sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Pra quando a dona chegar

Sou teu de um tanto
que quando corto as unhas
faço como quem afia a lâmina
que revelará os teus confins.

Cuido dos pelos e dos cheiros.
Premedito o esquecimento dos cotovelos
só pra produzir a tua implicância,
pra que digas que tenho que me cuidar mais
e ofereça os teus préstimos.

Não te parece lindo
que todos necessitem de alguém
para se ter a si?

Por isso sou teu esse tanto.
E tomo banho como quem lava a casa
pra chegada da dona
E corto o cabelo como quem capina um quintal,
recanto de estar alheio ao tempo
E guardo lágrimas num potinho
que te envio por um conhecido
junto com um recado:

"Aqui quando chove
faz um frio maroto
que só aquele abraço de noite inteira
é capaz de extinguir"

E despacho o embrulho
imaginando que tingirá de verde
o teu olho alagado de saudade.
WDC

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Perguntas de Ontem

O carnaval passou, minha máscara caiu. Não há folia em meus salões e depois que a noite cai fica um silêncio que me assusta. As ruas não têm passistas. Alamedas não têm namorados. O som das coisas é apenas o cotidiano tomando corpo novamente – um bater de copos, afiar de facas, um sem fim de saudações sem sentido. A manhã depois de tudo acontece sem perdão. O sol é fustigante. Doem os olhos, as juntas, as paredes do coração e da memória. E apenas uma canção anima tudo. Fina, dissidente. A canção da esperança que sopra seus versos: foi melhor assim, vamos saudar o amanhã...

Pergunta de Ontem 1: o que farás agora que a tua máscara caiu?

Pergunta de Ontem 2: o que sopra tua canção da esperança?

Cartas a Ninguém (23.01.2013–19:47h)

Querida,

Há muito não te escrevo. Nenhum motivo à mão para te apresentar. Entretanto, não posso dizer que foi somente um silêncio. Existe um motivo, certamente. Mesmo que ainda me seja oculto, desavisado ou, simplesmente, reservado ao mundo discreto dos meus esquecimentos.

Dia desses fui à tua casa. Aquela sem portas e janelas. O abismo do entregar-se a qualquer preço, mesmo que seja a carne toda investida num único beijo. Fui para meditar sobre a frequência cada vez menor de minha angústia em relação à felicidade.

Como sempre, andando nos avessos.

E te encontrei por lá toda limpa, cores diferentes nos cabelos, nos olhos, no costume das roupas. Estavas na moda. Na velha vitrine que oferta e, cujo estilo, espera ainda alguém que desabotoe do engasgo finalmente. Estavas simples.

Fixei uns minutos tua presença. Não me viste. Não fiz questão de me mostrar. No fim dos minutos tudo passara. A saliva secou na boca. O vento extra da respiração exauriu. Mudou o ressonar de minha pele à tua presença. Eu estava descansado. Eu estava completamente.

Nesta hora tive a certeza de que em mim, o poeta nasceu primeiro que o homem. E o que mais o poeta encerra senão o mundo dentro de si. De maneira que minhas cicatrizes são as mesmas que separam os continentes e, no entanto, cabem em mim os bilhões de esfomeados que nos acercam. Os mesmo todos infinitos que esperam para ser o que eu já fui.

Soprei-te um beijo convincente. Passaste a mão na nuca, quase se declarando ao arrepio. De repente alguém chamou meu nome e eu voltei de onde estava enquanto te via existir tão distante. Voltei do mundo íntimo que me procria. Cheio de sal e textos e Orixás.

Sou aquele que protegido de mim mesmo, ainda comete infinitos em nome do que levo dentro. Uma inteireza por não saber nada sobre o futuro. Esta certeza de que meu passado não reclama mais o retorno dos meus passos.

Sinceramente,

J.Mattos

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Quem escreve os romances?

Ontem assisti minha terceira versão de “Os Miseráveis”, incrível saga sobre as condições de vida e relacionamento do povo francês com a justiça e outras instâncias estatais entre a batalha de Waterloo e os motins populares da Paris de 1832. É, para mim, além do mais, uma história sobre amor e revolução, esperança e sonhos maravilhosamente escrita pelo francês Vitor Hugo no século XIX. Sobre o filme-musical de Tom Hooper, diretor que já venceu o Oscar com o “Discurso do Rei”, tenho apenas uma coisa a declarar, e o farei com a mesma simplicidade entusiasta com a qual, imagino, o editor de Vitor Hugo tenha recebido os manuscritos originais: brilhante!

Emocionado pelos efeitos visuais e intenso apelo emocional que a história sempre me suscitou, passei toda a sessão em misto de enlevo e falta transido por um pensamento fixo, uma busca silenciosa por lembrança que fosse acerca de talentos contemporâneos similares aos de Vitor Hugo, Prosper Merrimée, Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Juan Rulfo e tantos outros grandes escribas. Quem escreve os romances de hoje? Quem são os sagazes observadores de nossa sociedade, que emprestam talento e tempo para delinear nossas lutas e vitórias, nossas contradições e dissensos?

Talvez coubesse mesmo perguntar: quem se importa com isso nos dias de hoje? Tudo à mão, a reflexão entocada nas gavetas, as ousadias política e social sedimentadas por discursos sub-reptícios e estéreis, a imagética bombardeada pela TV e pela Internet, disparando preconceitos e compreensões totalitárias e perigosas sobre tantos assuntos importantes, permitindo a proliferação virulenta de expressões inconsequentes, de opiniões, de gestos. E, por outro lado, tantos assuntos emergentes sendo tratados com velhas fórmulas intelectivas, escumalhos de racionalidades cristalizadas e amiúde perdidas entre os momentos da história. No caso do Brasil, a não tão longínqua ditadura e a ainda não bastante amadurecida redemocratização.

O chavão “temos que repensar os paradigmas”, talvez requeira algo mais radical – o repensar da própria concepção de paradigmas. Não estaríamos chafurdando no caos de modelos defectíveis e ultrapassados? Pior, há modelos seguros a empregar?

Os personagens de Os Miseráveis encarnam, em meu ver, estamentos sociais que necessitam nossa permanente vigilância e revisão: Fantine, vítima do abandono e da injustiça – atacada por ser mãe solteira e obrigada a dispor de sua dignidade às margens da cidade, por leitos alugados, o corpo invadido; Jean Valjean, aprisionado por roubar um pão para saciar a fome de um sobrinho e marcado com um número que o descaracteriza como humano e o transforma em objeto do estado.

Mesmo tornado cidadão exemplar, Jean não se desgarra do passado, moldando-se pela culpa de ter sido substituído em juízo por outro homem e relutante em aceitar seus bons feitos como pago da dívida sagrada que mantinha com seu Deus. O duríssimo inspetor Javert, cuja insígnia policial e o passado militar o fazem executar as leis de maneira inflexível e impiedosa. Esta é a razão pela qual, ao ver-se conflitado pela busca de redenção de Jean Valjean e o seu ato de libertá-lo em vez de mata-lo na barricada por estar espionando os rebeldes, não suporta o conflito interno e tira a própria vida. Atira-se no rio, não sem antes questionar como seria possível viver com o peso de um condenado aos seus olhos, ter sido piedoso quando ele mesmo não conseguira ser. Este não é um conflito presente? Não está sulcado na textura social dos dias de hoje?

Sem perdão para si, o personagem permite que a culpa seja mais forte do que o perdão e atualiza a perspectiva de Hanna Arendt sobre o auto perdão como uma potentíssima via de acesso para um melhor convívio com a diversidade social. Assim como o auto perdão, o reconhecimento de um ato de amor transforma o olhar exclusivamente revolucionário do jovem Marius, em um sentimento de cuidado ainda mais profundo em relação à sua amada Cosette, filha adotiva de Jean Valjean, o rebento pelo qual Fantine lutara em busca de sustento no início da trama. Perto da morte, Jean Valjean é declarado quite em sua dívida com a vida, tanto pelo reconhecimento de Marius, quanto pela confissão de seu passado à Cosette.

Nesse emaranhado de sentimentos e símbolos, o breque da revolução tira a vida de jovens idealistas e corajosos, relegando-os ao abandono da camada à qual, precisamente, destinava-se sua luta e soerguia-se sua voz contra a tirania, a exclusão, a falta de direitos e quitais. Entrementes, a mesma revolução mobiliza outros tantos perecidos na tutela de um estado opulento e sectário, cuja abandalha atiça as brasas da pobreza para servir-se do conforto dessa fogueira de perdidos. Quem são Os Miseráveis afinal?

Ao sair do cinema, uma imagem ainda me arrancaria uma última lágrima. Uma senhora muito idosa sendo amparada por duas outras senhoras levantava de sua poltrona e declarava baixinho: que maravilha, que maravilha. Musicado, filmado, encenado com cores e luxo nas óperas de Londres e Paris, a história de Os Miseráveis é mesmo uma maravilha. Ler o romance, escutar as belas músicas criadas para potenciar os diálogos e incrementar a dramaturgia da trama é um excelente exercício de aprofundamento no espírito humano para qualquer pessoa em qualquer idade. Desde as que tiveram a oportunidade de ser educadas com romances, até aquelas que esperam ver resolvidas as tramas romanescas em uma imagem, nas letras da última legenda.

Quem escreve os romances de hoje? Minha pergunta, enfim, fica aqui sem resposta. Apesar disso, ao terminar este texto, me dou conta de que o mais importante é que o romance ainda existe. Pode ter o nome de maravilha, maravilha, pode ter o nome do amigo que me acompanhou ou da pessoa amada que segurou minha mão enquanto eu chorava no escuro. Basta-nos olhar ao redor, reconhece-lo, ter vontade de questionar e registrar pequenos gestos, grandes experiências. Quem sabe assim, o escritor do maior romance sobre nosso presente tão fecundo e ao mesmo tempo tão terrível, pode ser você. J.M.N.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Contra o trágico

Dói minha mão pelo não feito
Meu peito aberto dói igual
Arpoados nos leitos, nos fins, na desgraça
Os cardumes de amor
Nadam em fuga, tão longe de nós

O mundo dói em mim
Quando a vida de alguém termina
Dói semelhante quando nasce
Ao riso grotesco dói minha língua
Há sabores demais neste desamparo

E cuido menos quanto mais dói
Meu ser finíssimo vai desaparecendo
Dói o espelho ao perder sua função
Sofre do avesso o verso que escrevo
Dói afinada e entrementes cuida.

Prescrita contra o demais, a minha solidão.

J.M.N.