sexta-feira, 7 de maio de 2010

Cartas a ninguém (07.05.2010 – 00:39h)

Caro Zeca,

Mais cedo senti o toque daquela tua mão menor. Os dedos pensos num infinito particular. Toque franco e cheio de compreensão aquele teu. Jamais incompleto. Por isso, caro amigo, é que te escrevo para contar o acontecido. Escrevo-te para elucidar a mim mesmo, pois que desde a ausência que te sustenta, trouxeste uma memória esquecida e partilhaste teu segredo mais distante. Desde já, reconheço a minha dívida.

Estive todo esse tempo a procurar dentro deles, Zeca. Estive esse tempo todo a caminhar em passos duplos ou triplos meus tormentos. Uma bobagem. Um desatino. Esqueci-me de olhar seu sono, de escutar suas expressões de maior medo. Deixei de crescer flamingos no branco triste de suas tardes à janela. Queria dar-lhe as cores que eu imaginava eram belas. Ela queria apenas que eu estivesse. Mas eu não podia. Não estava em lugar nenhum.

Como achava que estava perto, entrementes. Porém quando ouvi a pergunta que me fizeste, estanquei. Sabia que não podia passar daquele momento adiante. Lembrei da vaga força dos passos dele no fim da vida. Tua presença me levou até isso. Vi tudo como de dentro de um disfarce. E percebi que tudo quanto mais buscava não era dela. Não era meu sequer. Era do mundo. Era do entorno. Maravilhas avistadas enquanto eu não via.

Teu filho me conta de tua vida. Pouco a pouco revejo nisso semelhanças e argumentos. Estamos ambos atrás das mesmas coisas que querias Zeca. E estas são mais reais e vivas que fantasias. De sorte que quando o ouvi dizer que partiria, sabia que era melhor para o seu estado, pois ele já não as procurava, as maravilhas. Não havia fome nenhuma naqueles olhos.

De dentro de nós, eu e ela, vivi girândolas, varíolas e densidades. Estive em mares, alegrias e falecimentos. Fui santo, mouro, desastrado. Mas nunca estive certo de quem eu era. E o que eu sou – foi isso me deste – não sou nada. Nem sequer o que ela me omitia. Não sou mais que a terça parte de enganos. A maioria dos fugitivos de uma era. Zeca, por Deus, sou eu apenas. Aquela busca desgraçada cobrou caro.

Era isso que tinha para te contar. Era isso que eu queria que soubesses. Agora não busco nada senão tudo. Não corro riscos senão de morte, que é a mesma coisa que sentir do avesso, sem correios ou telefones. Embutido em si. A minha busca por Ele é a mesma busca por mim. E eu sou esse que te escreve. E sente falta do teu filho e do meu pai e do pai dele. E sente falta de todas as coisas por acontecer.

Não te incomodes com o que não há. Com o que é de menos – foi isso que eu entendi com teu abraço. Estes restos de pessoas não são reais. É assim mesmo descobrir-se. Muito obrigado. Não procures me acompanhar nesse meu tempo, pois que de onde o conto é uma eternidade e justamente por causa disso, soma-se à tua falta em meu presente, como o desfalque que me faz meu outro José. E por ser eternidade, esse meu tempo pode caber dentro dos minutos que levas agora para terminar as linhas que te entrego.

Vai com calma e não voltes nunca. Caso possas, segure-os por lá mais um tempo.

Sinceramente,

J.Mattos

2 comentários:

Anônimo disse...

Para uns podem ser apenas palavras resultantes de algo tão precioso que carregas como uma sina e um tesouro. A mim, agora sim, escalavrou-me por dentro essa tua carta. Li e reli, sob perspectivas várias, mas só depois do falares ao telefone é que percebi o que havia de tão incômodo e incompreensível nesse texto. Não sei te digo obrigado, pois não sei o que se fala àqueles que sabem onde nossas feridas encerram a maior quantidade de dor. WDC

Anônimo disse...

essas cartas! o que são elas? maravilhosos textos.

parabéns!

Lua