segunda-feira, 31 de maio de 2010

Cartas a ninguém (31.05.2010 – 1:28 a.m.)

Querida,

Passaram por mim uns meninos correndo, procurando onde se esconder da polícia. Eles riam incansavelmente daquela procura. Uma lei que não se ocupa do que é indevido, apenas do que passa correndo dando risadas por se estar vivo. A noite era bronze na ameaça de chuva que devora toda a calma, pois não cede nunca e nos deixa com a impressão que tudo ao redor vai acabar em breve.

Podes perguntar o que eu fazia tão tarde na rua. Eu caminhava. Caminhava sem saber de caminho algum. Deixava a cidade passar por mim e não o contrário. Sendo assim, posso dizer que foi ela quem passeou por minhas pegadas. Fez e desfez meus territórios. O cheiro peculiar daquela noite lembrou muitíssimo o teu cheiro naquela festa que fomos. A cidade parecia querer que eu chegasse até ti.

Uma janela olhou triste para mim. Uma casa muito usada. Acusada de ser demasiado antiga, vai tombar. Encosto em seu muro e acendo um cigarro. Ao me despedir posso sentir a vida dos cacos de telha grunhindo surdamente e a espessura das paredes deixando claro que haverá resistência às marretadas. Meu peito dói um pouco. Gostaria desta mesma força de resistir da alvenaria antiga. Desisto de pensar nisso e volto a caminhar.

Quero te contar dos meus passos noturnos sempre. Quero que saibas que entre todas as intenções e caminhos residem as melhores memórias. Que o manto da noite é de fato o melhor lugar para nos encontrarmos. Eu decidindo em quais esquinas deixarei trocados e tu, em quais momentos assoprarás as canções que chamamos de nossas.

Minha adorada, no mais fundo ritmo deste velho coração que constantemente responde aos teus chamados, haverá sempre de ter um pulso, um feixe de eletricidade preparado para nosso encontro. Quem sabe uma noite dessas, faça-se nosso o melhor trajeto e calhemos de nos apresentar ao destino na mesma encruzilhada. E como sei que calculas as tuas distâncias com mais segurança que eu, não farei objeção em seguir o teu caminho.

Sinceramente,

J.Mattos

Muito além dos elementos

Nesse meu gosto de obedecer meu peito, apenas rastros de acordeão e cantilenas. Cai chuva nas batidas do coração. Ainda é cinza a voz que me alardeia. Um olho toca milongas que nem esferas e os espectros da partilha ainda doem. São como medos muito antigos meus bordões e minhas bravatas apenas ecos de perdão e desistência. Nesse meu jeito de pertencer-lhe mais do que tudo, meus pios e choros enredados de passeio soltam. Abrem as gaiolas e agitam as palavras. E elas voam. Vão até o seio do que mais me demanda neste momento. Um retorno. Um apagar de luzes sobre seu corpo. Meu testamento deixando a ela o mais precioso de meus bens – a primeira saudade do outro lado de minha morte. J.M.N.

Eu jamais saberia realmente o que dizer

Trouxe de longe seu ar de encontro e ousadamente me perguntou sobre as coisas que mais tentava evitar. Ela surgiu no apagar de muitas luzes, em meio a uma semana desajeitada e sozinha. Correu seus metros em raia própria. Aderindo a um lugar em mim que eu já não reconhecia e me atraiu tantas boas lembranças e tantos risos que ainda hoje pressinto sua chegada como fosse o regular impacto que se nos causam as coisas boas, as coisas adoráveis. Estranha esta lembrança assim tão predestinada, tão rítmica e consistente. Era para ser um alguém apenas. Uma pessoa a mais. E, no entanto, reformulou o sentido de inércia que meu trem tomara. Atualizou instâncias desorganizadas e tão instintivas quanto puras. Não era para ser mais que uma lembrança, entrementes, soa como um passado inteiro. Onde algures eu perdi minhas botas, onde cedo demais eu encontrei meu destino. Onde, talvez, sem saber o que resumir desta minha história retalhada, eu apenas diga que foi ela quem mais iluminou a noite daquele dia. J.M.N.

E voltei para casa ouvindo isso

sábado, 29 de maio de 2010

Pras Duas que Esperam

É por essas duas mulheres o meu exílio semanal. Pra que me liguem, uma pra dizer que tem saudade mas que está feliz porque é dia de miojo, a outra pra declarar o seu amor e dizer que o vazio que deixo lhe dói o tempo inteiro. Na estrada sempre chove, e os pingos no para brisa da van me põem febres de chorar. É pra essas duas mulheres o meu suor. Pra que uma me peça a opinião quanto à cor da parede da sala, e outra encomende um novo livro de charadas. É pra essas duas mulheres que domino todas as gradações da minha voz. Pra disfarçar a dor de ter que colocar limites numa, e pra aliviar a dor da massagem na rasgadura da outra. É por essas duas mulheres a minha fome e o meu enfado, os meus discursos prolixos e minha aquiescência. As minhas sacolas e a minha solidão. A minha roupa suja e o meu passado. É pra que no sábado eu tenha banco imobiliário com uma, e no domingo cinema com a outra. É pra ter o esguicho da mangueira e as contas a pagar. É pra ter teorias sobre o crescimento da goiabeira e planos de viagem a Portugal. É pra levar na catequese e trazer do supermercado. É pra aprender os nomes dos novos desenhos e pra não desatinar. É pra ser o herói e o amante. É pra ser o homem mais engraçado do mundo e ter a mão mais leve pra um afago de acordar. É pra me sentir, afinal, na inteireza de ser eu mesmo.

WDC

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Para ela que ficou de dormir comigo

Todas as horas que tinha para ti já foram embora. Correram do destino dos ponteiros bem antes do que eu esperava. E eu aqui. Cama arrumada. Pão e café para a manhã que seria nossa primeira. Quando não respondeste da primeira vez tive um sonho. Algo como uma grande bromélia aberta no meio de um pasto. Toda sorte de gado e bichos comendo as cercanias da flor até chegar nela. Depois veio um gosto de carne queimada. Algo como a vontade de se alimentar e nunca sentir o gosto conhecido do alimento. Intragável momento de ir sozinho escapar deste mundo para contar tranqüilidades um ao outro no silêncio de nossas salas íntimas em mirantes de acolá – o desejo sossegado de pertencer sem finais. Quando houve a desistência dos sins, a derrubada das melhores lembranças, a finitude apresentada dos cuidados noturnos, apenas ai, comecei achar que não devia mais te esperar. Que teu sono já se completara em outra parte e que nenhum de nós haveria de saber o que foi perdido. J.M.N.

terça-feira, 25 de maio de 2010

A história de Frederica (ou “Errante”)

Trazemos dentro de nós sentinelas perdidas
Que devem gritar sempre e muito forte: alerta!
Porém, que vão passando a vida adormecidas,
Deixando a porta da alma inteiramente aberta!

Lima Barreto

Passou o primeiro correndo. Com fúria e vento nos pés. Passou correndo para dentro da Vila, anunciando o que eu ainda não conseguia distinguir. Minha janela aberta ainda estava vazia. Passou o segundo dizendo gritos e entrelinhas como um gaiteiro, malfadado em sua corrida, abancou-se desmaiado no tabuleiro de frutas da feira. Minha janela ainda não tinha me dito nada. Passou um pelotão inteiro. Sólido bloco de perdidos. Pernas curtas e maciças como aríetes. Forçavam o chão das ruas estourando os seixos como alfenim. A tarde foi reduzida a poeira desesperada. Minha terra fora apanhada de surpresa. Passaram por muitos minutos em frente de casa. E pareciam ter perdido o compasso da marcha e cantavam canções não de guerra, mas aquelas que cabem bem dentro do som dos maracás, das festas de taberna. E eu lembrei que minha mãe fazia este som para me acalmar em criança. Enquanto todos deslizavam de suas calmas para o poço sem fim das inconformidades, eu ia ficando tranqüilo. Minha janela engoliu toda poeira. No meio da tarde, vinte e sete de outubro de um ano qualquer, meus olhos tomaram o rumo coral do poente e deitaram nela. Vinda, não sei de que lugar do páramo. Não sei de que instância divina. Ela andava em outro ritmo. Mais humana do que os que eu já havia conhecido. Era como a forma mesma da perfeição do mundo. Aquilo que se irradia por mais cristais que a luz límpida de depois da chuva. Minha janela tremeu-se inteira. Soltou urros convocando minha presença. Saltei para a imagem que se conformou diante de mim e não sabia o que fazer dali em diante. Ultrapassei os limites de casa. Pisei nas marcas da marcha trêmula dos homens do batalhão. Reconheci o médico estatelado na feira e o primeiro que passou correndo ainda por volta do horizonte da Vila. Suas palavras, empurradas para trás, disseram finalmente a entender – ela está vindo. Um cheiro morno e muito intenso aconteceu. Um visgo âmbar de minha pele desprendia. Era ela fazendo circunstâncias em minha biologia. Quanto mais cheirava, mais impedia a razão de vir. Mais domesticado em seu rumo eu ia. Até que nos confins da rua oito, perto do final da Vila houve um grito. Apenas um. Era meu nome. Não o último, nem o do meio. Meu nome inteiro. Aquele de minha carta de cidadania. Veio ao revés do vento. Duro e reto com precisão sentida. E não eu vi até onde estava indo, mas onde havia chegado. E vi aquele ser que se estampara em minha janela momentos antes. Era a imagem mais feminina que já vira. Era o mais que eu queria em meu olhar. Porém o nome. Meu nome no desespero da tarde. A Vila levou um tempo para recobrar-se. Alguns se perderam pelo caminho, atravessando a mata espessa que nos isolava naquele fim de mundo. Eu voltei para casa. Amando e recriando sentidos. Circundado nos limites da cidade, porém pássaro para além dos horizontes. Certo de que este sentimento me faria estendido e inusitado, disposto a enxergar sua presença onde quer que minhas linhas viessem dar. J.M.N.

Incompletude

Eu não sou daqui. Nem sou de canto algum. Sou das memórias que me quiserem. Das alegres e das aflitas. Das libertárias e das vingativas. Preferencialmente, as que transitam frouxas depois de uma morte ou um adeus prolongado em anos de desistir devagar. A tarde começa em mim na primeira hora do dia. Vou acordando assim, pela metade, com vontade de acabar antes do seu fim. Falta um pouco de sal na comida. Faltam as formigas traiçoeiras e ela em toalhas de banho espantando os bichos. Meu animal dormido festejando o recuperar de sua vida quando ela tirava a roupa. Minha pele está riscada de símbolos e anagramas com o nome dela. Está flertando com esquecimentos antes que sobre apenas um traço líquido meu diante da realidade dos dias sem ela. Eu não pertenço a nada. Nem a mim. Porém, quando me lembro de algo realmente suave, lembro dela. Ali deitada em conformidade com o que jamais seria – um corpo apenas. Durmo sempre com esta beira de precipício por perto, a história que embala meu sono em silêncio. Ela dormiu antes de mim. É bonito vê-la acalmar. Ir devagarinho para as auroras sonolentas de seus mistérios. Havia esquecido como são belas as mulheres dormindo. Ninguém nunca mais me fez pensar dessa maneira. J.M.N.

Em frente ao espelho

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            Mulher na frente do espelho - Picasso

Não sou perfeita. Não quero ser. Quero ser amada. Usada ao extremo de minha euforia. De tanta coisa que me escapa estão esses sorrisos úmidos raiando o dia. Não quero ser premiada. Quero ser detida. Em algum abraço que me exaspere. Em algum olhar que me denuncie. Quero beber naquele cálice proibido e comer no banquete dos encontrados. Evoluir para uma obra inacabada. Esculpida por dentro e por fora. Pensar de mim que sou metade. Pensar dele que me precise. Quero recortes de jornal com promoções e cupons de desconto. E o sensível apanhar de minhas coisas sobre a penteadeira. Meus cabelos entre seus dedos, depois de um dia de trabalho. E depois, ir dormente para as cataratas imaginárias de nosso banho. Quero morangos, junquilhos, perfumes e intimidade. Quero viver do jeito que eu sei. Que não é mais do que ele sabe também. J.M.N.

Para as meninas que amamos 4

Levaria tanto tempo para enfrentar aqueles dias. Para resumir as conquistas, desde o primeiro voto. As coisas por que passamos. Noivos, amores, alegrias de fim de tarde, a infância até. Um trabalho para ternos, agora pede um salto alto. Amor por coisas que nem sequer foram inventadas, nascem de nossas formas e maneios. Dá certo cansaço pensar que ninguém nos lê como devia. Que estas veias abertas estão cheias apenas de sangue. Inútil pedir para que nos encontrem de fato. Não mexemos os cabelos para os bobos de plantão. Há um código inusitado que nos mostra até onde podemos ir. E com o mesmo delicado trejeito de arrumar os olhos no espelho de bolso é possível estancar uma vida, deslindar a escondida euforia de quem jamais havia pensado em ceder. Não há uma chance sequer de unirmos os vícios. Estamos entre paredes, pensando coisas exatas e ao mesmo tempo diferentes. Essa capacidade é demasiado específica de nossa espécie. Nada cabe nesse pacto de antigamente que nos envolve. E que haverá de ser sempre o limite das coisas secretas que outrora entregamos. Abre-se espaço para planetas longínquos e para a suavidade de meias de seda pensadas para fazer a diferença nos salões de baile. Nasce um plano de conquista irrestrita e na mesma mão que se acomoda o peito do ser que amamos, cabe a certeza de que existimos por necessidade. A nossa e a deles, tal como a sabedoria dos tempos insiste. J.M.N.

sábado, 22 de maio de 2010

Como desmantelar uma porção de enganos

Minha única escolha foi errada. Já estou arrependido, diga-se. Eu te mando sorrisos e nunca recebo teu olhar em troca. Nunca escuto o som dos teus sins. Não sei se entendes minha meia polegada de lábio sedento, de esperança transida em sorrisos natimortos sobre as tuas tardes. Queria que ouvisses as canções mais novas comigo e que naquelas capas de discos muito antigos, colocasses tua assinatura ao lado da minha, tomando conta de todo o tempo que tive minhas coisas só para mim. Como dói desejar isso. Desarma minhas armadilhas com teu olhar de mundo. Fica. Confia nesta paralisia acentuada que te toma todas as vezes que chegas até nós em segredo. Atende ao chamado que te fiz no último telefonema. Diz ao menos que o poema que declamei ainda traz alguns minutos de conforto. Não estávamos certos de todo. Queria te explicar, mas a única coisa que me ocorre é sentar contigo uma tarde dessas, os olhos postos em qualquer canto de nós, e preparar o resto dos planos que começamos, para um futuro em que apenas há espaço para as memórias que tenho contigo. J.M.N.

Excertos Terapêuticos XXI

“Morre
Neste samba um sentimento
Quem é que tanto amou
Que aqui, se vai

[…]

Morre
Neste samba um sentimento
E ao tempo eu entrego
Os nossos Postais”

Sentimento – Emanuel G. Matos, 1986

Morro Três Sentinelas

A razão da pergunta não morava nela mesma. Não estava nas cercanias da interrogação, muito menos nos motivos do fim. O cerne daquilo, o núcleo em si daquele questionamento começou num tempo em que nem ao menos existiam as suas palavras para cumprir seus saberes a respeito de si. Rezava um terço antes de dormir. Este fato sozinho era a denúncia do que temia. Apenas segredava suas vontades naqueles momentos escondidos em que as contas e as orações passavam entre seus dedos. Cada uma delas levava um milésimo de culpa por querer além de si. E começou a recuperar-se de tudo o que haviam lhe destinado em casa. E resistia a ele ferozmente, contando cada gota de negação amargamente. Não obstante, dizia estar, dizia ser... dizia, ademais, que estava pronta para a vida. O dia nascia e o vento estava coçando em sua pele. Subiam bem alto para olhar do outro lado, para um novo horizonte que lhes haviam anunciado, existia depois do morro. Lá em cima ela chamou a Virgem Mãe. E se assustou com tudo que se descortinava. Buscou abrigo dentro dos braços dele. Mas ele estava diante de seu maior desafio – buscar aquele risco além do olhar nascente. A fenda minúscula que separava o céu do terreno verde da planície além do morro. Enquanto um reconhecia que estava pronto para correr ao fim do mundo, o outro mal partira de si mesmo. E lá de cima, arcanjos e outros seres míticos ouviram os seus pedidos calados. Escreveram seus nomes em cada uma das três árvores dali e voltaram de onde partiram completamente mudados por dentro. J.M.N.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

E o dia vai acabando

Quando o dia vai acabando vou seguindo o caminho do poente. Invariavelmente o astro guia me leva a ti e tuas coisas esquecidas em minha casa. Não quero voltar, porque lugar ali não existe. É uma nave barroca que me impele a confissões, muito triste e pegajosa como as armadilhas de uma fé sem quase certeza.

Quando o dia vai acabando e a natureza afunda a luz como a um alfinete no tecido estampado, vou ficando mais sem limites, mais desajustado e pro forme. Meus anuários se escreveram, estes últimos, por tua causa. Mas agora que não há nada de mim em ti, como faço? Recoloco no rumo do despenhadeiro minha anarquia?

Quando o dia vai acabando sinto as vívidas anuências dos afagos. Precioso marco de meu corpo ainda existente por um fim de lembrança tua. E vou escapando e dizendo coisas que não queria dizer, para pessoas que não saberão nunca do que estou falando. E fica um vazio dormente que não me deixa esquecer o quanto estive bem em teus braços.

Quando o dia vai acabando e a festa das minhas idéias apenas sustenta a busca por mais uma lembrança, por mais um beijo esquecido entre tantos sabores de sonho e discos usados, vou terminando as contas do que me falta e ficando cada vez mais endividado. Quando o dia vai acabando e a Terra engole o sol que me ilumina, volto à tua feitura, volto à porta aberta do passado com um sono que jamais diminui ou morre e, finalmente, o dia acaba nas cordilheiras que me separam por dentro. J.M.N.

Para ler escutando…

terça-feira, 18 de maio de 2010

Todas as vezes em que esperar valeu à pena

“I will wear my heart upon my sleeve”
William Shakespeare – Othello, 1602

A porta abre. Sem campainhas. Sem pudores o vento da noite se aninha. Nasce o resumo de todas as paisagens de uma vida inteira de viagens aos confins do mundo. (Ela). Infestada de rua, com roupas pouco usuais. Apenas uma coisa a dizer. Quer ficar, ao que parece, porém sustenta um minuto de expressão neutra e desaba-lhe a dureza da espera com este gesto. Ele torcido. Curvo dentro de um plágio de si. Já não era ele mesmo, de nascimento. Tornara-se um cujo. João-Ninguém. Dentro do silêncio de sua chegada ela lhe tira as possibilidades de um existir concêntrico. As espirais nascidas de sua figura desencontrada, agora envolvem os carrosséis da infância, a tessitura das mantas de dormir e dos cueiros. Ele sem sê-lo, divaga. Um minuto maior que toda a história do mundo. Maior que a descrença em reparos. Ela então arqueja as sílabas e de dentro dela saem umas tais palavras. Move o que está fadado a mover o gênero dele, deixando o arfar pesado de incorporar-se. Move a estrutura belíssima que desenvolve espaços, que atraiçoa a anatomia masculina, ferindo de morte o auto-controle. Desmontado, descoberto, irreversível. Sacrificado no altar mais profano. Ele ensaia um canto de escravo. Ela reprova. E continua dentro do provar de ares que o rodeiam. Sua frase agora é completa. Ele finalmente escuta o que deve escutar. Recupera a metade de sua compostura. Toca os cabelos. Aponta o lugar em que eles irão destruir as coisas, sucumbir aos extremos. Finalmente um carinho. A mão dela em sua mão. E ela pára. E se deixa conduzir. Os passos demoram a acontecer, não por indecisão, mas por certeza, por necessidade de sentirem-se. Há sorrisos e diamantes. Eles entram. Estão perdidos. Como sempre faziam questão de estar. J.M.N.

Sugestão de trilha sonora…

Onde Estão os Portos II

No 18 de Maio, Dia Nacional de Luta Antimanicomial

Onde estão meus portos? Viverei nesse eterno passar por margens de Susana limpando lágrimas nas mangas vetustas da camisa de aninhar, num gesto atávico repetido e herdado da minha e da mãe dela. Onde a mansidão dos beirais espargindo a chuva que enviei só pros olhos vespertinos de Susana? Desde onde os ventos me convocaram à varrição das ruas é que me desencontro de colos e janelas abertas para as estrelas. Desde pequeno tive clarabóias. Disso veio o meu domínio da geometria austral, da intimidade das constelações. Eles não entenderam esse meu novo dom de profetizar os movimentos dos brilhos mortos, e quiseram me amurar com químicas e faixas brancas. Mal sabiam que fui feito com calibres de pássaros e nuvens. Com bitola de tempestades amiúde. Mal sabiam de meus enlaçamentos com a voz que nomeou tudo. Mal sabiam da mensagem que se enrodilhara nos labirintos tensos do meu ouvido desde que Susana me deixou. Não sabiam do alistamento e nem da missão. Não obstante o esgar de todos, salvarei cada um ao revelar o avesso oblíquo de suas rotinas. Teremos todos as piores guerras, as íntimas. Mas gastarão apenas duas estações de chuva. Cessarão quando o musgo vencer a última lança da última cerca. Quando a última porta se abrir, o rangido das dobradiças e o baque do ferrolho aberto forjarão o bramido de homens livres, e de mulheres livres também, que os amarão sem distâncias, desculpas ou favores. WDC

Pergunte a quem quiser

Por causa de Vinícius de Moraes e seu canto de Ossanha
e por causa do imenso amor que sinto.

Pergunte pros orixás, pergunte a quem quiser. Amor não é coisa de principiante. Ninguém mora dentro do amor para sempre e, no entanto, ele mora pra sempre dentro da gente. Mesmo quando nos dizem que a vida não é do jeito que gostaríamos que fosse. Mesmo quando o desejo se apresenta às portas do fim. Mesmo quando o sopro da luta se esgarçou tanto que todo ar que entra não basta para continuar a mover o peito. Ninguém me venha dar piedosas interpretações para as tolices de ontem. Ninguém venha por sobre meus passos devorar o caminho por onde andei. Ninguém ouse congelar minha chama, minha verdade fundamental – não vivo sem isso. Mesmo quando o telefone não toca. Mesmo quando ela derrota toda minha humildade com a certeza de que o erro partiu apenas daqui. Pergunte a quem morreu disso. Pergunte aos sozinhos de plantão, que guardam amor demais do avesso, que rimam porque não sabem explicar o rumo dos sentimentos que lhes impede de planejar futuros a dois. Mesmo que tenhamos toda a sorte do mundo, vamos nos encontrar abatidos. Mesmo que agora nos digam ao pé do ouvido “eu te amo”, vamos aguardar em silêncio o afago um do outro. E disso eu sei bastante, pois que desde que nasci sigo vivendo disso. Amor completando as minhas falhas, as minhas ausências. Amor que tem o teu nome em flor madura dentro de mim. Que está riscado na minha pele feito as faixas de um LP. Contra as correntes que me aprisionam, contra os olhos que me duvidam. Pergunte a si, enquanto a cama esfria depois de uma noite comum em braços que não tremem por te sentir. Pergunte a quem quiser – amor só é bom se doer. J.M.N.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ah, esse olhar…

Algo nesse olhar me faz descer dos telhados. Me desata os nós de dentro. Me desabotoa alguns tormentos, não sem antes inventar outros. Não sei se é uma espera ou um pedido. Parece o braço de um náufrago saindo de um fundo famélico. Algo nesse olhar desanda minhas receitas. Entoa mantras. Tece tapetes que me desviam do que sou. Parece que não pisei em academias, ao ser interrogado pela sobrancelha direita que se levanta, pelo sorriso que brinca nas frestas do meu silêncio. Parece que algo maior contém a minha raiva quando a boca diz não e o olhar apressa-se num dulcíssimo sim. Algo nesse olhar me diz que quer ser metade de mim, na mesma medida que me despreza por inteiro. Algo nele me cobre e me deixa com frio. Me guia e me abandona. Me chove e me mata de calor. Algo nesse olhar já me apanhou, regou e cultivou, num chão que já não tenho.WDC

Dos dias que não sobraram

O zinabre cobrindo os segredos que esqueci de te contar, tenho-os ainda. São meus e teus ademais. Assim como a certeza de que sabias que não era esquecimento. O fato que é fostes embora cedo demais. Aquele dia em Brasília, fostes a única a dar escuta para os meus exageros, como sempre. Pela primeira vez vi um palavrão saindo da tua boca tão acostumada a falar de Clarice e de essências. Gentista, era o que eras. As gentes te encantavam. As gentes todas te olhavam com desvelo, mensurei isso pelo tamanho da tristeza que deixaste pelas aléias choradas pelos teus. Ainda hoje me deparo com um pedaço de ti quando olho nesse espelho cansado do meu quarto. O modo de virar o relógio para a parte interna do braço pra que ninguém notasse quando vias as horas, e que eu achava de uma elegância sem precedentes. Os teus livros e a linguagem de fazer todas as horas únicas e inesquecíveis. O sempre partilhado desejo pelo impossível. O jeito de sorrir depois de abrir mais um veio em nossa couraça. Hoje sei, senhora, que o formão que usei era do meu pai, e quem foi ao cartório pra corrigir meu nome foi meu irmão. E só tu, senhora, conhece como essas pequenas odisséias enoveladas constituem a matéria primeira de meu sangue. Dá-me os óculos, foi isso que, como Pessoa, falastes nas tuas últimas horas? Ou falastes das riquezas que a dor nos deixou? Concluo que as tuas heranças foram mais numerosas que o vazio esmorecido que se arrastou depois da tua despedida. E que essa palavra comum de dois gêneros que te definia sem te enjaular ainda me guia como a mão materna que me salvou de mim, da minha falta e do meu amor em demasia.

WDC

domingo, 16 de maio de 2010

Pedido

Vem amor. Vem ver como são tuas as minhas músicas de agora. Vem ver nessa manhã tão cinza a cor de um céu que antevê minha inquietude. Chega logo. Chega inteira e inconstante como só tu sabes que eu quero, pois na verdade são os iguais que se integram. Somos nós que fazemos os outros duvidarem dos seus sentimentos. Olha bem meu amor. Olha a tinta com que pintei a casa nova. No granel do encontro, ano a ano, ganhei mais rugas e abri mais feridas que ninguém. Encontre amor. Encontre a parte mais perdida deste ser que te pergunta. Que se assusta ao saber que ainda é teu. Que executa armadilhas contra si mesmo. Defende amor. Defende a finíssima idéia de eu ser perdoado, pois assim eu saberia que sou digno de meu perdão também – o mais duro de todos. O mais encrenqueiro e rude. Volta amor. Volta que na distância tenho medo de ser de menos, de ser um gênio do oficio da solidão. Tenho medo de não te ver nunca mais pedindo um pedaço de pão, minha mão para atravessar a rua. Fica amor. Fica desta vez como jamais ficaste antes. Dizendo teu amor com cada íntimo de tuas palavras, com cada sede de tua bilha, como cada esforço de me fazer compreender que eu tinha tudo e me perdi. J.M.N.

Da próxima vez

Da próxima vez estranharemos não estarmos juntos nas manhãs de segunda-feira. Não haverá conforto até que a noite chegue e você faça o único prato de jantar que aprendeu. Da próxima vez eu serei mais teu – como se isso fosse capaz de ser. Dentro do peito uma pluma a bater-me emoções confortáveis de lembrar de ti. Da próxima vez acordaremos integralmente, para que nossos sonhos não extravasem para as manhãs e não confundam nossos quereres. Somos o sal desse lado de cá. Amaremos santos como os antigos e entregues como deve ser. Da próxima vez aconteceremos ao mesmo tempo. Sem vírgulas ou percalços. Entraremos juntos na Avenida Atlântica a seguir a direção das estrelas. Sairemos de barco por ai, rumo aos horizontes austrais do fim do mundo. Da próxima vez te ensino a fazer omelete, te ajudo com o dever das crianças, te compro um bolo inteiro de aniversário. Faço tuas unhas, pinto tuas mãos com motivos hindus. Da próxima vez acenderei candeeiros em vez de velas. Farei infinitos das gotas que beberei em tua barriga prenha. Da próxima vez teremos Alices e Joaquins, coelhos e uma caixa d’água enorme para os dias de brincar com a mangueira no quintal. Da próxima vez continuarei as lágrimas de bênçãos e amores matinais, as presenças de afagos e órbitas lunares. Comprarei uma janela para os fogos do Círio e para todos os fogos de artifícios dos teus olhos. Da próxima vez pedirei menos e darei mais. Como descobridor antecipado das tuas necessidades, das tuas brigas e constipações. Da próxima vez te faço perder a chave da porta, o mapa das ruas, a noção do tempo. Apenas para que não deixes jamais de ser a metade de tudo quanto me organiza e cumpre. J.M.N.
Para que escutes enquanto lês...

Cogitações

"Eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim."

Cogito - Torquato Neto

Incêndio, aço. Fumaça de caminhão para o resto do que não tive. A estrada a que pertenço, te deixa muito cansada. Vou voltar para Macondo e sua inexistência. Para dentro do meu livro de cabeceira que fala sobre a solidão. O que sempre tive. Ela me acompanha por toda parte. Vou nela buscando entender como me deixo chegar a estes fins tão barulhentos e ferozes. Com tantas pessoas boas deixadas pelo caminho. Talvez não seja bom. Talvez não tenha feito as perguntas corretas. É isso que digo. Do alto da torre a cidade baixa se completa. Um punhado de telhados afundados na tristeza poeirenta do caminho. Volto lá para escrever estas linhas que não saem em ambientes refrigerados e com bons guardanapos de seda indiana. Não. Volto a mim mesmo quando preciso escrever. Palavra esta que me integra às coisas menos sabidas de mim. E nisso vou fazendo parte da minha história. Acontecida como um Quixote que se levanta. Como um músico perdido na melodia interminável que tentara fazer para ela. Um bar escuro. Mulheres velhas a enxergar orgasmos onde jamais se pensou em tê-los. E perturbo meu sono de agora com um pouco disso. Revisitando as celas do monastério eu. Precisamente há mil duzentos e noventa e um dias ando apaixonado. Voltado para contar dos meus escapes e agora eu posso. Como nunca antes pude. Ser o que sou. O que se me destinou ser a engrenagem do seio familiar que me amputou a possibilidade de agir normal. Nem queria. Nem poderia. Com esses cardumes de risos e entregas apostando corrida em minhas madrugadas. Apenas para acordar mais cedo e viver do avesso para sentir. A primeira morreu de fome. A segunda de exagero. A terceira morreu de tédio por eu não ser perfeito. Ela me encontra por cima de tudo. Sem ordem cardinal. Sem ordenamento de territórios. Ela me encontra em uma matemática simples e até corriqueira, onde diferente do que meu pai queria, um mais um pode ser o quanto eu quiser. J.M.N.

Bem-vinda

Por causa de Gonçalves Dias

Enquanto espero acontecem lagos e vibriões em minha náusea – sou um retrato do que mais procurei e quis. Enquanto esqueço resisto aos atos improváveis de me atirar sob carros em alta velocidade. Enquanto escuto invento cenas e gestos para fazê-la sorrir. E como custa saber que não posso. Enquanto amanheço e erradico a noite de dentro de mim, sobra um espírito, um pequeníssimo espectro que me envergonha. Enquanto canto e roubo aplausos apenas de mim mesmo é alegria compostada naquilo que fomos. Tudo dela. Tudo ainda. Enquanto sangro sem saber de curativos, enquanto sambo em antigos carnavais, minha festa vazia se encaminha para o fim, mas eis que nesse instante, senhora dos passos mais silentes que já vi, ela entra em minha vista. Estica-se para saber quem a chama, e este sou eu. Empregado dos bailes de uma vida inteira e mais duas. E ela chega. E com isso acaba minha agonia. Simplesmente porque anda despreocupada sob as luzes da alegria que se fincam como estrelas no chão do salão vazio. Somos nós dois. Reinando finalmente ungidos. Os astros abrem caminho para sua passagem e eu, abro mais uma vez a minha voz para que ela se saiba bem-vinda. J.M.N.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O ritmo da história que não contamos

Outro nome de monstro. Outra célula dividida. A intimidade toda dentro de um risco no nome dela. Outra mão que procura o lamento da pele. Outro ar que fecunda margaridas e páginas. Outra morte tentada, menor porção de uma aventura. Outro dedo apontado. Outra culpa e mais uma. Aquelas noites absurdas desejando voltar. Insanos na forma de se dar. Outro abismo, um luar. No balcão a espera. Outra vida se dá. Meu filho crescendo dentro dela. Minha hora de mudar as verdades. Outro razoável pacto de fidelidade e amor eterno. Outra semana de brigas. Outro castigo de Deus e eu ainda morto da lida. Outra forma de dizer até mais. Outro adeus que encurta com tantas lembranças. Do lado de fora já não andas enlaçada em meus dedos. No outro lado de mim, jamais sairás desacompanhada. J.M.N.

Onde vivem os monstros

Alguns disseram que era depressivo. Outros que era brilhante. Outros ainda disseram que o filme tinha um quê de Dogma 95 e psicanálise. Eu, que não entendo nada de cinema ou roteiro, ou blá blá blá técnico, prefiro dizer que o novo filme de Spike Jonze é maravilhoso. Merecedor de uma boa noite sob o luar, nos braços de alguém ou mesmo, como aconteceu comigo, uma tranqüila solidão de sábado para ser assistido, deglutido e suspirado.

Baseado no best seller de Maurice Sendak, Onde vivem os monstros é daqueles filmes que incomodam e ao mesmo tempo encantam. Que trazem a infância retratada em seu esplendor fantasioso e sua fragilidade seminal, que coloca, num mesmo cenário, os conflitos crescentes em torno da razão de nossa vida, do medo de crescer e da freqüentemente conflituosa relação com nossos desejos e dúvidas sobre os sentimentos dispensados às pessoas que mais amamos.

A forma como Spike Jonze conduz a história faz pensar que seria possível atravessar um oceano e encontrar alteregos prontos para nos confrontar com nossos limites, como nossas insuficiências, assim como preparadíssimos para nos acolher e instigar, ao ponto de nos fazer perceber que a construção do percurso de nossa vida se dará, conforme formos nos apropriando de nossas mais primitivas faltas, de nossos mais primários arroubos de isolamento.

Não bastasse uma fotografia deslumbrante, uma naturalidade cênica invejável e uma produção primorosa, o filme conta ainda com uma belíssima trilha sonora de Karen O., auxiliando com sua melodia terna e quase idílica, a nos encontrarmos com o encantamento das fábulas de nosso tempo, enredadas dentro da modernidade de nossas relações familiares, de nossa intimidade cada vez mais coletivizada e, paradoxalmente, individualizante.

Mais esses, já são comentários pra lá de pretensiosos. Vamos deixar que a veia analítica descanse e voltar para o que interessa de fato. E é a simplicidade e a leveza com que Jonze conta esta magnífica história que merece nossa atenção. Portanto, um pouco de Onde vivem os monstros... J.M.N.

Trailer...

Ninguém ouviu o grito lá em casa

Acode que alguém morreu! Gritou-me lá de dentro aquela alma. Metade das coisas desapareceu diante desse grito. Meu corpo moveu-se com a agilidade de uns cinco anos perdidos da vida. Como quando se chega ao final do céu de dezembro esperando que o ano novo seja bem vindo e melhor. Morreu alguém que não era nosso. Ou que não era feito da mesma coisa que nos faz a todos – carne, ossos, temperatura. Gritaram alhures, um grito muito firme e consciente, como se a morte fosse um presente, muito mais que uma tragédia. Não sabia que gritava assim quando se via o fim de alguém. Morreu na inconclusão do ofício, como morre a junta massa de nós todos numa mesma era desta existência. Acode que agora eu entendo. Que aquele grito era meu para mim mesmo. Um desespero que se convoca quando o mundo inteiro não percebe nossa agonia. Acorda morte que teu prato está à mesa! A terça parte deste inquilino se volta às rimas e às idéias e intercede em si mesmo para que não chegue ao fim. E como se perguntasse a mim mesmo o que fazer, respondi sorrindo que só a vida, só a vida. E vi na parede, retrato e sonho. E vi nos olhos dela, meus próprios olhos. Olhei para casa e nada. A noite começava tranquilamente, como quando o desespero passa correndo e engana a voz e o peito, nadando contra a corrente e abrindo berros no vento. J.M.N.

As palavras que a reclamam

Olha bem, meu bem, nossa canção de amor jamais vai acabar. Vê se enxerga de uma vez por todas que eu estou aqui. E como nunca estou arqueando meus sopros de vida porque sei que virás. Porque sabes que sou eu no silêncio das ligações. Por que sei que visitas este meu reino de letras e mortes tão juntinhas. Tão próxima a inquietação que me dá quando penso assim. E dessa janela que abriga meu sussurro subo aos altos e vou indo. Vou indo como os flocos de neve que aqui nunca caem. São acordes teus olhos lembrados. Nossa música se alonga. Fico aqui, dentro de mim, pairando pela cidade despedida como fazia já em anos poucos de minha vida. E tem o cheiro da tua pele saída do banho a madrugada. E tem razão para o dia meu pensamento. Quando minha madrinha descobriu que tinha ímpetos de fome avoada foi um desespero. Mais um perdido nas santidades de carmim. Contou para ela que me instruía e ensinava o amor em estado de encontro – a fundadora de humanidades. Com cada um de seus olhos contei que virias até minha vida. E roubei as esperanças que ela guardava para ser feliz, porque feliz era queria que eu fosse. E sou assim porque sei contar histórias. E o faço tão bem que elas não têm jeito de serem apenas minhas. As pessoas se aproximam do que eu conto. E nas cidades onde eu estou elas passeiam. E passeiam pelas lembranças daquele menino. Ainda o vejo nos tremores de contar a ela que se sentia só. Dentro do carro, uma noite, já homem o menino desandou num choro. Queria encontrar a franqueza do abraço da mãe dela em sua própria mãe. E fazia por fazer as promessas. Até aquele dia que sentiu o acolhimento da mãe de outra pessoa, acolher o que faltava de ser acolhido dentro dele. E passou a prometer apenas o que podia. E prometeu-se eternamente e tão fundo que o para sempre virou apenas um segundo. E continuou a falar essa eternidade, até que o tempo se engraçou de suas palavras e as deixou fazer caminhos em seus espirais. Eu ainda lembro o corpo que me fez homem. Tinha três entalhes lindíssimos em sua pele. Três detalhes que fariam seu ventre ser a casa única da próxima cria. Eu verdejei demais essas palavras. E as escondi de mim tão escondidas que elas perderam a força do que dizer. Escrevem-se quase sozinhas e dizem o que bem querem. E elas me dizem agora que querem ser dela novamente. Dizer o que ela significa. E o que ela significa para mim está bem dentro destas palavras de agora. Que começaram ontem. Por causa do que tinha para dizer e não disse. J.M.N.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Se Rasgum apresenta Autoramas (RJ)

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Tenho orgulho de falar desses meus amigos que meteram a cara na produção de eventos e hoje fazem parte do circuito dos melhores festivais alternativos do país. Melhor de tudo, fazendo isso aqui mesmo de Belém do Pará.

O Palavras deixa a excelente dica para este sábado, 15.05. Taí.

SERVIÇO

Se Rasgum apresenta Autoramas (RJ)
Abertura: Eletrola
DJs: Se Rasgum (Damaso, Marcel e Gustavo), Durango’95 (Daniel Leite) e Coletivo Pogobol (Thiago e Gabriel).
Sábado, 15 de maio, a partir das 22h30.
No Espaço Cultural Cidade Velha
Ingressos: 10 dinheiros (antecipados) e 15 na hora.

terça-feira, 11 de maio de 2010

A maior verdade

Eira nem beira. Nada me eleva. O moirão fincado para minhas lágrimas padece. Aquela mulher não pode ser ela. Não pode ser tudo isso que me encima. Não quando era eu que ornava ventos e me chamava a mim mesmo de poeta. Quando construí meus brinquedos de palavras pensando em dar-lhe. Não pode ser ela mais uma vez. Que quando uma coisa em mim aumenta é porque já está no fim. Olha o fim do mundo, na outra margem do rio. Onde a canoa me deixa toda a vida a esperar que volte. Indo e vindo. Não caibo nestas linhas. Queria de estar provando seu leite que é igual a um viver muito sentido. Minhas mãos tinham rumo e agora, só têm linhas. Nessa estrada que acaba à tarde de agora ela vem vindo. Como nunca veio em milhar de ano, como nunca foi contada em folhinha. Ela vem que nem a própria estrada e eu vou nela despercebido. Vou me fazendo que nem ela sabe. Para esperá-la. Para ser eu apenas, seu andarilho. A estrada que se faz nela, conheço desde antes de acontecer-me a vida, desde antes de eu correr para o rio. É uma importância mais imensa que a água líquida desse mundo, que o rumo mesmo em que vou sozinho. J.M.N.

domingo, 9 de maio de 2010

Como em um bolero

Fui acusado de fingir amor. Porém garanto, isso não sei fingir. Porque sou dentro dele o que sou. Porque o tive em minhas vestes mais pueris. Porque o tive desde sempre, desde antes de vir. Fui acusado de querer demais, de viver com o paladar a pedir novos sabores. Não sei. Tanta gente pede gostos que logo passam. Eu quero passados que virem logo gosto. E passado pode ser um só segundo. E como gostos, ficam lentos a gritar bis. Voltam como feixes de riqueza e mundo, como copos de teor vivido. Lugar de dois mesmos que se encontram é para sempre. Nunca a ouvi repetir uma canção. Fui acusado de ter feito o que não devia. E vida não devia fazer diferente do que se queria ou pretendiam os mal feitos para amar. É estranho o ócio desse tempo. Mas eu estive. Mudando o que me era possível mudar. Estou certo agora disso e esse meu fragor de desistir se borra de medo do que insisto nos dias. Vou por ai, cavando as cidades. As de fora e as de dentro. Vivendo o infinito que se me apresenta. Pode ser por um segundo que eu sinta, mas o que sinto, para dentro desse segundo, é infinito. Pois foi assim que eu aprendi. E vem de antes do meu húmus o que sei. E não quero esquecer, pois que senão não me existo. Fui acusado de acabar com tudo num só minuto. Porém mereço os suspiros que me aumentam. Pois que cada pequeno ar que me entra, invade minha contagem de horas e percebo que aquele minuto indevido, foi apenas uma gota, no mar do tempo de eternizamos – eu e ela. J.M.N.

Mater

Mais disso não poderia ser. Um mundo dentro da bolsa. Minha cama placentária. Nasci em meio ao sujo, num mar de substâncias nada aprazíveis. E seus olhos foram os primeiros a encontrar minhas formas no meio daquilo tudo que saia dela. Somos uma biologia à parte. E como poucos organismos vinculados. Ela tem os olhos azuis e descende de povos distantes. Me fez dentro de si e eu sempre querendo escapar. Foi ela quem me mandou descer das árvores. Foi ela quem organizou meus primeiros anos de estudo. Sua lei era o eco escapado de um pai que viajava muitíssimo. Talvez não precisasse, mas sempre falava dele. E um dia, como naturalmente aconteceria, eu a fiz chorar. Fiz perder a cabeça. Ela me machucou. Nunca são simples os grandes amores, dizia a canção. E estamos aqui. Um de cada lado. Sem cordões umbilicais, porém unidos com a mesma grande força que tanto atrai como repele. Sou parte do que ela quis, e mais, parte do que sequer esperou e me dá um alento extremo saber que, mesmo sem pedir antecipadamente, poderei estar em seus braços com todos os frágeis segredos que me fazem tão solitário e irregular. Isso, por fim, é o melhor dos lugares. Meu útero a céu aberto, cujo cuidado pode se dar por desejo ou necessidade, mas sempre estará por lá. J.M.N.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Cartas a ninguém (07.05.2010 – 00:39h)

Caro Zeca,

Mais cedo senti o toque daquela tua mão menor. Os dedos pensos num infinito particular. Toque franco e cheio de compreensão aquele teu. Jamais incompleto. Por isso, caro amigo, é que te escrevo para contar o acontecido. Escrevo-te para elucidar a mim mesmo, pois que desde a ausência que te sustenta, trouxeste uma memória esquecida e partilhaste teu segredo mais distante. Desde já, reconheço a minha dívida.

Estive todo esse tempo a procurar dentro deles, Zeca. Estive esse tempo todo a caminhar em passos duplos ou triplos meus tormentos. Uma bobagem. Um desatino. Esqueci-me de olhar seu sono, de escutar suas expressões de maior medo. Deixei de crescer flamingos no branco triste de suas tardes à janela. Queria dar-lhe as cores que eu imaginava eram belas. Ela queria apenas que eu estivesse. Mas eu não podia. Não estava em lugar nenhum.

Como achava que estava perto, entrementes. Porém quando ouvi a pergunta que me fizeste, estanquei. Sabia que não podia passar daquele momento adiante. Lembrei da vaga força dos passos dele no fim da vida. Tua presença me levou até isso. Vi tudo como de dentro de um disfarce. E percebi que tudo quanto mais buscava não era dela. Não era meu sequer. Era do mundo. Era do entorno. Maravilhas avistadas enquanto eu não via.

Teu filho me conta de tua vida. Pouco a pouco revejo nisso semelhanças e argumentos. Estamos ambos atrás das mesmas coisas que querias Zeca. E estas são mais reais e vivas que fantasias. De sorte que quando o ouvi dizer que partiria, sabia que era melhor para o seu estado, pois ele já não as procurava, as maravilhas. Não havia fome nenhuma naqueles olhos.

De dentro de nós, eu e ela, vivi girândolas, varíolas e densidades. Estive em mares, alegrias e falecimentos. Fui santo, mouro, desastrado. Mas nunca estive certo de quem eu era. E o que eu sou – foi isso me deste – não sou nada. Nem sequer o que ela me omitia. Não sou mais que a terça parte de enganos. A maioria dos fugitivos de uma era. Zeca, por Deus, sou eu apenas. Aquela busca desgraçada cobrou caro.

Era isso que tinha para te contar. Era isso que eu queria que soubesses. Agora não busco nada senão tudo. Não corro riscos senão de morte, que é a mesma coisa que sentir do avesso, sem correios ou telefones. Embutido em si. A minha busca por Ele é a mesma busca por mim. E eu sou esse que te escreve. E sente falta do teu filho e do meu pai e do pai dele. E sente falta de todas as coisas por acontecer.

Não te incomodes com o que não há. Com o que é de menos – foi isso que eu entendi com teu abraço. Estes restos de pessoas não são reais. É assim mesmo descobrir-se. Muito obrigado. Não procures me acompanhar nesse meu tempo, pois que de onde o conto é uma eternidade e justamente por causa disso, soma-se à tua falta em meu presente, como o desfalque que me faz meu outro José. E por ser eternidade, esse meu tempo pode caber dentro dos minutos que levas agora para terminar as linhas que te entrego.

Vai com calma e não voltes nunca. Caso possas, segure-os por lá mais um tempo.

Sinceramente,

J.Mattos

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Homilia segundo minha insônia

Sapientia longe preestat divitiis

Há que vencer-me a noite,
pois que não há divindade nesta vigília constante
E já não quero maldades, como antes
Rezo para que eu me perdoe de tudo
e enquanto isso, penso no que não fiz
Dói nas entranhas ativas que me corroboram,
as minhas faltas de amor e verdades
Como posso fingir mais de uma vida se não me tenho?
Se não encontro mais o ritmo cálido de suas mãos em mim?
Como posso ser louco se estou só?
Como viver a realidade se ela não está para dizer
que é impossível?
Somos invenções mútuas, eu e ela
E sabemos
E porque sabemos, temos a dívida
de nos capturar mesmo na distância
Mesmo na negação de que ainda somos feitos
um para o outro
Um para cada tempo do seu peito.

J.M.N.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Perguntas de Ontem XIV

Venha ver de onde saltam os amanheceres. É de lá. Daquela imensa nuvem que nunca anda e tem a forma do fim do mundo. Como sei? Eu já estive. Contando os saltos antes de morrer, no tempo antes do tempo de carne e ossos que nos encerra. Altura impressionante de onde eles caem os amanheceres. Parece que não chegarão nunca. Sempre tive medo de alturas e, no entanto, eu mesmo saltei daquele cume uma vez. Uma única vez. Mas valeu toda uma vida. Acontece que eu cheguei a um lugar inesperado. Cheguei onde as coisas acontecem, independentemente de como choramos suas perdas ou conquistas. Cheguei à prática mais antiga de toda a existência. Cheguei perto do maior mistério de ontem e de sempre. Um dia ainda volto à nuvem dos amanheceres e quando esse dia chegar quero que você esteja comigo. J.M.N.

Pergunta de ontem: o que esperas chegar além dos teus amanheceres?

Passeio noturno

Ontem deixei uma porção de sons gravada. Liguei como se fosse a mais secretas das coisas que faria antes de voltar para casa. A cidade estava diferente. As ruas me confundiram um pouco, talvez pela falta de lugares aonde ir. Iria o mais distante possível não fosse esta irregular sensação de tato que me provocam as mangueiras daqui. Este incrível verde em meus pulmões. Minhas lágrimas de barro e leito de rio. Assumi que as coisas estão onde devem estar. As paredes das casas dos conhecidos ainda são mistérios para mim. Parece que os conheço todos muito mais do que a mim mesmo. Eles estão escondidos lá dentro. Seus muros, meus telescópios. Queria ouvir uma voz. Aquela que me mantinha durante dias, exasperado. Queria uma voz de berço, com grades altas para eu não cair – ou fugir cedo demais dos meus anos calmos. As noites daqui não têm pássaros como nos contos que li anos atrás. Abri a janela do carro e bebi um pouco da chuva fina que caía. A noite escondida em mim escapou nesse gole. Eu deixei. Queria ouvir-lhe perguntar que era. A quem pertencia aquele silêncio do outro lado da linha. Gravei uns segundos de minha saudade. Música ao fundo. A letra dizia algo sobre uma inquietação. E então minha casa surgiu. Meu pequeno palácio. Em minha mitologia é o lugar mais seguro da Terra. Fui largando as coisas pelo caminho até o quarto. Enquanto me despia, ia deixando a luz da noite entrar e fazer minha cama. Janela aberta e os sons entrando com a naturalidade do concreto que me aflige. Sou menos meu hoje, pois queria que soubesses que sinto ainda mais do que no momento em que fugi. Finalmente estou convencido por dentro, feito o outono que não temos. A gente pode se trancar durante meses ou anos. O telefone jamais irá tocar. J.M.N.


terça-feira, 4 de maio de 2010

As tuas propriedades

“Todo o fantasma, toda a criatura de arte,
para existir, deve ter o seu drama”

Luigi Pirandello

Chega a noite e finalmente eu chego em mim. Vou ver o saldo do dia e fico espantado – pouca coisa mudou. No cerne de tudo quanto vejo, acontece você e esta demora infindável da distância. São onze da noite. Os ponteiros julgam meus atos muito mais dos que aqueles que feri ou matei. Já escuto os anjos anunciando que me esperam do outro lado para zelar pelo que não posso sozinho. E rezam e choram com as descobertas do que me vai por dentro. Entre estes dois mundos descubro coisas sobre você e mais uma vez me encanto. Não há nada em redor, apenas o cheiro da sua pele. E eu ainda duvido poder existir coisa melhor, mais densa e cheia de memórias que isso. Esse cheiro seu me contendo. Chamando à vida os meus sorrisos. Passou o tempo e como eu me vejo deste lado do sono é como se nunca você tivesse ido. Estou tão repleto. Tão conciso. Cheio de anuências e gomos e coisas assim, complementos de todo o resto. Posso ser o que quiser que eu seja. Mas peça. Peça para que eu não morra enquanto não chega amanhã, pois nesse intervalo da vida que é o sono, algumas vezes tenho vontade de não voltar. Como quando esperamos o sino do tempo chamar de volta às ruas da infância, ao colo terno e aconchegante de quem mais nos amou. A noite aumenta tudo. Sobretudo esse meu medo de não ser nunca de ninguém, pois tão incompletamente meu que, desde o primeiro dia, acho que sou um fantasma. Faz silêncio, mas eu canto. Faz escuro, mas eu vejo – como os lobos, como os cordeiros que fogem da caçada. Como cantam esses colibris e coleiros que me visitam durante tua distância. Vêm anunciar que você está perto? E justo nessa hora, cuja minha consistência já não é a que os homens conhecem, sou feliz por mais um ou dois milênios. Seu cheiro tem cores, tem a virtude de me preencher por inteiro e sempre neste milisegundo, desnudo de todas as nuances das palavras posso lhe dizer entre atos e batimentos cardíacos o quanto sou. O quanto você faz com eu me reconheça. Guardar essa memória repleta de doce e raízes profundas é o que de melhor eu tenho para te dar. E com esse ardor que acontece sem que eu não saiba como controlar ou manter, celebro sua existência em mim. No mais profundo ânimo de meu esquecimento diurno, enquanto todo mundo dorme e recorda existo porque você acontece em mim. J.M.N.

sábado, 1 de maio de 2010

Onde Estão os Portos I

Eu, lambido pela língua do tempo, incontinente e trêmulo. Eu, com as costas lanhadas pelos espinhos dos minutos que não vieram. Eu, a soma inconteste de todos os temores. Eu, saudoso da primeira eucaristia e de conhecer todos que freqüentavam aquela igrejinha, inclusive o pároco e alguns dos seus pecados. Saudoso desse tempo e da segurança de saber a origem dos seixos que tilintavam sob meus pés. Não sabia o que era serotonina, nem necessitava de uma complexa combinação de fugas para manter-me desacordado e sofrendo. Não havia essa comoção assaltando-me sem aviso, esse medo de desintegrar-me, essa certeza que a qualquer hora deixarei de existir, essa vigília desesperada se estendendo da noite ao amanhecer. Sei da morte e do que nela há de inexorável, mas não precisava ela mostrar-se tão próxima e bradando suas vitórias. Não há necessidade desse exaspero sem remédio que não acha consolo nem em colo de mulher, nem nos interiores dos muros. Preciso é da palavra dita. De renomear tudo ao redor. De sentir aquele olhar terno e negro a me definir e pacificar.WDC