sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Vaga viagem

Sobre a música Ramilonga - Vitor Ramil

Espero que a chuva passe, é tudo o que digo. É o único desejo que cultivo aqui dentro, nesses dias. A sensação de frio é passageira, pois logo lembro que o fardo da floresta é maior que o verde que vai diminuindo a olhos vistos. Faz parte dele o calor e a umidade densa de existir-se vivendo num ar gelatinoso que agracia os pulmões com muitas faunas invisíveis, com as lembranças do que deveria ter sido de uma outra era, mas paira no ar deste local. Em meio ao desperdício de afrescos de saudade em minha mente, vou lembrando os caminhos que construí para mim, nesta cidade que já me inspira outra partida. E continuo a lembrar da canção querida que fala sobre tantas coisas precisas e desertas de um outro lugar que eu já conheci. Bem poderia ser o centro do teu corpo, ou o teu cansaço depois de um dia inteiro de trabalho e salões de beleza. Ela fala da inveja de quem nunca foi, por medo de se extinguir ou quem sabe de querer voltar ao primeiro obstáculo. A partida é sempre a beneficiária das derrotas, dos medos e do reconhecimento das mil impossibilidades dos que ficam. O sentimento de estarmos errando em meio a esta displicência com nossos desejos é que ainda incomoda. Os ares que ocupam minha respiração afagam a memória das minhas células e passo a reviver nos mais remotos capilares do corpo, a densidade de tua presença que inaugurou minha carne como um ser integral e disse-me para o que sou, para o que sinto, para o que deveria sentir. Peço para que esse ar modorrento me carregue, pois como na canção lembrada é tudo muito lento e triste, como tangos de guarda-chuvas, como o passo da multidão que insiste em me descobrir além desse meu tempo obrigando-me a entender que tudo tem limite, até mesmo a coisa bruta que me fez estar contigo e declarar-me perdido de amor e fé. Queria apenas um descanso, como essa despedida que não tenho coragem de proferir. E mesmo sem saber para onde vou, digo nunca mais, com a mesma força frágil de quem pensa que pode, sozinho, derrubar a muralha de um inimigo qualquer. J.M.N

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terça-feira, 25 de agosto de 2009

Aspettami

Sobre a música Aspettami - Pink Martini

Era comum dizermos que estávamos errados. Era comum que tudo derivasse em brigas e vozes alteradas. Apesar disso, sob tantos aspectos, aquilo que nos uniu conformava uma profecia. Uma espécie de achado de espera e achaques, de possíveis e impossíveis. Contrários dispostos à convivência e à euforia da entrega, onde cada um, saído de tempos indescritíveis, encontrou matéria de cuidado e sono abundante. Era comum esperarmos um pelo outro e enquanto esperávamos, encontrávamos razões para confessar que estávamos perdidos, à deriva no mar de coisas não ditas, esperando serem vividas à exaustão. E pedíamos para sonharmos a caminho um do outro e às vezes em que nos perdíamos, deixávamos no lugar dos beijos a promessa de voltar com os corações mais feridos e disformes e despejar nas mãos de quem estivesse a esperar – eu ou você – a fortuna de voltar dizendo que era o único caminho possível. Você sente minha falta como eu sinto a sua? Era como começávamos nosso reencontro e a partir daí vinha o pedido de estar mais perto, mais íntimos que antes, mais entregues do que a possibilidade de uma vida. Houve um tempo em que eu me sentia seguro em seus braços e víamos, comumente, estrelas caindo como diamantes desprendidos do manto da noite. E como não houvesse outra possibilidade, voltávamos para casa, nossa casa, quer fosse um abraço, quer fosse uma oca em aldeia distante. Voltávamos e sabíamos que em breve partiríamos novamente, por conta das coisas desafortunadas que dizíamos em meio à felicidade e como uma mitologia ou uma cartografia cantada, dizíamos que o retorno era certo e que nossos corações e corpos estariam mais tristes que nunca, porém aquilo que estava reservado a nós, era apenas nosso, não importava a distância do reencontro. Ainda acredito nisso. J.M.N

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Diana

Diana morreu.
Mas foi assim tão sem sentido.
Disse que seria estrela. E foi ser.
Fui eu quem abriu o bauzinho preto, com seus pertences. Dentro encontrei um vestido, uma viola e as amarguras dos últimos anos anotadas em post-its. Contei mais de cem. Todas registradas, tal como sua obsessão predizia.
Disse-me que evitaria ser reinventada.
Nunca acreditei em Diana.
Tratou de sumir e foi lá ter com os responsáveis pelo seu feitio, perguntar-lhes o que era existir. Ou talvez, como poderia se tornar, digamos, adequada àquelas circunstâncias.
Fez-me amá-la naturalmente e, apesar disso, tramava conquistas e momentos românticos com certa antecipação, talvez por insegurança.
É possível que minha vida seja melhor, já que ela se foi.
Diana parecia me conhecer.
Tinha aquela coisa de saber exatamente que nome dar às minhas expressões. Eu queria conhecê-la tão bem.
Abriu-me os olhos certo dia: Ei, o amor é a melhor mentira de todas!
Nem por acreditar nisso ela surtava. Mas, certamente, tinha seus maus momentos.
Certo dia se calou.
Trancou-se na sacada à beira mar e, tranqüila, decidiu não existir mais. J.M.N

Sala de Espera, Portão 22

Hoje estou presente em meio a despedidas, contemplando minhas fugas repetidas numa espécie de tempo em suspensão, gradativamente mais longo, como um solstício. Os olhos como lagos. Os braços perdidos, à procura de sei lá o quê e todas as certezas desfeitas.
Pensei de repente, salas de espera são lugares nulos, inválidos no espaço-tempo. As vidas indo e vindo. Cá estou eu, envolto por uma multidão de desconhecidos. Parece, porém, que eles me conhecem, tão concentrados que estão em mim.
Não me atrevo a perguntar-lhes o porquê. Temo as respostas e, ademais, não tenho outras perguntas que justifiquem uma conversa.
O chá me acalma, mas essa impressão de ser reconhecido não.
Lembrei de você quando terminei o romance sobre a obra de Tomaso Albinoni e decidi que o Adágio tão discutido é dele mesmo.
Veneza é ancestral em tudo.
Depois dos canais, minha primeira vez em Roma perpetuou um cheiro de história. Cantarolei alegre um conhecido verso que diz a vida só se dá pra quem se deu. Agora eu tenho certeza sobre isso.
Depois deste devaneio, o que resta de fato é a vida nua e crua das chegadas e partidas. Vou deixar no bloco de notas os rabiscos sobre a Cistina e sobre a aparição repentina do amor, num beco obscuro de la cità. Tenho que ir, mas não quero.
A pergunta que vale um milhão: ainda tenho lugar na tua vida?
Fica bem e cuida das nossas coisas. Meus chinelos ficaram atrás da porta, esquente-os de vez em quando.
Meus pés vão sempre se lembrar dos teus. Saudades daquilo que está por vir. Histórias de amor e andamentos lentos, como num Adágio antigo.

J.Mattos
Malpensa, junho de 2005.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

À partida

Ele que já havia esperado demasiadamente pelas reparações dos desastres da convivência ou da quietude indevida daqueles dois, obrigou-se a partir sem saudades, sem adeuses prolongados, como se a única coisa que estivesse à mercê da distância fosse uns poucos dias sob o mesmo teto. Não era só isso, entretanto. Não pôde deixar de lado a estranha sensação de desamparo que se instalava a cada passo para além do portão, avante na calçada da rua estreita. Ainda de cabeça baixa, lutando para não olhar para trás, chorou um choro difuso e comprometido com um passado recente de impossibilidades, de desalento, de desengano. Um choro da cor do céu de janeiro. Quando o avião decolou e ele esteve enfim sozinho, descascou com cuidado aquelas sensações dilacerantes e tentou dormir o caminho todo. Não foi possível. Chegando em seu destino, a primeira coisa que fez foi ligar e encontrou duas vozes destruídas cuspindo palavras frouxas e sem sentido. Disse sem muito pensar que o vôo tinha sido bom e que assim que estivesse instalado, voltaria a ligar. Ninguém disse até logo, ou qualquer outra coisa para além de trivialidades. Ao desligar, caminhou resoluto para fora do aeroporto, arrumando na bagagem de mão um profundo sentimento de ardor, uma espécie de alegria ensimesmada e deslocada do tom verde de suas esperanças. Parou por um instante na calçada da rua em frente cheirando o ar de um outro mundo e pensou que afinal, não tinha mais nada que fazer em relação a eles. Descobriria depois que esse haveria de ser o seu maior engano. J.M.N

O Princípio Esquecido - Convite

Clique Aqui para Ver a Imagem Ampliada

Em um tempo no qual nossos passos importam mais que os limites de nossos corpos, que a velocidade e contundência das transformações sociais e culturais fragiliza ou desintegra os laços de afeto entre as pessoas, alguém está falando de Fraternidade como modelo de atitude política e cívica. Este post é um convite a esse entendimento.

Conferência: A Fraternidade como Categoria Cívica e Política
e Lançamento do Livro: O princípio esquecido (2 vols.)
Antonio Maria Baggio

Partindo das insígnias da Revolução Francesa, “Liberdade, igualdade, fraternidade”, o professor Antonio Maria Baggio argumenta que a fraternidade foi esquecida como princípio político, tendo ficado de fora das construções coletivas dos movimentos políticos da sociedade e da atuação do Estado, figurando como alicerce, quando muito, para ações solidárias e de cunho não político.

Baggio aponta para a retomada, no âmbito das Ciências Políticas em âmbito mundial, do conceito de Fraternidade não apenas como categoria sociológica apreciável, mas como um princípio ativo constante na diversidade das transformações humanas, identificando neste um caminho possível para a implementação dos princípios de liberdade e igualdade, os quais, segundo o autor, foram impedidos de se efetivar ao longo da história.

O trabalho do autor, neste sentido, está compilado nos dois volumes de O Princípio Esquecido, reunido em forma de ensaios e reflexões acerca do tema da fraternidade inclusive no contexto da América Latina e, especialmente, do Brasil, percorrendo o percurso histórico do conceito, bem como suas possibilidades como categoria política.

Vale à pena estar presente!

Antonio Maria Baggio, filósofo, doutor em filosofia, lecionou na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma) e atualmente é professor extraordinário de filosofia política no Instituto Universitário “Sophia”, Itália.

Serviço:
Conferência “A fraternidade como categoria civil e política”
Realização: Pró-Reitoria de Assuntos Internacionais da UFPA
Data: 25/08/2009
Horário: 17h
Local:
Auditório da Faculdade de Ciência Jurídicas, Campus do Guamá

Seguida do Lançamento do Livro “O princípio esquecido
Horário: 19h
Local: Auditório da Faculdade de Ciência Jurídicas, Campus do Guamá

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Perdida

à moda de Adélia Prado

 
              Gravura: Mulata Grande III - Carybé

O que gasto do meu corpo
reponho com gosto de escuro,
um ombro moço a cuidar de mim.
Exceto quando fui santa, fui feliz. 
E ainda tenho dívidas milionárias
com teu braço de força evidente
e ternura rupestre.
Ai tuas riquezas indecifráveis,
elementos arqueológicos de minha esperança
para com os dias sem fim.
O que descanso no abraço de minha filha
é esse calabouço terno
que me incrusta
que me finca num árido terreno,
tratado sem húmus
e calcário demais.
Onde escondo minha renúncia
a encontras,
onde despejo a podridão dos anos
e a poeira deixada
pela colisão de nossas galáxias
é que te libertas
e cantas, abominável,
as cantilenas errantes que me consomem
a quietude das tardes.

J.M.N

Café com letras, sem mentiras

Enquanto o Café enchia de gente e a música perdia espaço para a algaravia dos encontros de fim de tarde, ele olhava para ela e esse hábito adquirido ao longo das horas, derramou-se em sua escrita. Enquanto escrevia sobre nostalgia e novos estágios de amor e eternidade, a presença dela invadia sua vista e como descanso, como um lirismo que evidenciava o desconhecido e a calma, sua imagem foi-lhe ficando entranhada até que não havia nada que ele quisesse tanto lembrar o resto do dia. J.M.N

terça-feira, 18 de agosto de 2009

História de um domingo em casa (ou o futuro precipitado)

Eu cuido das roupas da tulha. E eu do mundo inteiro. Tu cuidas da ordem. E tu dos impasses. Arruma meus livros. Quais destes? Reza comigo. Pedindo a quem? A Santana. Estou escutando. Eu quase dormindo. Uma dor me desiste. Tua calça está suja. Teu chá está sem graça. Sabia que era tempo para pantufas e torcida. Ah as ruas de Istambul. Nunca fomos lá. Estivemos no Cairo ou mais distante? Não lembro daquelas sobras ali. Deixa que eu lavo os pratos. Deixa que eu penduro as camisas. Deixa a janela aberta. Deixa o retrato contando os segredos. Não acorde ela que sono é riqueza. Talvez tenha os teus olhos um dia. Definitivamente não dou para maldades. Já disse que não posso mais. Olha esse som. Escuta tuas mulheres. Enfim, perdi a hora. Mas não o tempo. J.M.N

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Não deixe que as sombras detenham a aurora

Sobre a música Coles Corner - Richard Hawley

Costumávamos entrar no carro e seguir sem destino. Era sempre tarde da noite. Em volta de nós a vida abundante de nossa terra natal, escondendo suas terríveis e belas histórias entre sorrisos e pessoas prontas para conquistar o mundo, mesmo que entre mesas de bar e assaltos à mão armada. Nós dois abraçando o infinito das descobertas diárias e lembrando de coisas que ainda não nos pertenciam. E cantávamos. E ríamos da envergadura dos teus braços abertos sobre minha visão de motorista, prevendo que se morrêssemos ali, estaria tudo bem.

Íamos sempre atrás da madrugada como anjos prestes a desistir da eternidade. Os céus haveriam de entender, não era assim?

Enquanto não ouvíssemos as canções que cumpriam nossas paixões mais escancaradas, não dormíamos e raramente escutávamos aqueles hinos achados em conjunto, apenas uma vez. Queríamos ir atrás das pessoas, nossas mãos estiradas fora do carro, cortando o vento como adagas e protegendo nossa intimidade daqueles mais afoitos, como armas de guerra. E havia sempre os sorrisos e a cumplicidade de escolhermos as músicas imaginadas um pelo outro. Ora aqui, ora em Marte, nos abandonávamos na impressão de que éramos inesgotáveis. Talvez sejamos.

Na última vez que partimos nesses ritual de encontro e comunhão, quando me avisaste que o dia estava amanhecendo, ouvíamos a música que prometi cantar a ti quando entrasses definitivamente em minha vida. Lembro que olhei para o teu rosto feliz e pedi em prece silenciosa para que o clima fosse gentil conosco e que as sombras não detivessem nossa aurora. E naquele momento tive a impressão de que seria atendido. J.M.N

 

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A morte é para os mortos

Sobre uma história contada por meu Avô
e sobre muitas coisas que eu aprendi com ele.

No dia em que morreu, Horácio não chorou. Tinha os olhos mais azuis e limpos que de costume e recordava-se da primeira vez que chegou em Santana e avistou o campo com as flores que ela cultivava. “Essa é a visão da paz”, disse para si. Tinha a estranha impressão de que sua vida continuaria depois do tiro e, por mais que se esforçasse para ficar triste e denunciar que partiria como eles tanto desejaram, pôde apenas alegrar-se com o que tinha sido sua vida: um punhado de dinheiro, muitas voltas ao mundo, os segredos do amor em todas as línguas existentes e, por fim, o único beijo que não conseguiu. Ainda conseguiu abrir o livro na página de sempre, apenas para ler pela última vez a sua linha preferida em toda a infinidade de palavras que consumiu ao longo dos anos. Era um livro ruim, mas a parte em que os personagens principais falavam sobre amor era sublime, diziam no final Ainda vale à pena escrever sobre o amor. Pediu para que escrevessem em sua tumba algo que lembrasse aos que o visitassem, que ele mesmo acreditava nestas palavras. Os traiçoeiros companheiros de armas traíram-no também nisso e gravaram na pedra sem forma uma inscrição em latim que significava: eis aqui, um homem sem importância. E com essas palavras, adicionaram mais peso à sua existência, destacaram ainda mais a sua vida impressionante, pois não perceberam que homens sem importância não precisam de epitáfios para confirmar suas faltas e sendo assim, tiraram suas últimas culpas, antes dele alcançar o além. J.M.N

Depois que ela disse adeus

Depois que ela disse adeus não houve razão nenhuma para enfrentar a chuva e por nove ou mais dias eu fiquei respirando a tempestade que destruía a cidade. O peito cheio de agonia e vontade.

Era como uma pneumonia, uma desgraça pulmonar que ia me acabando enquanto o banco da praça me emprestava seu escombro para que eu existisse por mais um tempo. E já sentia que minha ossatura mudara, que minha compleição física se esvaia numa liquidez desumana que descia de meu corpo e alcançava sem a menor cerimônia os bueiros em redor.

Exatamente do jeito que prevíamos, chegamos ao fim. Sem nenhuma conversa de tentativa, sem justificativas, sem desesperos para estancar o tempo que corria solto em nossas palavras de adeus. Nada.

Depois daquele maldito dia em que eu lhe dei as desculpas para atravessar a rua e me deixar sob a chuva impressionante que caía, nunca mais houve gerâneos nos livros lá de casa. Todas as frases, todos os poemas e os romances, estagnaram suas produções de saudade e apreço em meus olhos e eu fiquei também abandonado das ínfimas felicidades que cabiam nas linhas que ela marcava com um lápis mal apontado.

Sua letra quase infantil espalhada entre as linhas dos meus livros se tornou o pior dos depoimentos, a pior das armadilhas. Tornou-se a escritura de minha lira mais cativa, das minhas lágrimas mais salgadas e contínuas. Seu código escrito a segredar os desejos que um dia ela jurou que dividiria comigo.

Depois que ela disse adeus, comecei a cultivar a impressão de que os móveis dormiam mais cedo, a água turvava no copo recém-lavado e minha coleção de retratos antigos, de repente, passou a contar minha própria história. Eu talvez tenha de dar mais crédito àquela chuva e voltar ao banco que foi nosso, esperando cheio de dor e caridade que a enxurrada leve de vez, a memória silenciosa que ainda a mantém definindo o estado emocional de minha derme. J.M.N.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Entre o teu pedido e o meu sim

Entre o teu pedido e o meu sim em um instante passaram-se imagens de coleções de borboletas amarelas, namoros de porta e vestidos feitos no ciclo da borracha – que sei que gostas e que ficarias linda dentro de um daqueles. Como sei? Ora, naquela manhã vinha insistente no meu juízo uma música do Renato e, quando entrastes na sala, eu só consegui ouvir Chopin. Da suavidade da tua voz saíram histórias de guerras sem armistícios, de lágrimas diárias, mas também da esperança daqueles de quem cuidavas com zelo. Senti vontade de ser um deles.

Passei a marcar no calendário as datas de nossos encontros sazonais. Esperava-os como se espera a primavera. Entre um e outro, ligávamos. Ouvi o teu susto com as veleidades humanas e a preocupação com o tronco mais caro de tua árvore genealógica. Eu tentava te abraçar por telefone, te proteger e cuidar como se cuida daquelas raridades que nos fazem bem só de sabermos que ainda existem.

Visitei teu sonho uma vez. Nele fugíamos à busca de uma seiva muito antiga, do princípio das coisas e dos lilases de flores. Eternizei tudo em fotos que duraram o tempo do teu sono. Amanheci contigo e viajei em seguida, antes que esses encontros, reais ou oníricos, se somassem aos meus vícios. Recolhi-me. Precisava imaginar o dia em que te enlaçaría num abraço sem começo ou fim; em que me levarias aos teus segredos mais inconfessáveis; em que seria testemunha do teu esforço noturno em arrastar a cama pra junto da janela mais próxima da lua cheia de junho, pra assim certificar-se que pelo menos ela, a lua, continua a mesma.

Ela é meu esquecimento

Sobre a música My Oblivion - Tindersticks

Ela era minha música, minha escuta mais profunda de mim. Um eco acelerado daquilo que nunca entendi ou pretendi discernir em minhas mil vozes paralelas. Ela é meu esquecimento. Um lugar muito vasto para onde rumo, quando a realidade cobra caro demais o pedágio dos dias. Ela é minha revolta contida. O beijo mais desesperado. Ela resguarda a liberdade dos meus ditos. Ela enfrentou o mundo para correr ao meu lado, aquela distância improvável da eternidade que vetamos no fim. Entre nossos corpos tudo cabe e tudo se multiplica. Ela me adorna com loucura e sedativos, as drogas etéreas que a desfazem em meus braços de abismo, em nossa história tão curta e infinita. Ela era como a coragem de estar nascendo, rompendo a passagem virgem de outra vida saindo de dentro. Ela era a porta do meu sótão. Meu Juiz contestador. A voz altissonante das minhas piores obviedades. Ela era a carne fresca do banquete, o dia proletário de minha riqueza. Ela era, ela é. Mais que presente. Mais que perfeito. O predisposto arcabouço dos conhecimentos inviáveis, demasiado secretos. Ela era a razão das serenatas e da folia das luzes das estrelas nas noites descobertas entre os lençóis de linho. Ela era a própria hora em que eu existia todo. A fotografia não revelada de um sorriso. Ela é mais minha do que eu sou dela e por isso mesmo, sou eu que lhe pertenço. J.M.N

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O que não foi feito

Colheu aquele sorriso e guardou no parapeito da janela. Lembrou da liberdade na sacada do hotel, meses antes. Só podia dizer que estava feliz. Ria-se de tudo e tinha idéias alvoroçadas para as festas do fim de semana. Uma troca de palavras vagas e olhos cansados no fim do dia. Era isso que ele queria. Poder dizer-lhe para dormir bem, todas as noites - os braços ofertados desde sempre. Presságios que nem se confirmaram. Era isso que ela pensava poder ter. Alguns mal-entendidos, mas nunca a solução de adeus. Quando naquela manhã acordou sozinho, teve a estranha impressão de que os dias se tinham escrito errado. Pegou o papel e ditou-se um bilhete de amor: Espero que tenhas gostado das flores. Aquelas que eu nunca enviei. J.M.N

Se o acaso fosse mais comum

Se fosse fácil eu te contaria a história do jeito que ela foi. Sem segredos. Um dia pensei: vou acordá-la meia noite e mostrar o que eu quero. Nessa altura, tudo cabia num beijo. Era isso. Saías apressada, para consertar as coisas que levavas debaixo do braço. Querias a companhia do teu pai. Eu deixei. Não devia. Eu te levo! Quis dizer, mas não saiu. Naquele dia eu descobri que me deixavas embaraçado. Para a perfeição se completar. Tinha tudo e não tinha nada. Eu nunca saberei o que motivaram os olhares cheios de cumplicidade da funcionária do teu edifício, mas sei que, de longe, ela quis muito me ver chegar outras vezes. Eu quis também. J.M.N

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Show Trama de Tempos

Este é o convite para o Show Trama de Tempos. Recomendo a todos os que gostam de boa música e um excelente ambiente notívago para uma quarta-feira de agosto. Acrescento, sem pudores, que sou fã da Clara... As razões eu deixo para vocês descobrirem.

Convite_-_Trama_de_Tempos

"A música tem entre os seus milhares de encantos aqueles relacionados à memória: a atmosfera da época em que foi composta, a lembrança dos fatos embalados por aquelas notas, de pessoas queridas, de fases da vida. Música é instrumento de deslocamento, no tempo e no espaço.
É possível sentir nostalgia pelo que não se viveu? Sim, talvez justamente por não se ter vivido. Então, cantar e tocar músicas de outros tempos é experimentá-los um pouco e reinventá-los. E cantar e tocar músicas do próprio tempo é vivê-lo mais intensamente, fazer parte, construí-lo.
Fazer música é uma forma de falar o que se quer, o que se sente e, às vezes de mansinho, o que incomoda. A música pode ir além do som, ser modo de vida, revolucionária de estética e valores.
A partir dessas sensações, cruza-se a Trama de Tempos, show que eu e Alessandro Bacchini (guitarra) apresentamos em agosto na Taberna São Jorge, transitando por diversas estações – do afeto e dos sons. O que costura a história, no repertório, é o não-convencional. A seu tempo, as canções foram e vão contra a maré da mesmice.
Vamos passear na floresta escondida. Pra onde eu vou, venha também!"

(Texto de Ana Clara Matos)

Excertos Terapêuticos XI

Quando começamos a escrever os excertos, a idéia era de colocar pedaços de textos que nos diziam algo naquele momento. Algo que atualizasse as sensações vividas e dessem vazão às palavras incrustadas nas impossibilidades do dizer... Hoje, ao voltar à páginas de a Crônica da Casa Assassinada, reencontrei este magnífico exemplar para um excerto terapêutico, o qual passo a registrar no intuito, também, de dar-lhes mais elementos para buscar ler Lúcio Cardoso.

"Inclinei-me e, cego, colei meus lábios àqueles lábios já isentos de qualquer vibração. No princípio, quando eles tocaram a membrana dos seus, ainda senti aquele afago, aquele morno de fruta madura que são o íntimo de todos os beijos; mas à medida que lhe forçava a boca, e com a língua atingia-lhe o paladar, não era mais essa descoberta do húmus alheio o que me transportava, mas um odor rançoso, indefinível, que sobrevinha do seu âmago como um excesso de óleo que fizesse andar as escuras profundezas daquele engenho humano. Dirão aqueles em cujas mãos tombar um dia este caderno: delírio, mocidade. Delírio ou mocidade, que importa, era o meu único encontro com a morte, com seu subterrâneo trabalho de desagregar e confundir a harmonia interna de que se compõe cada ser vivo. A imagem da porta fechada não me abandonava o pensamento. No entanto, naquele momento, não era a fruição da vida o que me interessava, mas a da morte. Agi, e como agi, não sei – era um terror, uma ânsia de me completar em sua agonia. Ela própria não me incitara, não me dissera que era preciso atravessar o muro, possuir, romper e anexar os seres que amamos? Amei. Amei como nunca, sem saber ao certo o que amava – o que possuía. Não era um interior, nem uma mulher, nem coisa alguma identificável – era uma monstruosa absorção a que me entregava, uma queda, um esfacelamento. Sobre minha cabeça sentia girar da própria força do escuro e, como se estivesse no vórtice de uma vertiginosa água, meu ser ameaçava fender no embate contra um poder que me fazia rodar sem descanso, sem no entanto atingir qualquer coisa que em mim permanecia imune ao frenesi dessa espantosa viagem. Até o instante em que ouvi um grito romper o ar – e acordei. Desfalecida em meus braços, ela arquejava. E pelos meus punhos, pelos meus dedos, escorria um líquido que não era sangue e nem pus, mas uma matéria espessa, ardente, que descia até meus cotovelos e exalava insuportável mau cheiro. Abandonei-a, e ela afundou na massa mole de travesseiros. O líquido, vagaroso, ainda escorria pelos meus braços. Morta? Viva? A questão era inútil. Vivo era eu, ante as sobras da minha louca experiência. Vivo era eu, e esta consciência me fez ficar de pé, transido, olhando a coisa sensível que ainda ofegava sobre a cama. De todos os lados, como um rio invisível que fosse crescendo, e esbatesse suas ondas de fúria contra os limites opostos que representávamos, o sentimento do fracasso se interpunha entre nós; passo a passo fui recuando, recuando, até o fundo da parede, como se deixasse espaço para que aquele mar fervesse, e subisse até nossos peitos impotentes, e nos atordoasse com seu cheiro de sal e de sacrifício. Rapidamente o mundo recompunha-se no seu mutismo. Pela primeira vez, então, ergui o punho contra o céu: ah, que Deus, se existisse, levasse a melhor parte, e dela arrancasse seu sopro naquele minuto mesmo, e estabelecesse sua lei de opressão e tirania. Que até nos diluísse em matéria de nojo, e vivos, para maior divertimento seu, exibisse o atestado de nossa podridão e de nossa essência de lágrimas e de fezes – nada mais me importava. Literalmente nada mais me importava. Um vácuo fez-se em mim, tão duro como se fosse de pedra. Senti-me sorvendo o ar, caminhando, existindo, como se a matéria que me constituísse houvesse repentinamente se oxidado. E nunca soubera com tanta certeza como naquele instante que, enquanto existisse, proclamaria de pé que o gênero humano é desgraçado, e que a única coisa que se concede a ele, em qualquer terreno que seja, é a porta fechada. O resto, ai de nós, é quimera, é delírio, é fraqueza. Tudo o que eu representava, como uma ilha cercada pelas encapeladas ondas daquele mar de morte, admitia que a raça era desgraçada, condenada para todo o sempre a uma clamorosa e opressiva solidão. A ponte não existe, jamais existiu: quem nos responde é um Juiz de fala oposta à nossa. E sendo assim, desgraçada também a potência que nos inventou, pois inventou também ao mesmo tempo a ânsia inútil, o furor do escravo, e a perpétua vigília por trás desse cárcere de que só escapamos pelo esforço da demência, do mistério ou da confusão."

Lúcio Cardoso - A Crônica da Casa Assassinada (pp. 403 a 404)

Crônica da Casa Assassinada

cronica+da+casa+assassinada

Quando comecei a ler Crônica da Casa Assassinada, em novembro de 2007, não imaginava que tinha em minhas mãos um dos livros que me mudaria, que causaria uma angústia caudalosa e, por vezes, uma certa raiva por ter decidido ler o texto de Lúcio Cardoso, em meio a tantos acontecimentos por si angustiantes e furiosos, que tiveram lugar em minha vida, no mesmo período.

Mesmo admoestado por Fausto Wolf, que escreve na orelha do livro: Para início de conversa, você, leitor, está de parabéns [...] porque nun fim de século medíocre [...] se prepara para ler uma obra prima - eu não tinha dimensão da profundidade e força do texto deste magnífico autor de Minas Gerais, nem tampouco que levaria cerca de um ano para terminar de ler o livro em meio a idas e vindas, releituras, anotações, desamparo e muito material fundante para minhas pobres linhas.

Pode parecer um chiste ou simples retórica de comentarista. Entretanto, no caso de Crônica, qualquer exagero é paliativo frente ao poder das palavras ali contidas e das tramas alinhavadas ora com lirismo, ora com ódio e amor incomensuráveis, ora com a mais clara clave de delírio, paixão e talento literário, características que colocam o livro no mesmo patamar de muitos clássicos da literatura mundial como Os Irmãos Karamasov (de Fiódor Dostoiévski), Fausto (de J.W.Goethe) e Cem Anos de Solidão (de Gabriel Garcia Marques).

Ainda hoje volto àquelas páginas perplexo, afoito. E quando me lembro de uma passagem mais tocante, não raro tenho a sensação de que acabo de me lembrar de uma impossibilidade humana, de um sonho ou de uma memória genética há muito esquecida ou incorporada como informação de espécie. Sem exceção, volto às páginas emocionado, mobilizado pelas frases e sons que na Chácara dos Menezes (família dos personagens principais) reverberam como um pedido de socorro, como uma história que macula ou edifica vidas conhecidas e semeia muitas noites mal-dormidas com surtos de amor, dor ou alegria desenfreadas.

Crônica da Casa Assassinada é um livro para se ler apaixonado. Em sobressaltos. Pois mesmo que esta não seja uma característica prórpia do leitor que o vier a abrir, certamente será o estado em que ele se encontrará ao fim daquelas páginas. Não se fica imune ao texto de Lúcio. Não se pode ficar. É como água em pedra. Inexoravelmente o destino de redenção se cumprirá e neste momento é que tantas possibilidades psíquicas se abrem, tantos olhares e vozes e sombras se locupletam e o leitor pode experimentar ser qualquer um dos personagens de Lúcio.

Mas cuidado!

Como disse Manuel Bandeira, os personagens do romance (Nina, Valdo, Timóteo - ah! o soberbo Timóteo, Ana, o Padre Justino) tendem a continuar vivendo em nossa imaginação, mesmo depois de findada a leitura.

Pena que meu pai não lê mais romances, gostaria imensamente de saber-lhe as impressões sobre este monumento literário, pois além de atualíssimo, o romance de Lúcio Cardoso tem este tom transgeracional, que impregna a marcha da leitura e confere uma vagarosidade quase avaliativa e nada domesticável, atualizando as perguntas secretas que pais e filhos, irmãos e irmãs, enfim, que familiares se fazem a si mesmos e uns aos outros (em certos casos) ao longo dos anos de convivência. É, ademais, uma elegia ao vulto transformador das paixões humanas, das quase não confirmadas armadilhas que a vida em grupo se nos coloca e, sobretudo, do não dito fulminante que muitas vezes se agiganta no seio dos amores familiares.

Originalmente publicado em 1959, Crônica da Casa Assassinada é seguramente um dos alicerces do romance brasileiro moderno. Um dicionário de consulta e reparo para qualquer aprendiz de escritor. Uma fonte inesgotável de furor, achaques, frêmitos e regozijos, em cujas páginas se acha muito, mas muito mais do que ficção. Pode-se nelas achar a virtude, o devaneio, a paixão, o ódio, o remorso, a vaidade, a agonia, a temperança, enfim, muitos adjetivos, sensações e substâncias de nossa existência mais humana. J.M.N

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Noah and the Whale

FDOS

O nome Noé e a Baleia lhe soa familiar? Você acha que poderia ser um bom nome para uma banda? Bem, se você acha que sim, acredite, já tem uma banda com esse nome e o melhor: uma excelente banda... Se você já formou um preconceito contra o nome, pode deixar de ler aqui mesmo... Até a próxima!

Como se não bastasse o esplêndido disco de estréia - Peaceful, the world lays me down, o Noah and the Whale lança seu segundo álbum para o deleite daqueles que querem boa música e cansaram de achar que nunca mais aparecerá algo tão sofisticadinho e "chato de tão bom" que nem o Belle & Sebastian, o Camera Obscura ou Math and Phisics Club (aliás, precisamos falar desses últimos algum dia).

The First Days of Spring é realmente um achado (neste caso do Wagner, que me autorizou a escrever a respeito porque tá com preguiça de voltar a escrever no blog, né Wagner?). Anyway, o disco é uma coleção de pequenas canções brilhantes, para lembrar William Blake ao falar das coisas da primavera. Além do disco a banda inglesa lança também um vídeo a ataca de coletivo de direção, roteiro etc.

 

 

 

 

 

 

 

Em The first days... a banda abusa criativamente dos violinos e cellos e cria um ambiente de sala de audição de conservatórios, fornecendo àqueles mais enrustidos e taciturnos, um clima privilegiado para sofrer por amor e escrever poemas que provavelmente nunca virão a público. Serve também para quem chegou absurdamente cansado em casa, abriu uma boa garrafa de vinho e sentou na sala para ver as contas e conversar com o cônjuge.

Em seu primeiro álbum, os caras descolaram uma música que se tornou fundo musical de muitas de minhas viagens, as de estrada, pelo ar e as de cunho sentimental mesmo - the shape of my heart, a qual tive o privilégio de apresentar em uma festa recente da Se Rasgum, no café com arte. Dentre as muitas boas estrofes de suas músicas, está esta:

Oh when I look to the shape of my heart,
it's seperated only by scars,
that cut in and cut out, or leave me without,
all a heart that functions at all.

No segundo disco o destaque que proponho é: Love of an Orchestra, que entre dois instrumentais e contando com um coral, completa uma micro Carmina Burana atualizada, com toques de rock e fanfarra. Simplesmente genial.

Como aqui no Palavras, nossa intenção é apenas provocar o dileto leitor, deixamos a dica neste pé para não ficarmos insistindo na venda, a qual, acreditamos, concretizar-se-á na primeira audição. Com vocês... Noah and The Whale. J.M.N

Descanso perdido

Depois daquele estado de pausa, de enlevo, veio uma agitação fora do comum. Como um presságio císmico de que a Terra ganhará outra configuração de repente, porque toda sua estrutura está abalada no centro. E nada acomoda esta ânsia aventureira, que precede, pois já estive à beira deste abismo, uma mudança, qualquer uma. Espero que para melhor. J.M.N

sábado, 8 de agosto de 2009

Biografia

Encontro-me à espera da idade para deixar os segredos de lado, como se fossem os anos que perdoassem as traições e soterrassem os mistérios das euforias romanceadas de tempos atrás.
Jamais soube o que me gritavam os homens do porto. Passei por eles ainda muito novo e indolente.
Um ano antes de morrer, deixei escrito em testamento: todo meu ouro, minhas palavras e as provisões de ano novo são para ti. Muda. Faz o que eu não fiz.
Se te deixei faltar algo, perdoe-me.
Escolhi o caminho adiante, sem curvas ou reticências.
Não era natural?
Hoje eu sei cada vez menos e ainda me recupero da primeira morte que tive. Posso apenas te anunciar umas poucas verdades:
Meu brado é amargo e vazio. E sorrateiramente desisti da construção da casa.
Dei a ela os tesouros que nunca te dei.
Nossos filhos catam ventos sem ter nada para comer ou vestir. São livres, então.
Meu sofrimento está tingido de azul e a única coisa que me resta é uma vida toda para esquecer o que aconteceu. J.M.N

Confissão

Fugi com teu ouro e tuas contas gregas. Roubei tua prosa, teus vasos e o alheamento que te impedia de conhecer o mundo.
Deixo-te para trás e para sempre.
Nossas cobertas já estavam frias de qualquer modo.
Se ainda aceitares meus conselhos, te despede das incertezas.
A verdade é que a vida se resume na dureza do meio-dia suado que nunca conheceste. O mau cheiro do quotidiano agora vai te perseguir.
Te amei até aquele dia no restaurante, depois de lá, nunca mais.
Rostos amigos se confundem, não esqueça.
Nada no abandono incomoda mais do que lembrar.
De noite ainda sinto tua respiração alcançando minhas lembranças mais remotas, meus sonhos mais íntimos e aquecendo aquele frio constitutivo que me persegue desde sempre. Rezo para que isso não cesse nunca, apesar da distância e do mau jeito.
Além da tristeza, te deixo um amor considerável.
As explicações?
Não! Essas eu trouxe também. J.M.N

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Excertos Terapêuticos X

Anuncio a descoberta de que este texto não é de Drummond, como me disseram um dia. Já vai tempo que queria contar isso...

Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta. De sol quando acorda. De flor quando ri. Ao lado delas, a gente se sente no balanço de uma rede que dança gostoso numa tarde grande, sem relógio e sem agenda. Ao lado delas, a gente se sente comendo pipoca na praça [...]. O tempo é outro. E a vida fica com a cara que ela tem de verdade, mas que a gente desaprende a ver.

Tem gente que tem cheiro de colo de Deus. De banho de mar quando a água é quente e o céu é azul. Ao lado delas, a gente sabe que os anjos existem e que alguns são invisíveis. Ao lado delas, a gente se sente chegando em casa e trocando o salto pelo chinelo. Sonhando a maior tolice do mundo com o gozo de quem não liga pra isso. Ao lado delas, pode ser abril, mas parece manhã de Natal do tempo em que a gente acordava e encontrava o presente do Papai Noel. [...]

[...] Ao lado delas, a gente percebe que a sensualidade é um perfume que vem de dentro e que a atração que realmente nos move não passa só pelo corpo. Corre em outras veias. Pulsa em outro lugar. Ao lado delas, a gente lembra que no instante em que rimos Deus está dançando conosco de rostinho colado. E a gente ri grande que nem menino arteiro.

Almas Perfumadas - Ana Jácomo

Crônica de um dia interminável

"O que ela fica gritando
eu não entendo,
sei que é pura esperança
"

Adélia Prado - Módulo de Verão

Não se engane, a nossa morte está ligada aos impossíveis que criamos. Está demasiado atada às propriedades celestes de nossas bocas declaradamente doentes em se chamar e escolher. De tarde, durante o meu passeio, te encontrei sentada naquela mesa que nunca freqüentamos e antes de ter saudades, tive ciúmes, porque te perdias no manuseio daquele aparelhinho que eu tanto odiava. Depois disso, tive tristeza. De te ver tão derramada. Tão longe desta existência. Tão impossível aos meus braços e abandonada das questões que surgiam sempre antes de nosso sono em comum – estás confortável, tem buracos no edredon? Fingindo estar com a mesma beleza que me obrigou a tantos desesperos. Mantendo a pífia mania de estampar-se, de maquiar tuas tragédias com uma base cor da pele e óculos escuros. Olhei, voltei a passar em frente à tua imagem tão quieta e lembrei do que me disseste, não surto mais! E tive tanta vontade de te surrar, de gritar essas mentiras em decibéis de concertos de rock. Cobrando de ti as promessas feitas naquela noite tão deslumbrante. Ansiando que viesses pedir desculpas por ter me abandonado numa loucura impiedosa de imprecisos e contas não pagas. Culpando-te por meu retorno, por minha improbidade. E liguei para os amigos, e perturbei novamente as pessoas que estão distantes a perguntar porque tem de ser assim, porque tenho de sentir (o peito múltiplo) em potências nunca tentadas. E como incorporar esta fragilidade de demência própria, às tuas faltas e esquisitices? Sinto, às vezes, que te poupei do pior. Te desocupei da violência que geravas nos confins do meu ser, mas que por sorte ou acaso nunca veio à tona. Busco nesses momentos me perdoar por tudo o que disse e fiz, mas esta rotina de me auscultar é demais, é aviltante e, ademais, sem sentido. E retornei a casa para lavar meu corpo da tua impressão e refazer a calma de minha pele ao som daquilo que sempre te ofertava quando deitávamos, sossego. Uma solidão pronta para ser usada e retornada ao baú de incertezas desses dias que me vivem, pois eu já não controlo nada. E pouco tempo depois, quando julgava que o dia teria um fim mais tranqüilo, eis que surges na avenida, retornando ao caminho que juravas não tomar, cujas passagens juravas não recordar. Mas lá estavas. Encontrada na minha visão. Bem à frente da minha miragem de sorte e pertencimento. Escapando de minhas palavras e de meu grito, que acertou dizer teu nome, mas perdeu a chance de te pedir para ficar e mais uma vez, apenas mais uma, permitir uma pouca felicidade ao meu corpo e ao meu dia. J.M.N.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Para as miragens

Em outubro de 2006, escrevi a carta que segue a um amigo. Um grande amigo. Que me acaba de salvar sem pestanejar, dando-me razões para acreditar que não estamos inteiramente sós em nossas aventuras sobre esta Terra. Que acaba de passar por aqui e deixar um riso sem pilhéria ou covardia. Um amigo que está há mais de dez anos me ensinando os limites de ser e estar. Quando escrevi esta carta a ele, respondia a um seu encontro que me foi relatado e que lhe trouxe muitas sensações ruins, talvez nunca antes experimentadas. Hoje, enquanto maturo uma espera solicitada e eu mesmo vasculho a lembrança em nome de novas crenças e conhecimentos, tive vontade de dizer novamente as palavras que seguem e com a permissão desta pessoa que faz de minha vida uma grande seara de reencontros e descobertas, dedico-lhe (dedico-nos?) novamente as palavras ditas há algum tempo, acreditando que para ambos, as coisas ainda vão nesses termos.


Engraçado isso de sentirmos falta. Essa necessidade repentina de regresso. As mais inusitadas pessoas, lugares ou acontecimentos, de repente, fazem-nos a maior falta do mundo. Entendo-te perfeitamente. De alguma forma, nossos contrários e desafetos nos motivam. Tornam mais lúcidos os nossos pensamentos e quereres. Desconfio que também tenham planos de nunca nos esquecerem, os travessos. Estão sempre aparecendo nos lugares onde estamos. Onde menos esperamos que estejam. Afoitos em aparecer e nos dar notícias sobre o passado. Requentar por segundos nossas raivinhas ancestrais e depois dar novo tempero às nossas revistas do passado. Novas alegrias e risos dantes impensáveis, surgem diante deles e suas histórias absurdas. São nossos pares, sem dúvida. São parte da substância que nos define. Que nos coloca a todos no mesmo baú de novidades antigas para os redescobrimentos. Nossas baratas perenes. Mastigáveis como a de Clarice. Transmutáveis como a de Kafka. Ridículas como as do cinema moderno. Também existem os histéricos a abonar nossas iras com comportamentos hilários, em todos os sentidos. Malucas e suas estupidezes teóricas. Bernardos, Cantídios, Zéfiros, Anas, Paulos, Orfeus, suas idiosincrasias, e tantos outros nomes e apelidos. Alguns já sem rosto. E lá nesse mesmo quadro de ilusões e saudade estamos nós. Os mesmos nomes em pessoas mutantes. As mesmas alcunhas a circunscrever as massas complexas, o tempo e as palavras que fomos naquele passado agradável em que estivemos tão cheios de teorias e amores pessoais, que definimos como menores ou estranhas essas pessoas, esses nomes e suas existências magníficas. Quem sabe eles tenham feito o que fomos incapazes de fazer - ser. Quem sabe sua consistência seja pura e a nossa, apenas uma ficção barata. Beije e abrace os nomes e os donos que fizeram parte de nossa história em comum. Diga-lhes novos amores e ria sonoramente aos seus versículos e saliências. Confirme-me, depois, que eles ainda estão lá. Atemporais. Benignos. Fiéis às nossas memórias construídas. Sendo, simplesmente, parte de nós. Como nunca soubemos, saberemos ou, talvez, tenhamos-nos permitido acreditar. J.M.N

domingo, 2 de agosto de 2009

A reinvenção do mundo (ou "o dia que eu espero acontecer")

Caminhavas em minha direção. Resoluta, irrestrita. Sem a calma peculiar de tua pouca estridência. Vinhas em ritmo próprio, armada com roupas de primavera, destronando as violetas e as acácias com teus passos perfumados e olhos de cores muitas. Chegaste em mim antes de tudo, deflorando os sentidos como as feras que cacei um dia. Eu não queria te abater. Ao contrário. Tive medo de tua certeza, relutei em erguer minha lança. De onde vinhas não sabia. E teu paradeiro desconhecido me deu a impressão de que vinhas de todos os lugares e que contavas as histórias do mundo inteiro com tua presença irradiada. E senti a existência das eras partindo da tua respiração assustadora como o ressoar de uma locomotiva a toda velocidade que já vem, que já vem, já vem para nos levar. E finalmente em mim chegaste. Ou melhor: me atingiste. E no impacto te colocaste dentro, mais fundo que minha bilis. Mais necessária que proteínas. Nossos genes se confundiram e por um momento eu era tu e assim nos pertencíamos. E senti o suor em meu rosto e o coração batendo como em mil vidas. Era simplesmente o reencontro acontecendo. Único, excludente de outras importâncias. Uma nova resistência às coisas que nos derrotaram. Ai as primeiras guerras! Uma energia que talvez fosse impossível naqueles primeiros dias, porque sem nos sabermos avesso e direito da mesma utopia, costumávamos chamar de par, aquilo de deveria residir no mesmo ponto do espaço. A reunião indivisível de diferenças compelmentares. A matéria restituída do mais inflamado e desesperado beijo de amor. Que assim seja. J.M.N

Inscrições para as pedras (do livro dos artefatos do nada)

Nunca houve península sem istmo:
abandono cultivado, prisão requerida,
atamento na forma de estar.

Ninguém ousa existir no além:
há saudade abrindo desertos,
a terra tragando os avessos, pessoas
requerendo nossa derme.

Nada há que não caiba no sono:
um dia vermelho, a dor de nascer sozinho,
tua vida sem mim, a minha sem ti.

Pouco há que me revista o tempo:
teu retrato ferido, tuas mãos a escolher-me,
poentes cantados a dois.

Ainda resiste a coragem de amar:
um ermo longo e composto,
verdade sem tempo ou lugar, pessoas
em forma de outrem. J.M.N

Cansaço

Oswaldo Goeldi 
Gravura: Oswaldo Goeldi

O que tenho são os músculos derrotados. Agora me resta esperar. Ativar a economia de sentidos que nunca funcionou em meu corpo ou letras. Resta o silêncio dos segredos violentos e das ausências esculpidas no abundante mármore da entrega. O que sinto são as forças retornadas, mas paralíticas. Os seqüestros da verdade. O fingimento de paladar satisfeito pelos sumos divididos. A ilha esquecida das liberdades contempladas e nunca feitas em si finalmente se apresenta. E estás lá, única inquilina. O que se agiganta em teu redor são as incertezas, o que não consegues enchergar com teus próprios olhos. Vejo o crescer da manhã com a mesma esperança vaga de que um dia aparecerás correndo com os olhos transbordados de sonhos, a dizer me toma, me leva, vamos por ai até se acabarem os dias. De noite espero que alguma força astrofísica destelhe meu quarto e desnude a noite com seus cálices minúsculos de luz. Estive o tempo todo na linha de frente. NInguém para reder-me a posição. E o tempo, as chuvas e os tiros a esmo, finalmente encontraram fraquezas, pequenas fraturas em minha imbricada estrutura. Um desgaste tranquilo que não avisou que chegava, e se instalou. E quando escuto cada vez menos a tua voz me amanhecendo, vou ficando com a certeza de que estava certo sobre as coisas que sempre te disse. J.M.N

Minimalismo

A poltrona era um reino. A tarde um cismo de coisas sem gosto e, mesmo assim, bastante sérias. O Natal é uma época triste, por princípio. Já não julgava saber tudo. Apenas o necessário para não sofrer. E até nisso se enganou. Trocando em miúdos, podemos dizer adeus, esses telefonemas ensaiados me dão nos nervos. Amor, a pior coisa do mundo é esperar pelo fim. Portanto, adeus, antes que decidas de ausentar. J.M.N

Inquestionável (?)

A verdade é que não voltei. Tornei-me um viajante, inscrito no espaço e no tempo das distâncias percorridas. Alimentado por elas, as distâncias, é que pude definir melhor o que me representava o ficar. Uma espécie de exercício de inexistência ou coisa semelhante. Circunstâncias de perdas, memórias e outras invenções fadadas ao esquecimento. De noite é que dói mais. Especialmente naquelas em que sabia que poderias estar ao meu lado e não estás. Não sei se ainda lembras de mim. Por cá, nem teu cheiro nem a tua imagem desapareceram. Queria estar contigo. Nas noites duras a escuridão me salva, pois traz consigo tua imagem incandescida. Não quero luz outra senão essa. A tua. Meus olhos ainda são capazes de criar truques. Termino acreditando que ainda me olhas fortuitamente. Dói lembrar. Não parece que foi ontem. Talvez eu esteja contente pois que as fotos de agora são digitais. Não envelhecem como casinhas abandonadas numa eternidade de papel e tinta. Minhas eternidades portáteis estão por todos os lados. Especialmente aquelas que te trazem infinita. Quero que essa distância se encurte. Quero a dormência dos teus braços que apenas suponho. Não ouso pensar em aindas. Meus dias são frutas colhidas. Ficar é perder-se em demasia. Voltar é melhor que seja logo, pois o amor, como os sinos longínquos, acerca-se de almas passageiras. Longe ou perto, as orações não se escutam, nem se resultam os pedidos de perdão. O amor, como o tivemos quando juntos, agora se entristece como se fosse apenas um costume que pela vida inteira não se teve. É isso que resta? É disso que são feitos os dias de alegrias sozinhas? J.M.N