quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Porque não chove mais sobre mim?

Eu te chamo do meio da terra
Foste enterrada
Meio metro da entrada de meu quintal
Queria essa proximidade de visita
Ia beber água e te jogava um copo
Teu corpo me recebia manhã e noite
Estavas lá
A capturar-me Senhora deste e do outro mundo
Como dançar sob a Lua com olhos térreos
Como os teus?
Não pude mais
Durante a última tempestade movi teu corpo
Refiz a terra de teu sono eterno muito além
Perto das terras do Senhor Coronel
Perto das roseiras para o grená da tua dor
Hoje eu bebo a água toda de meu copo
Uso e reuso o solo de minha casa
Hoje eu descanso ensolarado e descanso
A chuva cai sobre os campos
Esta visão é como um quadro bem pintado
Posso ver e sentir, não posso (e não quero)
Jamais voltar a tocar.

J.M.N.

Vencido?

Amo o estado de coisas de agora mesmo. Esse presente suntuoso e enaltecido em quando me encontro. E não aceito que me digam O amor morre entre duas pessoas. Esse amor que não pretende rever o mundo, mas antes e apenas, ao corpo que naufraga em suas horas. Amor de apreciar-se sem delírios enquanto quem se ama sai do banho com a pele lambida de água e cuidados. Esse amor não é o de um Cruzado, tampouco a paixão estropiada pelo encaixe, pelo enquadramento do outro. Amor de afazeres e dedicação.

Fui vencido na entrada. Quando vi meu relógio marcando as horas, meus quinze anos, tive um coice. Era de antever: a promessa que me fiz sobre ser de alguém até que esse alguém me fosse tudo não sobreviveu ao primeiro e grande amor. Mesmo alertado, tendo visto os finalmentes daquela crença natimorta eu avancei. Passo a passo no terreno que antes de eu nascer desertificava. Tinha de ser um amor escancarado. Nascido obeso e cativante. Como uma grande porção de carne ao animal esfomeado.

Assim foi que sai pelas portas do fundo. Envergonhado. Pendente de dizer tantas coisas que me encurtaram, davam-me cancro e enjoos poderosos. Sai culpado por mais uma vez não conseguir me encaixar. Como fosse essa condição uma monstruosidade.

Quero menos ainda hoje um amor universal e bem podado. Atestado por todos e vinculado à perfeição dos estilos desse povo. Quero unicamente a disposição para tornar meu corpo amado, um elemento de bem estar, território de fazer abundante e encharcado.

Talvez eu volte a conversar com o Deus da minha infância, do colégio das irmãs que primeiro tentaram me demover da ideia de ser eu. Voltarei a ver o que não tem rosto habitar-me o espelho e sem vergonha pedirei a ele que realize meus desejos. Meus desejos do corpo. A única fronteira que me conclui livremente. Abordado por prismas da luz alheia, mas apenas. Hei de ver aquele Deus perdido, jogando cartas, despreocupado, num dia qualquer desse ano ainda. J.M.N.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Sodade

Quem me mostra os caminhos longes agora? Estou apenas eu, meu corpo branco, meu reumatismo a toda. Em que Cristo hei de calar essa dor de antigamente, de colonial e franzino homem burguês sem liberdade, sem seus poderes de ancestrais? Meus negros do outro lado me conservam em suas cartas, quiçá memórias. E me escrevem dizendo saudades que me delineiam e confortam. Aqueles meus negros tão padecidos, meus amigos de toda hora. Minha imagem indo e vindo entre seus dedos de apagar solidões de há séculos. Tanta força bruta que eles passaram. E à deriva. Hoje despertei com meu peito ardendo. Quero ser o branco deles. Que arrumem quartos de hóspede novamente. Eu me sentindo em senzala de dívida para com eles. Tão bem tratado que eu era. Sua música única a colorir meus dias menos prestimosos. Ah aquele continente que não conheço, me esmiúça e nem sabe. Eles que se chegaram a mim perguntando se tinha lugar para eles em minha mesa – vejam isso! Sodade de quem mostra' bo ess caminho longe. De quem ao se despedir não diz adeus, diz estamos juntos. Estou-lhes junto. Estamos todos, pouco sabemos. J.M.N.

Trilha sonora…

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Nós dois

Toda luz a emprestamos ao beijo
Nascemos naquele único lábio de ainda
Feixes tecendo história – além do além
É que palavra não se consome na boca
Passa de corpo em corpo como na gente
Quando escrevemos nossos nomes
Em nossas árvores de espécie
Para que ao sumirem os registros, os documentos
Ficassem os feixes carregados de sentidos
O que demos um ao outro no beijo
Na espuma delicada dos gostos unidos
Foi súplica por retornos e mais coisas
Foi água de imensidão florida

J.M.N.

Que digo ao tempo?

Que faço com as horas e os ponteiros que as desenham? Devo chutá-los, torcer seu círculo e começar a contar desde o começo?

Farei como tantos: seguirei. Roubando sua foice a cada oportunidade. Que jamais é para onde se mudou a última de minhas consciências e farei de tudo para ultrapassar todas as cercas.

Digo-lhe – ao tempo – que faço moinhos, que invento telescópios. Digo-lhe, talvez, que cairei da esfera, mas não ainda. Não sem praticar a loucura um pouco mais, não sem esticar as cordas vocais para cerzir um amor que nasce.

Digo-lhe que há poemas demais em meu sono, que a terça parte de minha carcaça ainda responde involuntariamente ao belo de tudo em redor.

Direi ao tempo que se mude. Que vá ocupar o infinito. Até que minha ótica obscureça e que minhas letras não digam nada mais senão silêncio. J.M.N.

Cartas a ninguém (23.02.2012 – 23:04 p.m.)

Querida,

Escrevo para dizer adeus.

Esse é meu mundo, não há porque mentir, esconder. Chega de deitar poeira embaixo do carpete da sala. Ninguém mais passa por ali, ademais. Tanto assim como nos quartos, na varanda. A casa que nunca existiu.

Fui eu a construir as paredes, afinal. Serei eu a destruí-las. Última vez que me refiro ao passado com tanta substância. Ao menos a este passado – nós no passado. Se estou aqui é porque sou mais animal que vegetal e minhas ampolas de ser ainda não acabaram.

E sinto assim esse sentimento de alívio, de admiração por esses anos que já vivi. Ando, ao contrário do que pensavas, realmente pensando mais em mim. Ando a desejar coisas mais ou menos destinadas aos artistas muito populares. Hei de tê-las.

Nem que seja por uma cena improvisada ao pé da cadeia que me porá em liberdade. Ou dentro do tanque com o qual avançarei pelas ruas da cidade. Um espetáculo inusitado. A originalidade de um feito expressivo nunca antes tentado.

E hei de contar como fomos os dois. Nossa história secreta, pois aos olhos de todos fomos perfeitos e mesmo agora que apodrecemos, ainda há aquele choro velado de quem andou muito por perto, pedindo para nos ver pela última vez.

Isso é uma estupidez. Não estamos mais. Não concebemos.

O certo é minha Querida, que na parte maior dessa conversa porvir eu não faço questão que apareças. Não como mais do que uma personagem ciente de tudo, mas impotente. Que descobre pouco a pouco que não suporta o amor que tem. Não se anuncia ao mundo, porque em seu mundo já tudo foi conquistado e feito.

Não importa. Cumprirei o papel de narrador e protagonista. À moda de como sempre fui, mas tinha vergonha, pois achava que devia ser menor e mais humilde. Às favas com as pequenezes, o mundo inteiro me espera. O mundo de terra e água corrente, onde foi feita tua última morada, em cujo epitáfio se encontra as palavras: …até o tempo em que puder me sentir amada.

Sinceramente,

J.Mattos

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Três coisas

Minhas três coisas são as tuas, mas te incomodam
Teu espelho não funciona, que posso fazer?
Andar cantando pelo pasto da vida, vivendo desobrigado
Não é isso? Teu secreto desejo?
Meu coração que tem esse lado demais
Ele eleito, a estrada não é longa nunca
Vai viver correndo pelo beijo que espera, pelo belo do abraço
Que mais eu posso fazer para que me deixes?
Para que não destruas, na calada da noite o meu intento?
Já basta. Não é por mim que buscas proteção
Mas por ver crescido em mim tudo o que te escapou pela vida
Vem junto ou senta
A beira da estrada é sempre uma opção
Quando voltar das imensas distâncias que percorrer
Te conto. Encho teu sonho com o que não consegues carregar
Ainda que me firas a faca pela audácia
Ainda que me deserdes teus livros e discos
Teu nome até
Rezarei o que não sei para que sossegues
Amor, alforria, palavras que bem podem ser as tuas
É isso que me evoca espíritos e lanças
Ao bem da vida que se me alcançou – eu canto

J.M.N.

Trilha sonora…

Solar noturno

ao nº 939 da Av. Alcindo Cacela, em Belém do Pará.
Por tudo que me foi, por ter sido meu verdadeiro teto,
a casa de toda minha lembrança, criadouro dos séculos
passados em que faço questão de viver, dentro dos quais
descobri meus verdadeiros segredos.

Sob todas as coisas esse dito é triste. Debaixo do andor esquecido, onde santos esperam vozes e a passadeira deixa a roupa mofar é que nasce. Embaixo da mesa da sala de jantar, onde se escondiam carrinhos, bonecos e o segredo de não querer crescer jamais é que viceja. É sob essa madeira da mesa que jaz também o que esse dito não irá alegrar.

Anda que eles já vêm te pegar. Era isso, ele tinha cumprido bem o afastamento compulsório. Todos divertidos e sua alegria, terminado. Adeus aos jogos de memória, às respostas cheias de amor e dádiva da avó. Universo inteiro em um único fim de semana. Deveriam ser mil dias.

O paço se fecha e a memória é apenas mais uma dor de cabeça depois do trabalho. O antes do sono uma turbulência. Ele entra no carro. Com roupas de baixo e uma calça bem frouxa para o caso de algum guarda noturno questionar seus pudores. Chega à avenida. Olha bem para aquela casa. Ninguém acena. Ninguém mais varre a garagem de madrugada. Uma luz que cospe de vez em quando um feixe. Ele se promete tê-la de volta, mas é algo tão distante.

A cidade e suas coisas acontecem indiferentes e ele se cansa. Vê pelo retrovisor um antigo vizinho. A barba branca do homem recolhe seu choro. Aonde ir se nenhum canto daqui dá mais abrigo? Como existir sem drama, se não há mis um refúgio sequer?

De tanto perguntar o mesmo, despede-se. Da avenida. Da casa. Da zona líquida que se lhe tinha toda saudade. Volta pra casa, assoberbado de ideias e escreve seu único vício: falar de tudo o que ninguém mais que ouvir. Seja pela dor, seja pela distância dos sentidos. J.M.N.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Para ser inteiro

Todos tentaram
Abriram seus compêndios e me incluíram em seus eixos
Por tudo eram capazes de achar anormalidades em minha fala
E eu calava segredos, o grão dentro do oco
Era de seus usos avulsos, locupletavam-se em mim
Mas não diziam que era isso, tinham covardias demais os bagres
E foi quando surgiu não sei por que essa destreza
O filho estranho que comia silêncios e poemava tudo que doía
Agora que lembro a coisa me surge como barro
Se desfazendo, ora servindo para moldar um homem perfeito
O que não sou, nem nunca hei de padecer
É só achaque e reclamação de que não sou mais como antes
Que o tempo muda, não importa, não importam os anos
Eu sou o mesmo que quis ser quando morri de espera-los
A porta dos berros, querendo socorro que nunca vinha
E de tanto orfanato eu crispei medo daquela gente
Mas é só isso que de pra sempre eu não sou feito
E sim! Quando eu chorava doendo todo por todo o dentro
Era dela que diziam minhas lágrimas
Aquela por quem diziam eu estar perdido – e estava
Pois foi nesta distração de vê-la mexer no cabelo com os dedos
De acomodar seus sonhos presos atrás da orelha com uma trança
Foi nesse molde que fui feito, felizmente
Pronto para não servir dentro de casa e ainda bem
Mas ser inteiro até derramar minha última saliva
E percorrer o mundo esfomeado de uma gula,
Que se não for celeste, Deus que me proteja – ou não
Mais um cachorro chutado na morte e sorrindo
Banido; do que se diz à boca pequena que é medonho
Por dentro eu pareço de tanto tudo, que nada sei
Para mim, amor é mesmo que aragem perfeita
O mesmo que ser de tal modo e todo dela que não pode
Ser todo fome e prazer.

J.M.N.

Trilha sonora…

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Olfato, traços e os sentidos mais uma vez

Esse cheiro que come doce o tanto passado. Com lábios mornos e cânticos e gêneros. Esse cheiro vigoroso que se emite quando amado. Esse cheiro de terra semeada. Dentro dessa solubilidade que distrai as dores, mora teu cheiro. Esse frescor de dias e noites sem espera, antes presença. Sem gaiolas ou vergonhas, e tais miudezas. Esse elemento que assegura sem forma ou peso minha alegria e que elege para sua reforma meus dissabores. Esse coquetel de intimidade e denúncia, de amanhecer e horizontes que é o que sinto todas as vezes que estás presente – é teu cheiro. Que de tudo quanto existe capta a bolha recolhe a química e de tanta mistura é indescritível, inseparável. Me toma os retículos, os canais nervosos, me entorta a fala, me traz poemas. Sou de novo aquele um sentado diante do palco, a ação correndo. De mãos indóceis esperando que acabe tua aparição para te ter. Sinto-te antes dos teus passos corridos, antes muito antes de todos te dizerem. Sou mais uma vez aquele menino que abria panelas para inventar comidas e que sugava das rosas o botão grená, com língua e olfato. E me sinto assim porque me cheiras à profunda alma que antes já foi minha e que agora resolveu deixar de lado o mau cheiro daquela saudade. J.M.N.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Confins

Não me venceste, eu cresci
Não autorizo mais ultimares a fala
Nem falo mais sobre o que me sobra
e tanto faz se choras, descortinada a mentira
Não me empurras garganta adentro
palavras de armário mofadas
Teus enlatados e pecados moídos
e tanto faz se a pergunta que queres
não a tenho refeito, pois sem resposta
Não há pior prato que ser tão convicta
De que tão pouco sei sobre mim
Ainda alastrada, investida de continente
Mas percebo, doravante negares
Não me tiraste de ti, nem saíste de ti
Não és, não foste
a parte alguma, senão onde a culpa
É a dona de todas as distâncias

J.M.N.

Po(e)magem #6

Sobre foto de Bob Menezes

Pilharam minha memória
Assaltaram a cidade
Nenhum orelhão por perto
- o socorro tarda
Escondidos em tamanha evidência,
                                        os larápios
Certos de que não haverá pena
Resta-me saber onde eles moram
E fazer-lhes uma visita
Quem sabe assim minha cidade volte
Eu tenha de novo um passado

Mesmo que por trás de novas grades

J.M.N.

Romances sujos II

“De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa! [...]”

A ideia – Augusto dos Anjos (do Livro EU, 1912)

Ela alçava voos. A boca dura, os dentes tesos. Fundida ao meu espelho mais confuso; presa do meu melhor exercício de captura.
O fundo de seu olho aumentava-se em si. Era dona de uma eternidade química ultrapotente. Encantadora.
Abria as pernas, oferecida.
Obrigava-me a pegar no tranco, combalido, mesmo que estivesse, pelo teto que caia sobre a gente.
E me arranhava e visitava meus músculos com a pertinácia de um cirurgião muito destro, uma perita.
Eu me vingava adiando o gozo.
Não porque quisesse, mas por impossibilidade física.
Minha vendeta era mentira, era meu corpo funcionando além de mim, afinal.
Verificava sua latência por todos os orifícios.
Acomodava minha violência em movimentos de fuga dentro dela. Fora de mim.
Era possível salivar de tão demente.
E de tão ferino que eu brotava a exaustão se ia com medo.
Não havia tempo ou desejo por pausas, comidinhas que fossem.
Era, em suma, a besta ou fosse lá que deformidade me consumindo.
Não era dentro de mim que estava aquela experiência.
Não em meu nada absoluto, ao menos; meu Deus falira em se deixar encontrar naquela fleuma. Talvez por pena, talvez por castigo.
Pois quando perguntava se era possível, tinha silêncio.
E quando explodia em ferocidade e elementos, seguia-se sempre o questionamento: o que vai ser de mim? J.M.N.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Nau ao mar, o mal amar

Para tudo que se foi e, hoje, anos depois,
finalmente terminou em mim.

Jactante passado de lugares. Entre felicidade e captura tratava-me o núcleo de ser por “pássaro”. Pássaro azul que sempre volta, dizia. Domesticado nas suas próprias destrezas de fuga. E de quanto serviu minha promessa já que nunca mudaste o rumo? Já que nunca deixaste teu plano retilíneo e desdenhoso do outro?

Canto agora essa velha canção navegante. Aprendida nas terras de Herculano, Pessoa, de tantos, afinal, meus antecessores na arte de nunca partir, mas prosear com a língua o ultraje de se sentirem ridículos em seus afazeres. Meus pares, por assim dizer. Em cujas gaiolas, seus artefatos somaram-se ao tempo.

Antevejo a terra do barril fincado no mastro. Estou muito além. És mais um passado bonito a rastrear minhas palavras, nada mais. E agora que ao Cabo já contornei, não espero por nada. Nenhuma lágrima tua ou dos teus. Todos eles, paisagens estáticas desde as águas que me esperam. Soube que morreram dia desses. Que descansem em paz. E mais, dentro de ti.

Quando morri por saber que não irias me encontrar, um anjo daqueles especiais para os nascimentos sublimes da humanidade me percorreu. E curou minhas chagas. Meu desespero de estar só. Sempre a voltar por nada. Muito menos do que meu dentro poderia. E disse ele, cuidadoso e fiel ao Pai: deixa o vento, ele saberá para onde levar tua caravela.

Me guio nisso. Com um pouco mais de espírito, creio, logo logo acenarei a desconhecidos em nova terra. Se me convidarem a ficar, direi que sim. Mas sem deixar de avisar-lhes que o mar e seus extremos, são casas de além dos anjos e guardam menos exílios do que se imagina. J.M.N.

Desimportante

Esse dia chegou. Dia de não ser nada, não ter dor. Esse dia inteiro e portentoso de esquecimento, suavidade, essas coisas ganhas com a idade e também, com uma boa dose de sofrimento. Esse dia chegou. O dia de não ser importante, de sonhar que foi noutra vida o amor consumido e consumidor de todas as coisas: a razão, a memória, a alteridade. Esse dia é o dia de hoje. Astuto e célere como todos os dias de um trabalhador moderno. Acordar, alimentar-se de coisas geladas, andar com sono pelas glebas do nada e ver as pessoas já indo suadas nos primeiros raios de sol, ganhar a vida. Morrer e nascer nesse dia são trunfos dos acusados, dos predestinados a qualquer coisa das esquinas – os que se rasgam e ferem de tanto encostar ao destino. Coisa estranha ganhar esse tipo de autonomia. Essa cumplicidade celeste de saber que o destino é pura invenção. Mas não dói menos. Esse dia chegou na hora mais apropriada. Quando os ideais estão mais para conforto e prazer, que honra ou claque. Esse dia de ser desimportante para quem já se cativou e deteve. Infinitos dias de misericórdia. Mas cansei de sentir pena desta lembrança pequena e pouco afeita às forças da natureza. Da minha natureza. E se agora eu posso falar não sendo mais importante dentro de um sonho, talvez me queira dizer que o fim foi aquele mesmo. Não antes de o amor se acabar nele mesmo. Esse dia em que desperto e cuspo meus melodramas janela além, me nasce um poema. E começa como uma ode respeitosíssima e termina nas sujeiras de Sade. Esse dia de hoje é o primeiro do paraíso de se ter amado do avesso e estar vivo para contar como foi. Sem nenhuma outra pretensão, senão chamar os maus feitos de literatura barata. J.M.N.

Trilha sonora (a capela)…