quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Mais um escrito

Sabe, o que mais me incomoda é que eu sei. Sei que de intenso e tonto foi-se resvalar num sulco. Sei que os versos eram teus. Cada qual instalado em seu próprio canto de sala. Tudo parou. Tínhamos saído para comprar alguma coisa e visitar pessoas que amávamos em conjunto, mas o tempo se irritou, tornou-se nulo. E quanto mais o tempo se desdobra em esquinas mesmas, retesadas de saudade – assumo que não sei mais lembrar de nós, ou adormecer em outros fatos que não os de tua impaciência. Pergunto se tens coragem para tornar possível um castelo. As roupas estão bem guardadas do esquecimento. Dormem comigo e ainda mentem para os meus sentidos o teu cheiro. Fiz o desenho que pediste. Nossas iniciais entrelaçando-se, mais uma tatuagem. Fiquei de escolher o lugar certo, talvez em tuas pernas, talvez abaixo de tuas ancas. Fiquei de cuidar de tuas dores musculares, mas quando pude, tinhas tantas perguntas e tristezas que desisti. Minha bagagem viaja sem as compras de sobrevivência instituídas por ti e, sinceramente, não vejo razão para voltar e me encontrar sozinho. Parece agora, que me esqueço nas cidades por onde passo, nas novas ruas que conheço e portos e pórticos e aeroportos tornaram-se os mausoléus de meus pequenos pedaços. No fino de minha escuta, o ruído intenso de tuas últimas palavras de amanhecer – me deixa aqui apenas mais um pouco. É como recobrar-me. É como um pedido, ainda. J.M.N

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Sobre falésias e estrelas cadentes

"we'll shine like stars in the summer night/
we'll shine like stars in the winter light/
one heart, one hope, one love"

U2 - with or without (verso extra on tour, 1987)

Adiantou-se no dia da despedida. Todas as letras do teu adeus conformaram apenas a minoria de tudo o que deveríamos ter dito. Minhas mentiras, mais um terço ou dois e a falta de planos para o natal e o fim de ano, definitivamente, ficam com o restante do percentual.

- amor, a nódoa não sai, é para jogar fora?

- minha vida ou tuas miçangas, mimo?

Não houve resposta.

Ela, certamente, tinha ficado irritada pelas miçangas. E o mimo, arrematou a desgraça. Um apelido não combinado.

Do alto da torre o caminho para o centro parece menor e em qual altura deixávamos nossos orgulhos e dávamos as mãos, não sei. Parece que o tempo habitou demais nossas portas. Não desejo o mal dela. Um pouco de arrependimento para as suas porções de vodka, nada mais. Quem sabe uma culpa ou duas pela manhã, quando os pés não encontram iguais.

Era terminantemente proibido fugir. Aglutinar proteínas alheias. O cérebro tem mistérios que minha mão indecente desencanta. E Jorge Palma me quietando o espírito com versos purinhos que me instruem e coexistem: meu olhar tem razões que o coração não freqüenta. A derradeira expressão de nossos senões.

Lá de fora, o frio meio que dispersa as presenças e a solidão reina solta longe dos baques dos saltos. Os risos vermelhos e de ironia terçã, invadem a monotonia do encontro e tudo degenera em açoites e presentinhos sem sentido. E teve o episódio em que ela me comparou. Disse com todas as letras que eu era igual a ele. Não fosse feito de vermífugos e semiótica, tinha partido para a ignorância. Fechei-me, pura e simplesmente.

Hoje quando abro a janela e vejo o azul oceânico movimentar-se feito um animal indômito sinto que o cumprimento do destino haverá de ser mais adiante. Parado feito as falésias da costa sul. Pobres esculturas do tempo. E diante de mim a sombra de presença dela. Um ser inteiro com peso, identidade e conta bancária a abordar-me os caminhos sem dó nem piedade. Cumpre dizer que espero ainda.

À guisa de pedidos, discorro sobre literatura e versos de Bilac e Pessoa. Nunca fui santo e quase não sonho mais (acordado! diga-se). As estrelas cadentes não servem de nada, quando o pedido não escapa do centro do pulsar coronariano, em meio a detritos, saudade e muitas porções de nostalgia. Elementos recém guardados. Tinha vontade de a convidar para contar meus cabelos brancos e desenhar em suas costas, os mapas de reinos perdidos. Como nós dois, diante de tanto sentir. J.M.N

domingo, 25 de outubro de 2009

Notas de rodapé #3

Até que saias da caverna, tudo pode parar ou morrer. Vem, as sombras são apenas ilusões. O que importa é que tens coisas a dizer, assim como a escutar. O frio que sentes ao ler estas linhas é apenas a certeza de que não estás impune. A luz do dia te espera, na felicidade pequena das desculpas de amor. J.M.N

Para os poemas secretos

O antigo poeta de nada serve agora. Nem os versos de lista forma e sonoridade aliciante me podem desgovernar. A troça do tempo é a que mais me causa nojo. Pois quando parece acontecida, revigora e pesa no íntimo da pena, a forma esculpida para se falar de ti, para criar-te. Quando morrer, quero um funeral de pescador. Cabelos ao vento, as garras amarradas em cima do peito dormente, esperando a novidade da aurora para sempre. E na pensa de cadáver, buscarei o cheiro das tuas palavras emprestadas. Essas que agora, em carta, me remetes para dizer coisa qualquer. E certamente pensarei no tempo que tivemos, nos planos que dividimos, na proteção edificante de pouqíssimas noites de cuidado e festa. E lá, nas marés que me esperarão para o passeio infinito, talvez possa compreender a razão de tuas evadidas entregas, de tuas culpas colossais. Rezo para que até o minuto celeste, eu tenha feito suficientes viagens aos segredos de minha concepção, para que meu sono definitivo, esteja repleto dos sabores dos teus sorrisos e não de uma constelação de estrelas extintas, cujos brilhos sustentam-se no espaço, mesmo depois do fim de suas vidas. J.M.N

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A verdade dos entrenós (ou "na hora da arrebentação")

Para o Marcelo Mirisola e o Dalton Trevisan.
Para os meus amigos Wagner Caldeira e
Marcelo Damaso.

Ah sim! esqueci que a conta é tua. Morte e vida adiantadas, lembra? Não esquece de perder a cabeça, de lutar contra o que és. Não esquece, sobretudo, de descolar aqueles tênis ortopédicos que sempre quiseste. O caminho é longo até as certezas. O mar desbota, isso é um fato. E meu olho não cabe nas tuas promessas. As tuas luvas? Não as devolverei. Existe o macio das tuas mãos dentro delas. Do íntimo dos beijos é que nasce o visgo irremediável da espera. A oligarquia dos sentidos amplos, mordaça das coisas mais extensas de nós. Quando tinha doze anos, meu pai me deu as chaves de casa. Nunca mais tive sossego, pois quando as chaves são entregues, as portas passam a ser responsabilidade nossa. Não era o tempo. Ainda penso em pão rasgado e mudas de feijão apodrecendo nas tampinhas de maioneggs que a minha vó ofertou com muito desprendimento. Um carinho de doação para as mortes anunciadas. É sempre assim. Ai tomei as pílulas de uma vez e minha visão virou um livro manuseado pelas crianças no liceu - páginas ao vento e uma história automática que só encerra com a palavra: fim. De minha parte, houve sexo e maratonas de cansaço e a pergunta emblemática do último domingo: vais mesmo querer casar comigo? Era, de fato, um estúpido. E Ana Maria Braga rolando de manhã cedo. A TV derretendo os cérebros por ai. Quando ela perceber que é simplesmente ridículo falar com um papagaio de esponja, vai dar merda. Bohoslavsky era um cara preocupado com a vocação dos outros e dizia, abre aspas, assim como na culpa persecutória, o sentimento que predomina é o ressentimento, na culpa depressiva o sentimento que predomina é a trizteza, fecha aspas. Esta mesma tristeza de descobrir enfado num monte de anos dedicados, de arrumar a casa para não chegar ninguém. Eu tenho vocação para mundos secretos e cangaceiro e culpas displicentes porque não fundantes, ou, fundantes, porque implicadas - na história dos outros, na imagem do espelho, sei lá em qual litografia de Alois Senefelder. Tô dizendo que o carinho na entrega das tampinhas de maioneggs é um tumúltuo para nossas impressões infantis. Dai fiquei assim: meio cego para as obviedades da vida, acreditando que poupança é metáfora para abandono parental e mais, morrer de amor dói mais é em mim mesmo. Um último lembrete, uma frase roubada: O insuportável só existe uma vez, baby. J.M.N

Degenerar-se

Para Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu,
Fagundes Varela e Álvares de Azevedo. E mais
todos os românticos irremediáveis feito eu.

Quem vai cuidar de ti e te dar insumos para tua irremediável destreza em entregas apaixonadas? O instante final? A morte das coisas brancas e sem gosto do teu quarto? Tuas visitas ao salão de beleza? Quem entrará nos reinos perdidos e fará injunções tenebrosas contra o establishment, criando revoluções e derrubando sistemas brutais? Rotas impróprias nestes mares impossíveis. E agora, aquele tempo que você queria não parece mais tão abusivo, não é assim? Sinto muito, liberdade não é um preço razoável. Além disso, a minha já estava empenhada em meus suicídios, meus esteróides e opióides injetáveis, minhas quintas-feiras gordas de desjejuns e trapaças, calcadas nas imprudências encontradas nos meus livros preferidos. Que se dane tua religião, tuas crenças, tua arrumação da escrivaninha. Só serviram para ímpetos de autonomia infundados. Não me interessa que contes tudo ao teu pai, que endivides ainda mais a tua mãe com teus resumos de ópera. Nunca trocaste ideais por realidade nem postaste aqueles cupons de desconto para as prestações da TV. Nunca estiveste aqui. Tinhas umas idiotices vergonhosamente parecidas com as minhas o que te botava numa situação ainda mais complicada, pois na hora em que precisasse amputar um braço, logicamente seria sempre um dos teus e quando estes acabassem e teus abraços fossem movimentos horrendos de esforço inútil e justificativas de abandono, talvez eu te oferecesse o calor dos meus afagos e te diria ao pé do ouvido que eras inteiramente minha, radicalmente dependente de mim. Tuas lágrimas e meus sorrisos, uma fortuna. Um gracejo de teatro e romance barato, mas serviam sim. Serviam para preencher meus sentidos, descascar minhas náuseas de estar tão só e fazer sombras cada vez menores sem a tua espera por mim. Fui secando. Degenerando em momentos de riqueza lírica e sentimentos áureos. E a cada amanhecer parecia menos comigo mesmo e cada vez mais com o que sempre sonhaste ter. E este preço, eu jamais pagaria. J.M.N

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Talvez teus braços me segurem

Sobre a música Valentine, Richard Hawley

Segure minhas idéias com teus braços e cante as canções que sempre me fizeram dormir. Descobri um vídeo em que celebrava teu sono. Não são necessários dias especiais para reconhecer o dialeto que traduzia nossa exclusiva entrega. O que sobra de mim e meus versos, entrego a ti. Apenas para manter a marcha das tuas realizações, assiste ao espetáculo dos fogos do dia santo e pede no silêncio dos braços que te servem agora: onde quer que me encontre, possa sempre lembrar daquele dia. O maior dos pertencimentos. Não se repete. No trânsito espero te encontrar fazendo manobras de estacionamento, parando em frente ao restaurante que freqüentas e sempre que canto tristezas no mar de céus anoitecidos, peço que me protejas das horas de solidão, quando o morno da saudade acerca minhas cicatrizes de batalha e o melhor dos vinhos envelhecidos não destrona minha vigília ou aplaca a rudeza de meus músculos que ainda te esperam. Tenho mais alguns cabelos brancos, cultivo as enfermidades que inventaste e receio que meu único medo desta noite seja de que não precises nunca mais de mim. J.M.N

Para ler escutando e depois ler aqui...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Derramamento

Em todo rosto uma espera, em toda espera a madrugada. E nela a linha tênue e morna das coisas recém descobertas. Dentro do olho, filigranas e dentro delas as relíquias, de sorte e fome, miséria e cria – sabe-se lá o que uma lágrima pode fazer pelo corpo da gente. Sei ao menos de minhas idas aos teus portões entreabertos, espaço-tempo desiludido com os afetos. Antes do espelho, reluz uma imagem que não é a minha e minha Esfinge ignora o que sei. Em toda a porta, a fechadura. E dentro dela o mar de vultos a fazer a corte, dos amores imprecisos e inerentes aos segredos do castelo. Antes do tempo, a vida exulta. Afrouxa o verbo. Executa promessas desmedidas – nunca entendi como palavras cumprem mais destinos do que amores. J.M.N

O resto das lembranças de ontem

"Parai todos os urros e afagos.
Deteis os invasores e seus carrascos,
que antes de cessar a luz do sol de setembro,
voltará da casa-morte, aquela que a tudo
redime. E seja feita a sua vontade."

Os mares de Catênia - Primeira História

Tudo começou com um abraço e a cortesia pouco comum, mais que um pagamento pelos serviços prestados. Havia o cinza da tarde em comunhão com as horas de um trabalho problemático. Sua entrada foi um sopro de novidade, estréia das elucidativas perguntas sobre o querer. Ademais, vontade. Ela, esplêndida. Averiguava-se a cada segundo. Suas roupas. Sua maquiagem. Ele cedeu. Era Outubro, muito perto do fim das coisas mais constantes, as quais lhe asseguravam uma vida quase feliz. Dali em diante, haveria de definir com outras orações o afago edificante daqueles encontros cada vez mais sentidos e esperados. Uma euforia que se achegou como se toda a fauna extinta houvesse tapeado as moções humanas e retornado aos campos esquecidos, num sopro de vida avassalador. Daquele ponto em diante, ambos haveriam de redefinir as certezas eunucas e infringir toda a sorte de pacifismos para estarem-se descobrindo surdamente nos entreatos espetaculares da alegria inaugurada no primeiro encontro. Foi como um ataque de nervos, algo que impossibilita os escapes. Enquanto o mundo se descortinava nos segredos das madrugadas vividas agora pelo próximo olhar, era como se a história já estivesse escrita e preparasse sua audiência final. Pleito demandado ao início. Uma certeza de que ambos estariam mais seguros em pólos opostos. Garantidos pela blindagem da distância forçada, quando se despediram naquele dia de maio. Enquanto um coagulava de raiva e desamparo, o outro se desdobrava em culpas impensáveis, desejando em cantigas infantis, que os céus o fizessem sobreviver a mais aquela imprudência de seus ímpetos. J.M.N

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Depois do crime

O último riso ficou represado. Indistinto no passadiço iluminado de todos os seus outros atos finais. O tiro que lhe extinguiu não veio do inimigo. Veio do cano de quem lutou ao lado, vida-a-vida na entrega da batalha. Até no fim conseguiu dar sentido e graça à sua estatura. Parecia maior e mais decente que os demais. Não resvalou. Pediu para que ela se lembrasse das orquídeas e foi assim que arrumou sua partida. Silêncio e flores. Não sem razão todos choraram demoradamente e o assassino sentiu que ele próprio morrera em vida, uma dor de vencido, apesar do sucesso. Morte e orquídeas – outra forma de dizer.
Não! Ela jamais o esqueceria. J.M.N

Se soubesses de onde vim...

Inspirado na música Crank, Catherine Wheel

…talvez não empenhasse tanto louvor ou considerações em me esquecer. Se acaso tivesses acesso à minha ficha corrida, poderias criar defesas às coisas em que sou especialista. Meus ardis, minhas armadilhas seriam muito pouco eficientes. Se soubesses o estrago que me vai por dentro, se ao menos conhecesses as letras das canções de amor que escrevo, em cujas linhas perpétuas, te encontravas desde antes de surgires naquele outubro distante, poderias pedir para sair a tempo. Antes que houvesse amor, antes que os olhos estivessem desesperadamente apontados para as órbitas dos universos que crio. Se soubesses de quais substâncias são compostos os meus sonhos e que sabor tem minha pele depois que cometo atos tão insanos e contrabandos de sentidos seguem as notas das melodias que uso para encantar, talvez tivesses maior chance de proteção. Me chama de falhado. Me chama de esquisito, malandro, estúpido, mas faça questão de ter tuas relíquias. Volta para buscar o que ficou, caso contrário não haverá completude. Acredite, sei do que estou falando. Em minhas superstições sobre o amor e as coisas que deixaste em meus lábios, volto sempre às palavras do último dia: vou sair por ai, viajar, ser feliz. E penso o quanto isso é próximo do que deixei escrito nos papéis de minha infância. E fico extasiado por saber que estas coisas estão nos meus passos e que é a busca que as faz constantes ou antes disso, presentes. Te vejo ainda nas cartas que nunca enviei, nas minhas páginas marginais e nas gotas do remédio para a tosse cada vez mais constante. Se soubesses de onde eu vim, saberias de pronto que a cidade destrói a imagem que temos de nós, arrasa a vontade de sermos maiores e mais ligados aos outros, confina o dentro e remove a identidade atrevida enjaulando os desejos na cartografia das ruas, nas suas periferias. Terias a certeza de que partiste do mesmo lugar e talvez estivesses atrás de responder à mesma pergunta que me ocorre há tempos: queres mesmo ficar? J.M.N

Para ler escutando e depois ler aqui

No som das horas

Faz tempo que não vens por aqui. Dias há, que não se noticiam tuas conquistas, passos, achaques. Não tomas café da manhã nas redondezas. Outros tantos minutos se constituem entre minhas necessidades diárias e a pensa em coisas tuas, nossas. Alumbramentos esparsos que insisto em tomar por memórias. Lembrei que dizias sempre as verdades do avesso e cuidavas para que minhas vergonhas nascessem dos estranhamentos que argumentavas serem exclusividade minha. Ora afeita a contemplações, ora louca por descobertas quase constitutivas. Há meses não retomo meus projetos. Não me cabem nos sonhos os pomares imaginados, o coelho no quintal muito verde a o fim de tarde quieto, em casa feita apenas para três. Bendito o fruto do teu ventre - poesia. Sabias imensamente sobre meus atos mais daninhos, sobre minhas coisas mais próximas às tuas reticências e como não houvesse escape, sabias sobre as minhas desistências através de tuas próprias desventuras. Faz tempo que não vens por aqui. E neste entremeio tenho força apenas para duvidar do que fui ao teu lado, para por em cheque minha imagem no espelho e penso, meio desnorteado, que a semelhança foi nosso maior infortúnio. J.M.N

sábado, 10 de outubro de 2009

Notas de rodapé #2

Testa. Tenta fazer o que te mandam fazer tuas artérias, teu verbo do avesso. Coisa insana esta de dar coordenadas. Nunca as tiveste. Nunca as tive. Sim tudo está como antes. Precisa de algo mais para que reclames teus direitos de pertencer? J.M.N

Foi tudo num mês distante, quando ainda éramos encontro

Sobre a música foi no mês que vem, Vitor Ramil

Não estavas propriamente só. Desabitada, talvez. Quem sabe não querendo mais entrar e encontrar a mesma arrumação da sala, teus bichos que comiam roupas e ocupavam armários e te arranhavam a pele durante as visitas esparsas. Eu, por minha vez, alterado. Como quando se enuncia uma nova teoria enigmática. Houve trajetos cortados, horas marcadas e encontros na distância de nossas casas. Um compêndio de devoção enunciado em horas multiplicáveis, desenvoltas. Os abraços mais apertados que já tive. Enquanto isso acontecia em minha história, outras euforias iam apagando. Deixando ao longe, a marca da inundação imprópria, cataclismo de deserto, coisa inexplicável. Pedi que te aproximasse. Pedi mil vezes que me emprestasse a certeza dos teus passos. E isso veio. E se foi. Tão instantaneamente que me dediquei aos traços. A uma cartografia imaginária de tua passagem por estas instâncias casuais da saudade menos acessada. E te ocupaste de me emprestar teu deserto, que mesmo sem os nômades de costume, avançava sendo explorado por povos e senhores indômitos. Contudo estes não te encontraram tão facilmente como eu, tão oposta a si que era impossível te reconhecer, pois era esse o mesmo estado que me perfazia. E tudo foi tão difícil e secreto, tão autoral e desconhecido que ainda hoje sento ao caminho de minhas escutas, de minhas certezas e te encontro distinta dos demais, senhora e serva deste destino, praticando os hieróglifos que te desmentem, que enterram tuas palavras como em uma tumba muito antiga, para apenas deixar vestígios (do que és de fato). E neste desfazer-se constante, minha única dor me diz que ainda faremos falta um ao outro, criaremos diálogos longos e improváveis, pois ambos se destinam às capturas e tal como ficaste em mim, sei que ainda não me deixaste partir. J.M.N

Para ler escutando e depois ler aqui...

Deslumbramento

Fiquei impedido de existir. Suspenso nas confusões do silêncio. Fiquei feito um incêndio. Consumido. Fiquei pasmo por tua beleza. Morto no teu convite de permanência. Quase falo de botânica e azulejos, os assuntos mais absurdos para mim. Quase crio impossibilidades, ou um novo mundo em que só nós habitássemos. Quase quebro a monotonia do espetáculo e te arranco da boca, um beijo e mais outro.

Deveria te dar outro nome e te levar comigo, para além daquele ambiente indevido. Daquelas pessoas aquém. Devia mesmo ter te tomado num susto, ao pé da porta entreaberta e ter te trancado no meu peito absurdo, fazendo-te respirar ofegante para sustentar meu próprio desatino.

Quero te chamar de engenho e morar no teu corpo profuso, feito o doce que sai in natura, feito nódoa que não sai nunca. Vem comigo neste ímpeto inconseqüente, num descuido que recriará a harmonia dos dias e dará razão, quem sabe, a esses dizeres.

Esqueça do que me chamaste, do que me disseste à saída. Sei que ainda existe história entre as tuas e as minhas tardes. Me deixe te ofertar romarias, aonde irei sem andores ou preces, entregue como só tu me elicias a dizer poesias ou quem sabe, o que mais quiseres. J.M.N

Romaria

De noite a Santa repousa. De dia arrastam-se os pés descalços. Orando os filhos postiços, atrás da virgem, vão cantando.
Tem homens caindo em redor.
Mulheres julgam-se amigas. Atrevem-se a chamá-la de “minha”.
O dia é quente que dói.
Um mar de gente, já diziam.
E eu esperando ela passar.
Finalmente passa por mim, repara que estou ali e me faz um sinal.
Santinha, obrigado pela existência do meu amor, das tardes de sexta-feira e da saudade, que afinal é o nosso grito infinito!
Vou me envolvendo na multidão. A romaria agora é minha. Sagrada seja a multidão em que ela anda.
Sagrado chão percorrido.
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco e ela certamente é comigo... J.M.N

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Antes de bater à porta...

"O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei."

O Amor bate na porta – Carlos Drumond de Andrade

... é preciso saber se há a disposição para o calmo, para as horas de quietude. A vez de uma paz tão desejada, necessária. Numa altura da vida em que já foram demais as batalhas. Há que saber se as auroras serão a dois, nenhuma chance de se dormir e acordar em ilhas, distâncias cultivadas em passados sozinhos. Há que distribuir mais risos que gritos e desfeitas. De ambos os lados, pontes antes de muros. Se eu não sei, pergunto. Se eu condeno, que saiba ser o que nunca escapa, o que nunca se esquece de se condenar. As intenções dos amantes serão sempre para o amor demais. Há que cuidar desta intenção. Criar mais do que desfazer. Há que se andar em todas as trilhas. Há que se divagar no caminho, duvidar das certezas sobre si e sobre outrem. Escutar os silêncios sabendo que a atenção não acaba, quando as bocas eventualmente não conversam. Há que se invadir a aldeia, cumprir todas as promessas e bater na porta, antes das certezas mais modestas. Antes dos pedidos de eternidade. Há que se saber cúmplice dos assaltos, em todas as tarefas. Antes que os tesouros sejam cobiçados. Antes que apenas o outro seja desfeito, imolado. J.M.N

Saberes

Não se sabe do vivo
até que chore
Não se sabe do morto
até que expire
Não se sabe do cego
até a noite perpétua
Não se sabe do crime
até o castigo
Não se sabe da rima
até nascer o verso
Não se sabe do inverno
até o frio na espinha
Não se encontra o mistério
até desistir a razão
Não se sabe do afeto
até o convite do beijo
Não se sabe da espera
até que a porta seja aberta
Não se sabe estar presente
até que se experimente
a solidão de não estar.

J.M.N

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Coisas a teu respeito que inventei durante a chuva

Estar distante das tuas coisas é tão improvável. O vidro do carro deságua e me desabriga. Sinto-me deserto. Com uma tonelada de chuva sobre meus passos. Mesmo daqui de fora, enxergo belezas. No calor aquoso dos dias é que respiras. Como se fosses imune. De dentro do teu corpo saem naturezas: um cântico azul, poemas divinos. E ao andares, reformulas tuas penas, os teus passos esguios. Sigo esses passos e aprendo gentilezas. Os idiotas como eu só sabem amarguras, segredos de estrada e apartamentos. Ventura mesmo é ser amor, seguir o outro aos confins do mundo. Derivar loucuras e rir desesperado. E ter aparelhos de se reinventar. Azuis e ocres para os dias díspares. As histórias de outrem para fugas e ensinamentos. As incertezas de sempre. Dia desses reapareço e nossas dores serão bebidas. Por outros senões, exasperadas. As paixões constantes e fugidias. Deste lado, sussurra a nostalgia. Tristeza, talvez, de estar distante.

J.M.N

Pintura

No exílio dos traços
Um disperso grafite
Aparato de cor e retorcida tristeza
No centro do olho
Abre-se turva
Na tela furtiva
Uma pintura de amor. J.M.N

Nota de rodapé #1

Vens aqui e tocas tudo o que é sanidade, vais e vens dos meus destinos matinais, registras em fuga o que te acomete e nem sequer tens coragem de pegar o carro e roubar o brilho da tarde para dentro dos nossos beijos novamente. É assim que enfrentas minhas derrotas, minhas infâmias? É assim que a tua saudade te faz agir? J.M.N

domingo, 4 de outubro de 2009

J.P. Simões em Belém - Show 1970

IMG_0190   
                  Foto J.Mattos

Em Belém acontecem algumas coisas realmente surpreendentes. Vinte e uma hora, dia três de Setembro de dois mil e nove – um dia memorável.

Não havia nenhum plano para o fim-de-semana, muito menos a esperança de que algo de bom aconteceria ou que eu poderia sair de casa e experienciar um reencontro com coisas tão caras e admiráveis de um passado recente e transoceânico, vamos considerar. Mas assim foi.

O teatro Waldemar Henrique estava quase vazio. Vinte e poucas pessoas. Os sortudo(a)s, considero, puderam se deleitar com um pocket-show de J.P Simões. Cantor, compositor e escritor português dos mais qualificados, ex-vocalista da excelente banda Belle Chase Hotel, participante de projetos de peso como Pop Dell'Arte e figura simpaticíssima da estirpe “bizarra” (como ele diz) dos portugueses de ascendência brasileira.

O clima intimista e muitíssimo próximo ao formato show exclusivo imprimiu um ritmo favorável a encantamento recíproco do artista e da platéia. Mais do que empenhado em ser artista, J.P parecia estar feliz por tocar no palco paraense e dedicou o show a Walter Bandeira aquém se referiu como grande entusiasta de sua vinda a Santa Maria. O artista em sua facilidade de comover e mobilizar deixou desde a primeira música uma vontade de que a noite não acabasse.

O show de J.P Simões foi quase completamente baseado em seu mais recente trabalho solo: Boato, cujo formato em música popular, o aproxima dos mais dignos discos da música popular brasileira. Seus arranjos, decerto, escapam ao formato das canções portuguesas tradicionais e namora firme com a bossa nova, com as modas cariocas, sambas canção, dentre outros.

Entre temas bizarros (descritos assim pelo artista) e lírica refinadíssima, J.P Simões proporcionou a pequena, mas legítima platéia, uma hora de enlevo, de singeleza e simpatia, como jamais esperava ter numa noite de sábado chuvosa, num Outubro quase exclusivo de Círio e religiosidade, onde a calçada da Praça da República deu lugar a uma prosa descontraída, feliz e com gosto de retorno ao velho Café Cartola de Coimbra ao restaurante A Brasileira na baixa de Lisboa.

Essencialmente romântico e trágico, flertando com ópera e jazz, o show – apesar de instrumentado apenas por um violão – introduziu certamente nas memórias sensíveis, versos como: Vai minha geração, nasceste cansada, mimada, doente, por tudo e por nada, com medo de ser inventada/ O que é que te falta, agora que não te falta nada?

Ou ainda: Já cruzaste oceanos/ por caprichos de paixão,/ foste deusa, foste bicho,/ viste a festa, a fome, o fundo do país de carnaval,/ tira a máscara dos anos e vem dançar/ só mais um samba, só mais um samba... Estes últimos dedicados à sua mãe.

O momento contou ainda com a excelente participação de Cacau Novais, em dueto na belíssima Se por acaso (me vires por ai), substituindo Luanda Cozetti, magistralmente, se me permitem. Como já não fosse suficientemente bom, J.P. cantou Chico Buarque (A Gota D'Água). A noite não poderia terminar de maneira mais agradável, com memórias, lembranças de encontros bêbados e a oferta do set list autografado, além da promessa de um bom café um dia desses.

Sugiro, pois, que busquem conhecer a obra deste compositor português, de acedência brasileira, em cujas linhas e rimas e notas derrama-se a mais legítima junção de lirismo, verve e talento. Com vocês… J.P.Simões… J.M.N

sábado, 3 de outubro de 2009

O longe, a miragem

De manhã tive a impressão de que me seguias na fila do supermercado. Fiquei com um calor estranho do lado esquerdo, que era onde sempre te colocavas para me abrigar nas filas, onde quer que fosse. E lembrei de todas as rotinas, de todos os sons pensados para te fazer acordar - tua companhia era imprescindível. Lembrei daquela noite em que acordei assutada e te pedi companhia, mas estavas tão cansado que apenas disseste que passaria e me oferesseste dormindo teus braços confortáveis. Fiquei ali, medo de sei lá o quê. Rindo por dentro, pois esperava que acordasses, mas nem um pouco aborrecida, entrementes feliz com tua oferta. Como as minhas coisas estão gastas, minhas roupas te passeiam nos cheiros dominicais e as paredes de meu apartamento me expulsam a toda hora. Não me reconheço aqui. Te vi sentado em tua poltrona de estudar, lendo um livro incompreensível e nunca pensei tanto em começar a aprender os truqes de telecinese para te ter no mesmo instante destes devaneios. Liguei uma vez (casa e celular), liguei duas, liguei onze... em todas as ligações interrompidas queria te dizer obrigado, queria te pedir sacrifícios, queria te matar um pouco mais, como se eu pudesse ter tudo de volta em um momento tão curto como o atender do telefone. J.M.N

Elegia

À noite, quando a fome da memória não sacia, quando o negro da distância se impõe, procuro quietar no manso do cobertor desabitado e ouvir os sons da casa. São quase tumultos os barulhos que surgem, são quase escândalos. Chega sujam a energia dos eletrodomésticos e redimensionam minha vida de solitário, estacionam a dor de meu tempo ao contrário – um cenário propício aos desesperos. Chega letras suicidam nos livros amontoados. É uma corte ao prazer esquecido, a uma nudez límpida que me relembra cachemiras elegantes, lírios, a união de todas as cores. E nesse oculto sonho quase encontrado, naufrago a vista e o tato, o escutar dos tons do mundo. Sigo leve e desenvolto aos segredos do mágico, ao calor do colo que permitiu minha existência. E penso nos meus ancestrais, em como rezariam novenas a este desassossego que me consome. J.M.N

O Escafandro e a Borboleta

Escafandro

Dia desses assisti novamente ao filme de Julian Schnabel, O Escafandro e a Borboleta (França/EUA, 2007). Pela segunda vez terminei o filme com uma impressão de que o drama de Jean-Dominique Bauby, personagem principal do filme, é uma história sobre a lucidez, a qual, nos ensina José Saramago algures, pertence à categoria dos dons que qualificam a liberdade. No caso do protagonista desta incrível história, a liberdade dos pensamentos, num corpo detido por um colapso neural.

Bauby era editor chefe da revista francesa Elle e sofreu um derrame cerebral aos 43 anos de idade, culminando este quadro na síndrome de locked-in, um estado muito raro em que todas as faculdades intelectuais são preservadas, enquanto o corpo deixa de responder inteiramente aos estímulos externos e fica paralisado por completo. Nesta condição, o paciente apenas pode respirar e comer através meios artificiais tornando o nome da síndrome – trancado dentro – uma sentença aterradora.

A única propriedade corpórea que Bauby controlava era o piscar de seu olho esquerdo, cujo movimento interpretado por enfermeiras dedicadas indicava as letras do alfabeto que deveriam construir as sílabas, as palavras e as frases que compuseram um impressionante relato sobre sua vida, suas divagações sobre a felicidade e o amor, suas memórias e suas relações com as pessoas e com as coisas do mundo.

Destaque-se aqui a incrível interpretação de Mathieu Amalric, cuja capacidade de expressão facial torna a história ainda mais contundente. O ator frances realmente consegue transmitir através de uma dificílima condição de imobilidade, as sensações da prisão do corpo e os sopros de vida que os pensamentos da personagem lutam para registrar.

Não pude deixar de notar a semelhança do estado de Bauby com certas vivências febris que nos assaltam ao longo da vida, em cujo desenrolar agiganta-se a sensação de imobilidade, o desespero de uma morte cinética e a radical presença de pensamentos libertários e de uma saudade a toda prova. Condição única que nos lança num emaranhado de questionamentos sobre o que fizemos, sobre nossas existências e sobre nossos limites humanos mais temidos.

O filme de Schnabel é lindíssimo, com fotografia impecável de Janusz Kaminski, que também assina a fotografia de A Lista de Schindler e roteiro que respeita o formato e a cronologia do livro de Bauby, O Escafandro e a Borboleta perfaz uma história contada com sensibilidade e entrega, onde nenhum dos elementos cênicos destoa da delicadeza da condição do protagonista efetivando uma excelente junção entre fato e criação artística

Bauby escreve: "Por trás da cortina de pano roída pelas traças, uma claridade leitosa anuncia a aproximação da manhã. Doem-me os calcanhares, sinto a cabeça apertada num torno, e todo o meu corpo está encerrado numa espécie de escafandro. O meu quarto sai lentamente da penumbra. Observo pormenorizadamente as fotografias dos meus queridos, os desenhos das crianças, os cartazes, um pequeno ciclista de folha enviado por um camarada na véspera do Paris-Roubaix, e o cavalete que sustenta a cama onde estou incrustado há seis meses como um bernardo-eremita sobre o seu rochedo.”

Curiosamente, bernardo-eremita é uma espécie de crustáceo que não possui casca e para se proteger dos inimigos naturais, rouba as cascas vazias de outros crustáceos usando-as como defesa. Minha sensação ao ver o filme e conhecer a história de seu protagonista é de chegamos ao fim da película querendo roubar a extremamente forte lucidez de Jean-Dominique, sua couraça, sua resistência e fazê-las de escudo contra as intempéries da vida, contra a constatação de que mesmo sem acometimentos físicos, às vezes, somos prisioneiros de nós mesmos. J.M.N

Trailer...

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A Ira do Adeus

Sobre a música Say Something, James

Ouvi cada palavra tua calado. Adentrado num mar inóspito de irreconciliáveis diferenças, de escusas intempestivas e palavras pouco consagradas, em desuso até. Foste recolhendo teus pertences, teus gritos, a terça parte de tua estrutura. Envolveste em teus braços longos e quase abrigos, os resquícios do que tinhas trazido para a casa, para o quarto de dormir. Exumaste as memórias ternas e vorazes dos quatro cantos da sala. E um cheiro de desistência e armadilha entrou solene e seguro pelos corredores. Era injusto que eu me sentisse traído, pouco desejado. Era impróprio que eu cultivasse o tormento de tua partida. Devia ter deixado o centro das incertezas para ti. De um golpe violentaste minha memória, destruíste a imagem que tanto lutara para erguer e manter aos que amei, em casa que um dia foi minha. Caminhaste dura e intransigente por sobre as ruas de minha infância entregue, de meus dias de abandono e escravidão e acertaste em alvos que nem sequer conheceste. Foste ora carrasco, ora quem liberta. A porta fechada encontrou um tempo para me conceder a lembrança de quando te deixava sair, sabendo que voltarias com a alma em carne viva para me habitar. Um raio de sol fez questão de iluminar o objeto que esqueceste. E aquela luz, como um fixador natural, gravou na lajota da sala, a imagem de teu broche deitado no frio. Uma sombra de azul indolente que se recusa a sair. Como se recusam a sair de mim as imagens felizes daqueles dias. Lembras da represa que nos recebeu em nossa primeira viagem? Lembra de como as pessoas perguntaram por que rias tanto e ao me ver chegar todos se encontravam num riso junto, reconhecedor? Eu gritava com toda a força que se isso durasse mais que os anos que dizias estarem palejados para ti, queria morrer primeiro, para te deixar ver como era a vida sem mim – um egoísmo delirante e inconformado. Teu silêncio é ensurdecedor. Dizia nas rezas secretas que faria de tudo para sempre encontrar razão de te perdoar, quando, no fim, não estava pronto para me conceder o perdão devido. E quando aconteceu de seguires um rumo diferente do meu, senti muitíssimo que tivesses partindo de maneira tão desumana, tão cheia de por quês. Perguntando se não era suficiente o que me entregaste na chegada, enquanto eu, sentado de costas para a porta agora eternamente fechada, me perguntava se havia esquecido de te dizer alguma coisa, de te devolver tudo o que era teu por direito: tuas roupas, tua escova de dente, teu colar de contas e a parte de mim que nunca mais aprendeu a existir sem a tua presença. J.M.N

Para ler escutando... E depois ler aqui

O Amor Esquece de Começar - Fabrício Carpinejar

Não estou certo de que Fabrício Carpinejar entenda de amor. Não estou convencido de que o escritor tenha propriedade para intitular seu trabalho de O Amor Esquece de Começar. Afinal, depois de lê-lo, fiquei com a impressão de que seu livro é feito de sobras, de coisas escritas em pedaços de papel de pão, cantos de conjuntos americanos de papel, em restaurantes desconhecidos mundo afora.

Fiquei incomodado com alguma sintaxe encontrada naquelas páginas de O Amor… E, no fim das contas, fiquei puto com algumas afirmações que me fizeram ver o quão apaixonado eu sou, o quão dependente deste sentimento esquartejador e sacrificante que atende, desde de tempos imemoriais, pelo apelido – Amor.

Acontece que o cara está me seguindo. Onde eu vou, este livro maldito vai atrás. Trazendo perguntas, mexendo com a simplicidade de coisas que me são caras e causando equívocos em minha residência de saudade. Tornou-se um amigo. Um cúmplice. Que não é um quinhão perdido, mas o eco de muitas coisas que admiro poder serem ditas de forma tão leve e despreocupada.

Dai lembrei de Goethe, dizendo que se encontra o que busca, se busca o que se sabe e fiquei com a sensação de que procurei Carpinejar neste momento específico e ele se deixou encontrar. Com a simplicidade do coloquial proseado e ao mesmo tempo poético. Cheirando Quintana, batendo papo com Borges e, o.k., fazendo alguns desses dias malditos, despertarem acolhidos e confortados com linhas como: cinzas que choram rindo, longamente longe das brasas.

Não estou certo sobre o que estou dizendo. E agora me preocupo com as sobras, com os escritos militantes dos balcões de padaria, meus ditos inacabados, saudades imensas. Não estou convencido de que românticos inveterados devam dar dicas sobre livros que tenham um nome como este: O Amor Esquece de Começar, pois quando vamos ver, já estamos entregues, acreditando em cada linha escrita, em cada eco surdo daquela província de palavras e poesia. J.M.N

Excertos Terapêuticos XV

"Eu fico na minha, vagabunda numa casa pequena, ouvindo o riso das estrelas acesas, que é sempre igual, como num infantário. Quantos mais biliões de anos serão precisos para crescerem? Sei lá."

Miguel Esteves Cardoso - A Vida Inteira, p. 138

Diário da tua ausência VIII

Onde cantam os teus olhos? Onde acendem as estrelas das noites puras em que estivemos? Acordo e nunca sei que dia é, ou quando estou. Acordo querendo dormir para sempre, esperar para sempre, gritar e não mais escutar este grito desumano, agressivo. Um dia a estrada volta e quando voltar estarei seco pela caminhada. Onde estão as coisas que deixaste aqui? Teus panos que envolviam meus panos. Sapatos que se chutavam no escondido do armário. Quero encontrar a imagem do espelho e santificar a graça de ter tua voz no café da manhã. Sempre que entro na padaria, acho que já via aquela cena – você sentada tomando café e olhando a porta, eu morto de fome e te encontrando depois de um mês de separação. Não me atrevo a visitar meus sonhos, pois sei que todos eles secretam aquela substância translúcida que deixavas em minha pele depois do toque – não sei, acho que não tenho mais o escrever dos dias. J.M.N