domingo, 27 de agosto de 2023

Fazendo as Pazes

Quero abraçar meus fantasmas
Dar-lhes colo, cantar-lhes canções
Quero embalar seus vazios com cuidado
Dar-lhes o amor oculto em meus pecados

Desejo que suas sombras dissipem
Que sigam em paz, meus fantasmas
De um lado há essa revolta inconclusa
E de outro, a saudade dos espetáculos

Vejo estradas, não caminhos ou atalhos
Ninho numa casa de sal e lágrimas
Embaixo da mesa, preso ao lugar do nada
Sou espelho para fantasmas, refletem-me

Quando não fui capaz de negar
No dia que não iniciei a fuga ou retornei
Quanto mais pedi desculpas por não ser
Fundei o mundo desses ectoplasmas

A correnteza me arrastou a novas praias
Onde nenhum sonho há, senão o presente
E o futuro é a voz das novidades sem fim
Quero estar unicamente, quero o enlace

E para tanto, liberto-lhes de minha dor
Fantasmas, ecos, aparições, avantesmas
Embarcarei num sono muito sozinho
De escuro, livramento, vinho e simulacro

Saiam de mim, cuja estrutura tanto usaram
Avante e sem passados, flutuem, transmutem
Caibam na boca de pessoas melhores
Façam morada em qualquer outro espelho

Quando eu acordar, esperarei o cortês acaso
Em ser o espectro dessa minha única vida
Fantasma, em carne e ossos, novas crias
E prometo esfumaçar tão logo eu caia


Para ler ecutando:



 

terça-feira, 9 de maio de 2023

Um cardíaco

Meu antro de receios
Meu coração
Cheio
De medos e oração
A pura metonímia da coragem
Despudorado coração
Sangrento
Abusado
Desaforado
Vai-se primeiro, antevejo
Vai-se aos tropeções
Sísifo das coisas absurdas
Das declarações desveladas
Dos saltos mortais
Vai-se herói da melancolia
Sobrevivente de abandonos
E mortes sucessivas
Ah meu coração impossível
Se deitares antes de mim, e quando
Será tua única afronta
Que sempre me deste mais
Do que podias
Em batidas, sonho e poesia
Em espera e esperança
Sempre trouxeste mais mundo
Para a minha, mais que todas
Inquieta solidão

Cantídio

terça-feira, 18 de abril de 2023

Efusões

Vamos dormir lentamente, com as mãos procurando saliências. Uma anca desnuda, a nuca enluarada, algum cume de montanha. O sonho aterrisa, é possível rir no túmulo provisório do sono. Onde o mundo derrapou e eu te perdi? Em alguma jaula de mim as coisas se acumulam. O cantor definiu por mim a ilusão do ritmo das coisas que não consigo pronunciar. O poeta me deu a lâmina afiada do delírio. Tenho cá esse projeto incompleto de ser feliz. Só por causa dos químicos é que assentei. Tenho amigos que me amam. Filhos que me amam. E ela que me ama. E sabe tudo o que sou. Só não consigo ser feliz o tempo inteiro (a canção). E a vida, às vezes, é um átomo que se animou (o poema). Esse ano que chega será ímpar. Minha idade também. E se eu posso cantar, pelo menos posso surtar em voz alta. E será Spanish Bombs, durante a virada, embalando o horizonte. Venham lindos 365. Estamos por aqui. A casa, a carcaça e a esperança. Yo te quiero infinito.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Rei

Emborca o corpo no lombo Do burro pequeno que levou o rei Sente a majestade do abandono O caminho de estrelas se abrindo Ora o rio te endireita e te leva Ora desmente a vida e te traga Desce daí menino sem sombra Dobra o sino em meu louvor Eu sou a solidão dos tempos Não levo nada a lugar nenhum Ora, que o rio te endireita e leva Nega, e o rio desmente a vida e te traga A beleza da pobreza é nenhuma E a realeza que te espera Só pode sobrar da tua própria entrega Parta-se para dar tua semente, eu Chora, que o rio há de compreender Sonha, senão a vida te liquefaz Sem leito por onde vagar Sem caminho que seguir

sexta-feira, 31 de março de 2023

Canção das antigas

Em vez de nós

Uma canção das antigas

A mística voz

Rodando no gravador

 

A dor de perder

De ousar e ficar

Sem você

Ainda me assusta

 

Foi tão bom

Que nem durou

E se perdeu

Dentro da escuridão

 

Um fogo intenso demais

No lixo a razão

E a fera paixão

A sorrir sem igual

 

Em vez de nós dois

A linha imóvel

Da solidão

Ficou esse amor

 

Sem perdão

De lados opostos

Amando segredos

De antes do fim

Ilícita

A dama do filme

Sorriu para mim

E as portas do céu

Fecharam para sempre

Não há santidade em seu corpo

Muito menos escape para o tolo

Que se deu demais

E se perdeu

 

Foi assim que nasci

Na perdição do teu ser

E meu querer deixou de ter

Intenção

Tornei-me um vício para ti

E de nada adiantou

Correr na direção da luz

Acabei como um gim

 

Como poeira que altera

Os sentidos

Acabei em mim

As preces na infância

E a vida que esperava ter

Acabei em pedaços na estrada

A esperar a carona do destino

E ele, assim sorrindo

 

Me levou de volta para ti


(Cantídio)

terça-feira, 21 de março de 2023

Epígrafe para um amigo

 para o José Aremilton

 

Meu medo é esse: ser esquecido

Dar boa noite à escuridão sem eco

Restar-me sem sobremesa ou dia seguinte

 

Toda vida que canta um pássaro, já basta

Encontro bemóis e algaravias naturais

Refaço a cama para o descanso noturno

 

Mas quando um amigo pede palavra

Acena em bytes ou escreve uma carta

Mesmo que não envie, mas me conte

 

É como a vida acudindo a alma

Anunciando sua beleza escancarada

Fico demais sentindo que tenho jeito


Cantídio