águas a lavar nossas almas reencontradas. Morreste um pouco naquele dia. Morri outras tantas vezes diante das impossibilidades. Hoje contei sobre o óleo de massagens e as inconstâncias. Ri imenso de nossas piadas. Se me pudesses olhar por dentro verias meu coração entrecortado, com quelóides e pontos e poemas condizentes com esta minha condição cardisplicente. Um bater que tem o ritmo que me emprestaste, uma troca sanguínea que é apenas enfeite e em volta de tudo o meu corpo, minha biologia a tratar-me como se ainda fosse possível lutar em outra batalha.J.M.N

Teu cheiro

Vens de longe a recender. É um cheiro indecente que me constrange, aguça. Nem doce, nem amargo. Solúvel apenas para quem nunca esteve na tua pele. Teu pacto é com minhas entranhas e por isso me transcende, contamina. É como alguém que foge e não domina o interior ante a liberdade. Ganha densidade à medida que se expande, enriquece. Mostra-se no rubor da face. Momento em que identificas tua conquista. Água que sacia a toda sede. Apelo de diatomáceas à superfície. Íntimo que se entrega sem pudor. No teu cheiro cancerígeno é que auditas meu empenho, contas minhas recaídas. E deixas pistas algo claras do que desejas. Teu cheiro tem a própria vida. Resguarda a minha coisa de sentir vertigens. Conta histórias de entrega, auspício e pertencimento. J.M.N

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Nos passos de Alice

“Que sensação estranha, disse Alice.
Eu devo estar encolhendo como um telescópio!”
Lewis Carroll - Alice no País das Maravilhas

Você que emerge de quando em quando. Que liga e diz que não se lembra do assunto. Que vem aqui e me cumprimenta com tantas desculpas e sofismas que um bom dia faz parecer adeus para sempre. Você que surge nas memórias mais austrais e tem metade daquilo que é meu, minha identidade. Você que toca e sara a luz de tanta gente. Não teve a fineza de nos desinventar. E dentro do corte jazem tantas certezas e um punhado bem maior de perguntas. Você que deixa minha vida quase nula, sem saber que ainda resta o entristecer. E quando lhe vejo, relembro solto de quando pedíamos as mesmas coisas, encharcados de festim. Você que surge lá de dentro, dos confins e me assusta e me devora em segredo de sacristia. Você que me cercou de cuidados e me deixou plantado à porta do nosso fim. A este seu ser, dedico estas palavras. Você que está dentro de mim feito um sistema, feito a foice que executa a pena máxima. Eu digo já vou, daqui a pouco. Digo que não tarda esse encontro capital. Acordo, calço os chinelos, arrasto-me até a sua presença cordial e sorrio. Fico esperando que você decida o final. Mas ai, você segura minha mão como a de um frágil e me devota tristes rostos, um perdão. E me convida. Eu aceito. Entre agora. Há pouco mais o que dizer. Tudo é instante e é imagem, um reflexo. E vejo o mundo se perdendo enquanto eu corro para dentro de suas paragens, para a colheita deste fim que é todos. Ao que desperto, minha única raiva é saber que você é tão legítima como meu outro, esse qualquer. Impunemente, me deixa do avesso, como quando estou tão deserto e sem final. Como quando me reinventa e percebo, que meu gênio é mesmo para toda essa palavra em cinza e controvérsias. J.M.N

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Inquietação

Sobre a música Inquietação, de José Mário Branco
(Na cadência da interpretação de J.P. Simões)

O que sei eu? É o que pergunto. E pergunto não a ti, não aos outros. Pergunto a mim, muitas vezes, repetidas vezes. Não há escolha sem arrependimento. Não há vida sem morte e, de certo, não há razão sem loucura. O que nos coube, sacrificou todas as prudências, todas as inércias e nos pôs em vias de colisão, largados como em banguelas a testar a velocidade sônica de nossa entrega, de nossas disponibilidades, com as carnes trêmulas a querer-se em potência insustentável. Com tantas guerras travadas é óbvio o desconforto da paz. São argumentos de silêncio, pó e iluminuras. Na cadência da fala, escondo o que mais tenho vontade de dizer. Meus mistérios multiplicados vão-se intrusos em outras falas, como leopardos sedentos. Espelho-me pequenino nas garatujas de uma criança. Na entranha destas sentenças corre ainda nossa textura, nossa infeliz tendência ao imaginário sobreposto, às coisas extravagantes do desejo. Corre em mim – e agora só posso falar por mim – a estrada fulgurante das conquistas e o contragosto das banais cenas de domingo. Óleo e vício e entrelinhas – estes são os elementos que me procriam, a saber. Meu credo agora é palavra para leigo, sarça de incompletude, é o que me falta embebido de romance, lírica e uma boa dose de inquietação. J.M.N

Para ler escutando…

Excertos Terapêuticos XVII

“Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio – não me freqüento.

[…]

Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo - pânico mudo -
entre o sonho e o sonhador.”

Thiago de Melo - Narciso Cego

domingo, 22 de novembro de 2009

Declaração universal do amor de um homem

Vem e bebe da fonte, num mesmo copo – amor e fúria
E desembucha tua moral e bom costume, como em travos
Acoberta a sorte, executa os amantes
Ode e fogo aos que te exultam
É como um rumo sem mais perguntas
É como a boca sem a menção do beijo
O traquejo de se habituar desmonta
E surge dura a gestação do desejo
E como em luta, a mão desfere o golpe preciso
E se arrepende ao primo grito de liberdade
A morte é vestíbulo, o espírito não cala
Ainda sinto que estás perdida e aos soluços
Estás ativa em minhas vias, como arcabouço
E me defines e me destripas, estimulas
Te peço a volta, sem mais delongas – amor e culpa

J.M.N

Bem perto de nascer

Em memória de tudo.

Sou eu somando os pontos. Vendo o sono distanciar-se e a idade chegar, sozinho. Adicionando história à estória dos meus romances, ademais. Um pouco de tudo, até de enganos. Um pouco de deuses e virtudes e vertigens. E agora que não falta mais nada, me falta tudo. Falta apelo. Um pouco de fé desalinhada. É quase hora. Sob meus olhos o trabalho do dia realizado e aqueles rostos a cumprimentar-me pelo sucesso obtido. Não os distingo dos demais inquilinos de minha saudade. Um conto imenso esse de rever minhas gerações. É como uma sorte. Como a certeza de uma estirpe que se atrasou em tudo, vou ficando. Os minutos voam. As páginas sangram de dentro. Existe um boato de que logo estarei extinto. Hoje eu confesso que precisava disso: uma surpresa, um presente, muito mais que palavras e imprevistos. Precisava de certezas, lucidez, que a única razão de eu não ter ido é essa demência. Chega de guerra, mas meu peito não reclama. A paz me deve, eu devo à paz. Precisava de algo que não fosse só silêncio. Minha carcaça ainda agüenta o rumo desse desterro. Mais um pouco e já estarei lá. O remédio faz efeito e tudo começa a ter graça novamente. Ensaio sorrisos. Hoje eu queria um martírio qualquer em minha homenagem. Apenas um pedido. Queria que Ele reconhecesse que falhou, que nunca olhou direto em minhas retinas. É tudo calor e umidade. Há saudade por sobre tudo. Rasa a carícia que se resume em festas sozinhas. Hoje me veio forte, como um sopapo, sua despedida. Naquele tempo eu estava muito mais transido, homem de um tempo antigo nesse tempo. O relógio se anuncia. Vou entrar. A idade se consuma antes mesmo de eu ter dormido. Hoje eu queria aquele abraço, aquele edredon que sempre foi teu, qua sumiu como nossos dias felizes. Apenas hoje, umas palmas pelo esforço, o controle das mãos e desse choro insistente. Não sou fracasso é isso que importa. Eu preciso demais daquela oração. Meu corpo está pronto. Que chegue logo. E quando for para cantar e celebrar, toda minha anatomia, toda minha nostalgia e graça estarão ao encargo desses devaneios de ainda. Quando eu nascer, quero que suas mãos macias me aparem, me aprovem, dediquem-se. Vou pedir para que ela espere minha voz soar feliz. J.M.N

Há dezoito anos, ofertaram-me esta música num dia como este. Para ler escutando...

sábado, 21 de novembro de 2009

Notas de rodapé #5

Insisto: nossos passos estão à mesma distância. Causa espanto o que encontro escrito nas árvores do caminho. Achava que por lá andava só. Surpresa, armadilha ou verdade? Que lugar esconde nosso destino? J.M.N

Duarte e as sobras do jantar

Este texto foi originalmente escrito para compor um livro que está no prelo. Por sugestão de meu primeiro "editor", retirei-o de lá e o publiquei no blog Recanto das Letras, UOL. Penso que aqui, ele realmente encontra sua morada definitiva.

Ele chega em casa com a fome de dois dias e senta à mesa esperando o jantar. O filho menor critica a professora como sempre – o dever de casa é muito difícil. Duarte pensou alguma coisa sobre as despesas mensais, o chefe mau caráter e seu trabalho desgraçadamente pesado, mas preferiu não dizer nada. O filho haveria de saber daquelas coisas um dia. A TV estava quebrada havia um mês, os meninos acabaram em segundos e correram para a casa do vizinho. Talvez porque não houvesse muito que comer, talvez porque a mãe já não era a mesma cozinheira dos tempos de fartura ou, quem sabe, queriam apenas ver o DVD pirata com o filme tão esperado. Duarte sentado, sem tocar na comida. A mulher finalmente lhe dirige um olhar e pergunta sobre o dinheiro para o gás da semana. Ele dá de ombros como se aquilo fosse absolutamente desnecessário. Ela se levanta e diz coisas na linguagem do desgaste dos anos, da raiva desesperada que não haveria de saltar da boca, pois não havia o que fazer de qualquer maneira. Uma dor antiga se instala no estomago vazio. Duarte pensa nos anos em que trabalhava numa grande empresa e ganhava o suficiente para finais de semana no litoral e buquês de flores semana sim, semana não. Um de seus olhos molhou. Suas costas deram o sinal da derrota do cotidiano. Na mesma hora de todos os dias. Levantou e disse à esposa que lavaria a louça. Nunca havia se oferecido para a tarefa. A esposa estranhou, mas passou o prato ensaboado que tinha nas mãos e jogou em seu ombro direito, o pano de enxugar. Ele trabalhou em silêncio por muito tempo. Viu de relance a mulher sair de casa – rumo ignorado – com um perfume nunca antes sentido. Guardou cada artefato de mesa em seu devido lugar. Sentou-se novamente em frente ao seu prato de comida. A carne fria, o arroz duro e todo o silêncio da casa para lhe atormentar. Houve um tempo em que fora feliz. Não lembrava em que ano, comprara um automóvel zero quilômetro. Sua música predileta nunca tocava na rádio do bairro. Tivera um terno, sapatos brancos muito finos e um relógio à prova d’água. Tinha sido bonitão, com lábia para todo e qualquer tipo de ocasião. Um cara com boas expectativas. Perdeu o hábito de se olhar no espelho e a curiosidade de se estudar e se reconhecer abordou-lhe naquele instante. Largou o jantar mais uma vez e foi até o banheiro. Olhou bem nos olhos daquele ser imaginário do espelho e riu até chorar da figura bruta que surgiu diante de si. Cabelos grisalhos. Olhos atirados num tempo qualquer, fora das órbitas, ademais. Duarte chorou. Voltou à mesa e comeu seu alimento. Recebeu os filhos sem calor nos braços. Beijou-os de boca seca e com muita culpa pela deselegância de sua figura paterna. Sentou na poltrona gasta e esperou a esposa. Dormiu. De manhã acordou e sentiu que o peso da noite anterior tinha dissipado. Por alguma razão, sentia-se feliz. Os meninos já tinham esquentado o seu café da manhã. Ele os beijou diferente. Com lábios cheios de si e de amor matutino. Duarte estava mais moço. Com os cabelos arrumados apareceu na frente dos meninos e disse que os levaria para a escola. Eles avisaram que era sábado e mais, sua mãe não havia dormido em casa e que, aliás, aquela era a terceira vez na semana. Duarte os olhou por um breve minuto e disse – que se dane, vamos ao parque! E com aquilo, partiu para a alegria e uma manhã sem nuvens, um filho em cada mão. Uma estranha sensação de liberdade. Disse bom dia para os vizinhos que havia muito tempo, não sabiam o som de sua voz. Desceu as alamedas com a pressa de um adolescente. Os meninos riam também. Naquela manhã ele traçou planos, como nunca mais havia traçado e deixou a monotonia dos pensamentos obscuros debaixo da renovada sensação de vida que se instalava. Faria panquecas para o jantar e nunca mais deixaria os filhos correrem de si. Parecia, enfim que tudo correria bem. Parecia. J.M.N

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Sobre tudo o que sei

Para as personagens que me encantam e aterrorizam.
Que são as mesmas, diga-se.

O que sei, sei aos poucos e muito adiante. Faz sentido de eu ter pouca pensa agora. Senão a vida se descumpria feito roupa velha desfeita de puída. Tenho tato para pouca coisa, entrementes. Sinto apenas em três profundidades: estranho, imenso e ela. Sou muito pouco para caber nas raias de eternidade. Quando sair dessa, não penso em voltar que o trabalho é dobrado. Eis que me benzo desde os cinco para ter mais escolha e prudência e, desde os cinco, isso não me adianta. Por esta razão eu tenho dias de defunto e outros e viver multiplicado. Tenho árvores e cardumes, os bens naturais, em minha feita. Sou apontado pelos sãos, na rua. Acho que a noite vai ser daquelas. O que sei de mim é muito menos do que eu queria ou poderia saber. Sei das coisas, entremeado. Recorrente em mim é este desabrigo das estradas, o ermo solto no curral do mundo. Meu berro seco é de saudade. Só noite me sabe inteira. Chutei estrelas na boca do dia e esta ruindade desencantou para sempre a minha soleira. O sol que entra escalda e ilumina, não deveria. O que sei, sei muito menos do que sinto e o que sinto tem apenas a profundidade dela. J.M.N

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Aconteceu

Aconteceu quando menos se esperava. Quando a razão de dormir era um Rivotril ou um gole furioso de vodka. Aconteceu distante das paragens da certeza, da ilusão do tato, da seqüência de músicas inventadas para embalar os compromissos ainda não firmados. Aconteceu diferente do que a história ensina, muito além das páginas oficiais e dos diários de bordo. Aconteceu num istmo sem península, uma impossibilidade geográfica. Aconteceu quando a tarde acabava e se chegava cansado de outros pontos da cidade a devanear se aconteceria o encontro ou se os braços achariam apenas o vazio das conversas de trabalho. Aconteceu na medida em que se desfaziam as propriedades do calor próprio da terra deles, além, muito além da linha imaginária das defesas para uma possível guerra. E veio sem estratégia, ensimesmado, invadindo todas as horas do dia, todas as frações de interesse, todos os sorrisos infames. Aconteceu com tamanha imprudência e desconsolo que toda a realidade derivou fractais. Qual estado de suspensão e abalo. Aconteceu sem sequer ter acontecido o tempo, esse mesmo que traz as linhas que se fazem agora. J.M.N

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Excertos Terapêuticos XVI

"O que houve, medita o pesaroso,
com estes acontecimentos?

E não se diz a verdade
porém se cobre com papel
esta desgraça de metal.
Mal se abrira o roteiro
quando chegou a derrota
como um machado que caiu
na cisterna do silêncio"

Pablo Neruda - Tristeza na morte de um herói, 1964

domingo, 15 de novembro de 2009

Ocultar-se (?)

Às vezes tenho ganas de desaparecer. Caminhar sob a longa luz de meu solstício e reincidir nas carreiras, na neve solúvel dos artificiais sentidos. Apenas nostalgia, ledo engano. Impressiona-me que às vezes o mundo me caiba numa única sentença e quando ela nasce é como se eu me cumprisse, como se meu ser esgarçasse. Como se todos os meus enganos e imprecisos escapassem do meu dentro. Uma porção de gaiolas abertas repentinamente. Outras vezes é como se tudo isso escapasse e o silêncio de minhas páginas atinge clímaxes como em obras barrocas complicadíssimas. Em certos dias há um escárnio de tudo, embutido no trabalho à pena. Noutras uma vontade de nada ser. De nada trocar. É como se olhasse a porta aberta de um céu qualquer. E como no verso de toda a porta celeste, o que se encontra por de trás é o infinito. Uma vastidão em que não caibo. Nenhum compromisso à vista, nenhuma razão – enferma ou sã. Sei que a poucos importam essas linhas. A mim importam menos. Eu as escrevo por necessidade. Como um ar que condensa em linhas. E em negra tintura concedo-me um perdão discreto. Por não saber de tantas coisas e por não ter com quem dividir outras tantas que inventei e que nesse trabalho íntimo de revelar-me no espelho da incompletude, nascem, em chamadas palavras e dizem, em sabido desespero. J.M.N

Notas de rodapé #4

Acontece que eu não surto mais. Foi o que ela me disse e me prometeu amar e devotar-se como em promessas antigas (ou antiquadas?). Ela veio, ela se foi. Cumpre saber que houve felicidade. Mas não se manteve a promessa. E seu silêncio indica o que sempre soube, não há luta, pois não há intenção de eternidade. Nunca mais veio aqui e suas lágrimas talvez tenham secado. Me disse um dia que era para sempre, me disse outra vez que havia sido a coisa mais intensa de sua existência. Continuo esperando fazer-se acontecida sua sentença, enquanto mato meu zumbido fino, minha crença na história acontecida. Estou aqui a escrever estas linhas, cada vez mais cercadas de nós. Prudentemente distante dos olhos dela. J.M.N

sábado, 14 de novembro de 2009

Varandas

Chegamos e logo procuraste uma razão para brigar. Perto do meio-dia, as coisas não pareciam um caso de amor. Nossa fuga para dias de esquecimento e descanso, havia se resumido às tuas dúvidas sobre o que eu fizera um ano antes, na mesma recepção de hotel. Mais uma vez fomos duros e desnecessários. De toda a sorte de palavras grotescas, sobrou-me uma memória que se agiganta toda vez que visito as dobras da memória e penso que nunca mais haverá noites como aquela. A varanda recebeu nossa loucura e bradamos o que estava em plena força naquele instante. Ouvíamos a nós mesmos como complementos aéreos de um céu estrelado e feito de cores outras que não apenas o negro de sempre. Corremos com cavalos alados, derramamos poemas por sobre as mangueiras da praça, olhares envoltos apenas por nossos próprios olhares e nossos braços e pernas e veias e células, conduzindo os movimentos eufóricos de nossa partilha. Estávamos entre lençóis, urrando a felicidade corpórea e táctil que nos abraçava e o vento da noite não foi o suficiente para calar nosso suor que também dizia nossa existência com força e cheiro de anis. Jamais estarás fora do que chamo de memória, jamais piso numa varanda sem rir primeiro do que fomos naquele dia. J.M.N

O longo sono da tarde

Não foi um descanso, nem mesmo refeitura de uma noite às claras. Não foi desejado. Não me havia preparado para ele. Foi um sono de desculpas. Foi um longo obséquio às coisas que não sei mais responder. Foi um sono falso. Como quando obrigamos o corpo a se desligar e entrar noutras esferas para agitar-se menos, saber-se menos. Assim foi meu sono. Com sonhos e surpresas e saudades. Com pedaços de poemas e os teus pés agora imaginários descendo os degraus de minha razão para perguntar quem afinal sou eu. Foi um sono de circunstâncias adicionais, com razões que o coração não freqüenta e mensagens que levarei anos para decifrar. Meu sono de ainda há pouco foi um pequeno romance dos trópicos, com cenários amplos, praias nuas e rios enormes, um brutal calor em tudo. Talvez um sono de lembrança, talvez um sono de despedida. Foi este sono desabrigado que resumiu meu dia e nele esteve contida a pergunta que venho evitando fazer, há alguns meses. Meu sono reformou os lambaris poéticos que reservei a ti, foi a releitura de nossa sorte culminada em corações partidos. Queria com ele o eixo novo de minhas idades, minhas dúvidas mais insanas e as paixões mais descaradas. Queria, ao afundar nas regiões mais espessas dos meus sentidos, me sentir novamente, todo beijado de água. J.M.N

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Estórias para a razão do dia II

Meu terço inflamado não consola os santos que ofendi, não chega para os meus credos e arrependimentos. Em suma, não alcancei a santidade que queriam. Sou mais para baixo. Um pequeno triunfo das doações a que fui submetido. Estou vivo, mas não inteiro. Acho que temos o mesmo gosto escarlate. É por isso que não passa. Jamais passará. É como uma ontologia, uma marca rupestre em minha anatomia e alma. Achei os dinheiros para pedir tua mão aos teus donos e te libertar. Isso não passa nunca. Instalado, ficou adjacente às minhas escolhas e meus passos estão marcados. Espero-te em dobro agora, porque sei que quando vieres, será na medida que eu chegarei. Só, completo e radicalmente contra aquilo que todos dizem. Que assim seja. J.M.N

Reconhecer-se

Aprendeste a expressar o que sentes, com o sentir dos outros, com versos alheios. A questão agora é do que serias capaz para dizer o que te incomoda? Vermelha a flor sozinha do jardim, se expressa. Ruidosa, a criança que sente fome, consegue o alimento. O vento que desarruma os teus cabelos, tem também seu jeito próprio de te envolver. Quando seguirás o teu pensamento? Quando voltarás ao que nos resumiu e buscarás as respostas? Talvez não seja isso o que realmente queiras. Eu escrevo porque preciso e digo o que me vai por dentro. O que sou, sou inclusive nas palavras. J.M.N

[...]

Sim, são imprecisões, palavras em sanscrito... quem sabe? Eu não sei. Atrás de todo o cuidado há sempre o perigo de se esconder em demasia a realidade, de aquilatar apenas o que se quer ou finge. Você não podia ter saído assim. Talvez nem pudesse ter chegado anyway. Olha só, o mar reclama. Da janela entristecida que deixaste, vejo aquele olho azul e enorme chorando constantemente. Debruçado numa terra que o esquece de vez em quando. O negro lá de cima (a noite ou a bruma), também encobre a solidão. Mas não chega para me dar abrigo. Deixa de fora qualquer coisa, que bem pode te dizer respeito. Encontraste o que procuravas? As ruas me dizem os caminhos trocados. E quando eu saio sozinho, não sei mais voltar. Tenho pedaços esquecidos em todas as madrugadas que freqüentei desde aquele dia. J.M.N

Átrio

De novo aberto, o peito vai
acobertando as efemérides do amor
descuidado, debulhado feito livro, usado
mais que tudo, em seu louvor

A madrugada se fecha e o sangue
arvora-se a irrigar meus quintais
um pouco sujo o poema nasce, equidistante
e a luz contrai como um surto especular

Ouço meu verbo malicioso e incandescente
aceso nas entrelinhas do teu busto
meu olho escapa como um louco, um teu sorriso
a instalar-se vivo no cobre da tarde morta

Ai que me invada o peso tanto desta incerteza
e que aconteça de eu morrer, tempos atrás
benquisto, vulgo, arqui-inimigo, despossuído
em teus braços, vagamente, a me entregar.

J.M.N. Belém, 08 de junho de 2008.

Vetar-se

Esta seção, dedica-se ao clássico e flerta com o arcadismo, no sentido de “a arte pela arte”. Não é como querias? Perguntas que tu mesma pudesse responder? Diálogos monótonos sobre o que já havias passado e a compulsão por ser a vítima? Afasia e agnose desconcertantes com os sons e as imagens que fazias, surgiram, mas de tão ríspida não viste. Nem bem dobraste a rua, te vi correndo para voltar ao apartamento e resgatar tudo teu. Foi como se soubesses – e assim ficou mais fácil desinvestir e não cuidar at all, desde sempre. Fica a pergunta: e se? J.M.N

4º Festival Se Rasgum

programacao

Em primeiro lugar gostaríamos de parabenizar toda a turma da Dançum Se Rasgum Produciones pela 4ª edição do Festival. Temos certeza de que a batalha foi grande para chegar até aqui com o reconhecimento regional e nacional que o festival alcançou.

O Festival traz a reboque eventos voltados para a produção cultural independente, tais como palestras, workshops e seminários, os quais ajudam a enriquecer a iniciativa e colocam o festival no patamar de respeito que merece, tornando-o muito mais que um grande encontro de bandas e celebração da música independente.

Deixamos a dica para um excelente fim-de-semana em Belém, como desejo de que iniciativas como esta multipliquem-se e sustentem-se. Seria bom ter mais desses finais de semana na mangueirosa. Estaremos lá "cobrindo" o evento.

Um abraço a toda a turma da Se Rasgum e sucesso! J.M.N

Serviço:
4º Festival Se Rasgum
Período: 13, 14 e 15 de Novembro
Local: African Bar
Pontos de Venda de Ingressos:
Ná Figueredo (Gentil Bittencourt 449 e Estação das Docas)
Colcci (Braz de Aguiar, Pátio Belém e Shopping Castanheira)
DiCasa (Entroncamento)

domingo, 8 de novembro de 2009

Deixar ser o que se é

Está tudo dentro. Um mutirão se encarrega de acalmar as células e os processos metabólicos e de multiplicação extrema cessam por um instante. É a melhor das ilusões, esta de estar contigo ao alcance das mãos. Fazes parte de mim, deveras. Não o contrário. Fico agradecido pela paz. Fico irrequieto com minha respiração melhorando, pois depois de doenças e socorro alheio, nada resta para te pedir e não sobrou desculpa para te ligar e pedir tua presença, como fiz imaginando qual seria tua reação. Por isso desliguei tão abruptamente. Me deixa ser apenas, pedi. E quando aconteceu de ela entender pude chegar aos requintes de verbo que jamais pensei ter à disposição. Estava tudo ali, enfurnado em minhas mãos, sob as vértebras do tempo em que era um menino doado à atenção esporádica de tantos. Foi neste ponto que nos encontramos. É esta nossa interseção. Por este veio exploramos um ao outro como dois inconseqüentes. Somos das coisas menos práticas e ardidas e cantamos também com os olhares distônicos, mentidos, pois nossa arquitetura é quase a mesma dos antepassados esquecidos destas cidades por onde já fomos. Era muito pouco pedir para que brilhasses. Teu corpo nu era a melhor metáfora para minha loucura e nós unidos por pedidos impossíveis e indevidos, éramos a melhor tradução para o reencontro. É bom saber que te embrenhas em minhas letras, que culminas meus porquês. Esta paz que sobra e permite integrar composições com histórias de corpo e canções inventadas, como quando nos aprontamos para escrever um romance todos os dias. J.M.N

Urgência e emergência

Dedicado à enfermeira Rosana que salvou meu dia
em maio de 1986.

Cheguei com toda a sorte de sintomas: constipação, voz alterada por inflamação de garganta, dor no fundo dos olhos e no seio da face e nostalgia. O atendimento foi rápido. Quanto à eficiência – discutível. Lembrei de uns anos antes quando fiquei de cama num hospital estrangeiro, urrando de dor e solidão enquanto tentavam dopar um paciente da ala psiquiátrica que teimava estar virando do avesso, sentia-se virar do avesso, via-se com as carnes expostas e seu interior entregue ao mundo – ele estava do avesso. Quanto a mim, fiquei quieto para não ter de passar pelo constrangimento de preencher um inquérito sobre a qualidade do atendimento do hospital. Hoje foi diferente. Cheguei sozinho à sala de espera. Tomei precauções para não ser visto como um doente e quando li o cartaz sobre os cuidados com a tal gripe específica que assola o país, engoli minha tosse seca e bebi dois litros de água. Entrei no consultório, disse o que sentia, fui auscultado, mas tive de pedir para verificarem minha pressão. Não pude deixar de pensar em meus ataques de ansiedade que se vão agravando nos últimos dias. Não pude deixar de pensar numa sala de hospital toda em azul, anos atrás, quando tive a revelação de que sofria de asma e padeceria com corticóides na corrente sanguínea pelo resto da vida. Uma profecia que não se cumpriu. Deu vontade de fazer telefonemas anônimos, acusar pesssoas de abandono, falsas promessas - disparates. Lembrei que mesmo acompanhado, naquele dia do ataque de asma, sentia-me só. Tinha uns dez anos. Minhas mãos estavam ao vento e à enfermeira, quando me perguntou o que podia fazer para melhorar minha cara, respondi: me dá um beijo. Tive a sorte de encontrar pessoas dispostas a atender meus pedidos mais esdrúxulos ao longo da vida e outras que me ensinaram a fazer por mim, a buscar. Naquele dia longínquo não foi diferente. Hoje a urgência era, sem dúvida menor. Escokhi procurar o serviço de urgência sozinho e fui dirigindo e cantando músicas de saudade, um teatro apenas. Talvez nem fosse uma questão tão emergencial assim. Recebi remédio na veia, fiz uma sessão do famigerado aerossol e escutei as dores de alguém que sofria de pedras nos rins e gritava, tira isso de mim, faz passar. E ninguém fazia. Percebi que não estava tão mal assim, que minha vida tem sido boa demais até. Iniciei uma raiva remota por não estar acompanhado, mas a dilui com a risada da criança que tomava soro e dizia estar sentindo o corpo ficando mais forte. Lembrei de um episódio de febre e do colo preocupado que me embalou e protegeu. Sim, eu já me senti protegido. Não pedi beijos ou cuidados especiais. Não fiquei mais do que cinqüenta minutos no hospital, mas tive a impressão de que não teria passado a vida sem aquele beijo pela crise de asma, séculos atrás. Enquanto voltava para casa, pensei em ficar cansado e dizer a mim mesmo perto da hora do sono: dorme bem, o pior já passou. J.M.N

sábado, 7 de novembro de 2009

O preparo do sono

"É verdade, no momento em que decidi comer o cacto,
esperava não sei o que, algo que me tornaria maior,
mais forte, que me daria um poder próximo a Deus.
Só que eu não deveria ter comido a parte central,
não deveria ter untado a totalidade do meu corpo
com sua substância.
"

Piera Aulagnier - (Philippe, um paciente),
O aprendiz de historiador e o mestre feiticeiro, 1984.

Todos dormem. Tenho medo de jamais voltar a fechar os olhos. Mais uma vez ingresso no ritmo secreto da cidade e suspendo o perdão dos sentidos por terem deixado tamanhas coisas boiando em mim. Sinto-me acumulado de outras vidas, de outras respirações. Enquanto forço o dobre dos sinos para despertar os que mais queria que estivessem acordados, nesta minha insônia já regular, percebo o quanto sou desproporcional em meus sentimentos. É algo que me ultrapassa, me configura antes mesmo de saber que eu existia. Às vezes tomo drágeas e poções para que venha o sono. Algumas vezes tenho sucesso. Em outras me deito, mesmo desperto, bem no meio do colchão intentando recompor minha calma. O que me espera, uns calafrios. Mesmo aniquilado em pó e chuva e inconstância, posso sentir o ressonar do sono dela. Lá no fundo de minhas idas e vindas, um hálito quente e algo temperado com costume, em cujo ritmo deixo acontecer minhas verdades de rebelião e desejo. Por sua boca passam meus anos de claustro. Em sua respiração, resvala um conhecimento antiqüíssimo. E quando o relógio me desperta, mais uma vez, vejo que foi ela quem me preparou para o sono, e esteve comigo enquanto eu decidia se existia ou usava o cadafalso. J.M.N

Pensei nisso para escutar enquanto se lê. Talvez eu tenha exagerado. Nem tudo é melancolia...

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Estórias para a razão do dia I

Suspendam-se os poemas, a fantasia está morta. Aforismo redundante e sem sentido. O que está para nós, começa depois da largada. A estrada é de chão batido e faz muita poeira passar por seu corpo curvilíneo. Pelo retrovisor a marcação da distância. Não consigo distinguir se é longe ou perto. E uma vez mais, desejei estar sozinho e sem rumo. Encontrei o ritmo de tua alma descalça, descansando desimportante em uma parada do caminho. Chega e traça os rumos comigo. Mas vem logo que logo adiante está o abismo que nos derrotou na primeira passagem. J.M.N

A vida depois do instante

“[…] a fraternidade nasce somente
a partir de baixo, do identificar-se, fazer-se um […].
E seria completamente ilusório e historicamente
ineficaz acreditar que se possa estabelecer
uma fraternidade
prescindindo dessa medida,
sempre de novo confrontada com o aspecto concreto
do semblante de quem sofre.”

Piero Coda, 2007.

Depois do que disseste sobre as freqüências, sobre os mesmos sentimentos em corpos diferentes espalhados por ai, no espaço inventado dos bytes e processamentos, ficou difícil manter aquelas velhas idéias. Algumas vezes o que parece é de fato, tens razão. Nascemos da mesma matéria, da mesma investidura animal na sobrevivência, na procriação e manutenção da espécie. Nascemos na mesma fornalha dos enlevos e dopaminas, em cujas margens ficaram os amores, os sortilégios do tempo, a vontade de vivermos enamorados, desatentos aos pesares do corpo, às vias náufragas para onde partiram as naus benzidas pelo bispo. Nosso gral é caneco de escolhas (copo de ira, de vinhos e absurdos), ajuntamento de mortes sucessivas. Em nossa taça cabe aquilo que escapou aos santos, ainda bem. Não fizemos muitos destes caminhos juntos, mas hoje, ao sentar contigo e escrever mais um dia – e a penas mais um como me disseste – senti-me, de fato, existindo. Não por tuas palavras, não por ver que te recuperas, mas por sentir que os apelos de nossas melancolias mais antigas, sujeitam-se ainda à beleza, aos fatores anti-sépticos das entregas imediatas, dos amores de extravio e das brutalidades. Por que a coisa em si de estar vivo é mutuamente suja e conspícua, bela e terrível e recusar esse emaranhado de afetos, parcimônia e feridas, é como negar-se a si mesmo, é como engajar-se num riso vago, nos abraços sem causa. E isso não cabe na notável atividade de nossos corações desavisados e bravios. J.M.N

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Chega

Sobre a música Explode Coração, Gonzaguinha

"A espera é feita mais de fantasia do que de realidade"
L.A. Garcia-Roza - O silêncio da chuva

Chega de mudar o tom dos sins e ocultar atrás da porta tudo aquilo que foi feito para te dizer frente a frente, sem armas ou punhos cerrados. Chega de adotar o que nasceu no pântano de nossas bocas aborrecidas e traídas, enclausuradas na dor eterna de querer demais, temer demais e jamais ceder. Chega de estudar os comportamentos como em experimentos dificílimos e constrangedores, tal como forma e temor de olhos em aberto, secando no espaço-tempo desta verdade inominável que nos perfaz. Ao que lembro dos tais escritos, de tempos imemoriais. Lembranças iniciam casos. Inauguram amores. Mantêm ativos os romances atávicos. Chega de adorar as distâncias e se atirar pungentemente aos finais adiados incontáveis vezes, como nossas carnes jamais quiseram, como se nossas bocas nunca mais estivessem prontas para dizer sim. Chega de se dar e pedir clemência pelo desassossego que se tornou farpa e mais tarde o veneno inoculado em nossas torturas mútuas, chegando a concluir noites adoráveis em comparações aos desterros de outrora. Chega deste dano, desta cova que de tão rasa ameaça desdobrar-se num canteiro para os gerânios e de tão estreita, chega não comporta nossas almas demasiado entregues às coisas que só nós sabemos um do outro. Noutra parte destas linhas está teu nome, noutra escolha de palavras está meu sentido que, ignoto, sabe a silêncios e ataques de pânico. A manhã deveria nascer como num parto. Chega de contar os adereços de tua roupa esquecida na gaveta e trair meu equilíbrio ao cruzar contigo na vigília eterna que é meu sono. Chega de recorrer ao pensamento mais cansado para me afundar na normalidade infestada de simplismos que são as horas de trabalho e a rudeza com que trato meus pares. Chega desse encontro secreto que embota as vontades como os cárceres mais sujos, como as tardes mais cinzentas, como a insana profecia dos que nunca tiveram amor. Chega de sentir minha pele a se rasgar definhada sob a luz do sol nascente, nas manhãs da tua ausência. J.M.N

Para ler escutando, muitas vezes...

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Constatação

És notável. Radicalmente ao revés de tudo o que sempre pensei saber. És capaz de abandonos extremos. Saltos ornamentais e diletantismos. És a prova viva das contradições humanas e me pediste mil vezes para não ir, não sair da tua vida. E te agarravas até quase me ferir e me ferias até quase acabarem teus adjetivos de comparação. Não sabes mesmo o que foi que me matou? Ao contrário de teus pedidos, empurraste-me para fora. Primeiro de mim, depois dos mapas, das plantas baixas de nossa mansão. És o próprio fim e o começo de tudo quanto neguei e reconheço que acrílicos e óleos não serão suficientes para representar teu estado de alma. Como argumentar com veias abertas e vontades de entrega que nem sequer estavam prontas para existir? J.M.N