segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Excertos terapêuticos VI

"Era apenas por querer que a noite sempre se aproximava mais lenta. Digo, sempre desejava que viesse rápida, logo ao fim da manhã. Depois da primeira parte do trabalho já poderia ter aqueles olhos imensos a guardar-me toda a dor dos dias antes sozinhos. Era apenas porque isso era impossível que mais o desejava. Como as verdades que ficam escondidas nas coisas brutas que saem das bocas durante as brigas de amor. Dizer que se não acontecer assim ou assado “vamos embora para sempre” é a pior desfeita que se pode pronunciar. Era por ter certeza de que isso um dia viria a ser verdade, que sumi. Mas deixei a porta entreaberta. Sempre há esperanças nas frestas das portas e nos espaços desconhecidos. Um dia ela chegou em casa e me disse que estava cansada. Resolvi que era comigo e mudei de desejo para esquecimento. Hoje não há améns e nem as mentiras bonitas que me faziam tão feliz. Cansada de quê? Eu pensava. De mim, de nós? Deixei a porta aberta e muitos quereres não ditos e foi por isso que a noite entrou para sempre em nossa casa, porque não soube descortinar os dias pouco a pouco."

O livro dos artefatos do nada - Cantídio, p. 78

Histórias para depois do sono V

Lembrete: parar além de Ceuta com seus dois céus mediterrâneos. Não ir a lugar nenhum enquanto dure um abraço. Os olhos impertigados de desventuras. Barcarolas ao longe me lembram o velho Francisco. Saudades dos portos conhecidos. Se vou adiante atrevo-me num mundo que nunca me quis e se ficar, posso até esquecer de onde vim. Qualquer vento por favor! É um pedido justo já que estou no limite. Ela voltou com água e docinhos estranhos. Deu-me um beijo e segurou a minha mão. – Vamos? Disse-me lenta. Eu fui. Ao longe, no outro lado, Gibraltar e a pungente existência dos amores e medos. Há terras que ainda ficarão desconhecidas e coisas em mim que nunca mais deixarão de existir. Como ela.

O que era para se dizer em abril

Te vejo fim de maio, em meio às sujeiras do deserto do Novo México, para onde vou afogar minhas mágoas. Aquela desculpa de estar cheia da insensatez que te causo não foi lá muito boa, mas acredito. Fica chato mesmo ser bom o tempo inteiro. Esqueci-me de como ser mau, perverso. Ontem fez um dia daqueles em que estaríamos sentados de pantufas trocadas, comendo Corn Flakes murchos com iogurte vencido, só por preguiça de ir ao mercado. Li o Neruda que roubei de ti e, a despeito do Chico Buarque, nunca mais te devolverei. Fico, agora, horas e horas escrevendo versos, mesmo detestando poesia. Escrevendo coisas infames tipo: roubei os traços ao mágico/interpelei minhas sensações/e estavas lá/ dormida num sono meu/tranquailidade nunca mais. Vou dar essas coisas para alguma banda local. Quem sabe pega. Os meninos de hoje tem um limite muito maior do que o meu para as coisas bobocas que se escreve. Filosofar nem pensar. Nem sequer um diazinho de raiva das coisas ridículas da TV e a aflição de se ler uma Sábato ou um Lautreamont. Foi disso que escapaste? Da chatice? Do surpreendente descobrimento de finitude? Do gosto pelas coisas que não são o gosto dos outros? Onde estás que não me respondes? Fico aqui a escrever estas barbaridades, esperando que um dia aconteça novamente aquele estado eufórico de te encontrar pela primeira vez. Protegido em meio à arrogância dos que julgam que nada existiu antes deste vazio. Eu sei quem foste. Sei que estiveste cá. Já não estás, mas ficaste de algum modo. Te vejo no fim de maio. Cheio do pó e da solidão do deserto. Mais seco e suave na pele e na boca. Com bom gosto para águas. Te vejo num fim qualquer. Desses meus dias no internato ou nos pontos finais que ainda surgirão na minha interminável busca por novamentes, retomadas e mais adiante, por uma vida inteira.

Aos leitores do Blog

Caros leitores,

Queremos agradecer os comentários e e-mails sobre os posts aqui publicados. Nossa intenção é estar sempre acompanhando a evolução de nossas visitas, bem como dar a melhor atenção possível àqueles que escrevem comentários.

Apesar das atribulações pessoais desses últimos meses, estamos tentando não deixar o blog muito tempo sem alimentação e instalamos um contador de visitas, cujo numerário nos enche de alegria sempre que constatamos o aumento das visitas, através do registro de novos IPs.

Tivemos que ativar o moderador de comentários, pois, infelizmente, nem todos os visitantes utilizam do espaço de comentários da melhor maneira e esperamos que isso não tenha desencorajado os costumases comentadores.

Estaremos sempre prontos a responder seus carinhosos e-mails e manter contato direto sempre que possível.

Um grande abraço,

Palavras de Ontem

domingo, 28 de setembro de 2008

Excertos terapêuticos V

"Este sonhar acordado, este cismar poético diante dos sublimes espetáculos da natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu às almas de certa têmpera. Doce é gozar assim... mas em que doçuras da vida não predomina sempre o ácido poderoso que estimula! Tirai-lho fica insipidez; deixai-lho, ulcera por fim os órgãos: o gozo é mais vivo porque a acção do estímulo é mais sentida... mas a ulceração cresce, o coração está em carne viva... agora o prazer é martírio".

Viagens na minha terra, cap. XXIX - Almeida Garrett, p. 183

Caminhos

Hoje eu fui ao restaurante que você tanto gosta. Depois fui ao mesmo café daquele sábado, lembra? A padaria onde lhe vi naquela manhã, de relance, tornou-se um mirante inevitável. Saindo de lá, costumo ir à praça que queria te mostrar, tem o busto de uma mulher que é muito menos bela que você. Também tem a seleção de filmes idiotas, com os quais iríamos nos divertir em pijamas, caso não houvesse nada mais para se fazer na cidade. Sentei no mesmo banco onde aquele monte de palavras estranhas foi dito em silêncio, porque não houve tempo para fazê-las ter som algum. O lugar de que você me falou na ilha, lembra? Fui só. Não tinha cor nenhuma. Um dia, quem sabe, ainda lhe mostro essas coisas ou, quem sabe, simplesmente lhe ensino os caminhos e lhe convenço de o quanto é bom poder ir lá com essas lembranças.

Noite meia... um estado único

Ah não! De novo não, tá? Isso de ser indelicada não te cansa?
Tópico um: Olha, devolve lá a cortesia que te dispensei.
Não podes ser assim tão antipática.
Briga?
Eu nunca brigo quando estou aborrecido.
A mentira entrou na minha vida há tempos e nem sei quem foi o primeiro que me disse: Isso está errado!
Vai ver não teve.
Nós dois estamos aqui. Com um problema sério a resolver.
A primeira vez que te quis foi com muita força.
Não sei explicar essas catástrofes cinéticas que arrebatam minhas vontades.
Posso te contar como é ser feliz? Faço isso em segredo que assim ninguém descobre que te enganaste, ok?
Então tá, fica com o teu vazio que do meu eu já estou farto.
Talvez tenha tido dores naquela madrugada, mas que te importa?
Pareces mais empenhada em ser assim... Como és! Eu também quero entender isso, mas prometo que vai ser a última coisa que tentarei contigo. Isto é, no dia em que me esforçar para entender, estou deixando o circo... Nada mais de espetáculos de conquista.
No dia do jogo de cartas eu estava nervoso.
Havia perdido a outra mulher da minha vida havia 30 minutos.
Tinha um nome antigo e um inevitável ar de distância.
Sabes o que eu disse?: Posso te beber?
Ela riu e disse: Claro!
Ai eu perdi o rumo... Isso sempre acontece.
Na praça tinham os espectadores do jogo de futebol. Vitoriosos e derrotados lado a lado embebidos de barulho e cerveja e eu ali, admirado pela beleza nada acidental daquela mulher.
Virei-me para ela e dei-lhe um beijo.
Nem sei para quê te conto isso.
Provavelmente já sabias da farsa toda... ou não?
Também tenho meus momentos.
Não podias achar que eras a única a desmantelar sentimentalidades.
Caso não saibas, treinei com a melhor das pessoas. Por acaso tinha o teu mesmo nome.
Como já te contei, ela me negou tudo. Mas tudo mesmo.
Ai me sobraram seus ensinamentos de silêncio, trago-os sempre que encontro pessoas assim... Isso, isso, como tu!
Agora já posso introduzir o tópico dois. Amor.
Não é justo que isso venha sempre por último, afinal, a busca de todo mundo acontece por ele, apesar disso e como recurso da minha embriaguez que assim seja.
Chega de drama, vamos ao que interessa.
Tens vontades estranhas ainda? Tal como agressões, cismas, mordidas e aquele suco na camisa branca para acabar de vez com qualquer expectativa de retorno?
Então estamos na mesma.
O mais engraçado é que meus braços ainda se lembram.
É difícil cultivar esquecimentos... Quando tentava, anos atrás, tinha dores de cabeça, coceiras e muita tristeza.
Agora acabou. Trago tudo comigo. Uma certa sabedoria dos anos em que andei sozinho, cultivando, igualmente, anúncios de eternidades.
Foi assim até aqui.
Agora tem um cansaço espaçoso que constrói muros e cercas aqui dentro. Não deixa as coisas que estão destinadas a sair seguirem seus rumos.
Também não sei se te interessa. Tampouco minha vontade de te contar é sincera.
Muito disso diz respeito às coisas que nunca ouvi de ti e talvez digam mesmo respeito àquelas que nunca te disse... Ou será que disse. Sempre falo demais.
Não esquenta, não vou começar nada. Tenho mais o ímpeto de fins.
Acertamos que aquela noite seria a última? Ou melhor, a única?
Nunca devíamos impedir as madrugadas desse jeito, não achas?
Se quero a tua opinião?
Não! Tenho as respostas. Só não esquece que o tempo consome tudo, ouviu? E para esse destino, só tem um remédio... Viver.
Dorme bem que eu já te perturbei demais.
Minhas lembranças pedem passagem. Um pouco da dor de ontem, também. Velhos vícios de querer demais.
Podes usar sozinha o sofá.
Talvez a friagem da noite te descubra e faça na tua pele aquilo que eu adorava ver acontecer. Não deixa o vento da noite te acariciar demais tá?, tenho ciúmes bem específicos em relação a isso.
Quando acordares esquece que isso se passou.
O tópico três vem para finalizar a conversa. Queria dizer isso de outra forma, atrever-me a interpretar esta tua permanência. Mas já não o faço.
Tenho nos olhos as ironias medonhas com que me presenteaste e o cansaço acumulado da ousadia.
Queria pedir-te mais da tua presença. Isso faria toda a diferença na partida, mesmo que essa fosse inevitável.
Tarde demais para impedir que entendas tudo errado eu sei, e mais, dói-me saber que assim o é. Sem coisas que ficarão ou se ficarem, estarão pela metade.
Paciência, o gozo disso tudo é saber que a alma existe e diz disparates vez por outra.
O amor... O maior deles. Aquilo que nem sequer ouviste de tão instantâneo que foi.

Espera...

Te espero desde amanhã. Desde que me bastava a poeira infantil das brincadeiras no quintal. Te espero atordoado com os braços retrácteis, aparelhos indispensáveis do agarrar e nunca soltar. Te espero durante a noite arquiinimiga de minhas virtudes, enquanto roubo cárdios-passos de outras bocas, enquanto escrevo imposturas para amores tristes e não usados. Espero que apareças dilacerada, estemporânea, e me roube a solidão crescente, a magnitude do estar sozinho, para que o ermo do costume neutro não se encarregue de mim jamais. Te espero vítrea, deslumbrante, salvadora, na pungência daqueles ritmos que só tu dominas. Esquiva, translúcida e momentânea, a indispensável matéria que me anima. Espero um momento de incontinência fluida em que nem os gritos, nem as grades, nem mesmo a morte possam nos impedir de nós mesmos.

domingo, 14 de setembro de 2008

Preparativos para viagem

- Então ficamos assim: nos antecederemos aos pássaros e suas assembléias pela manhã e acordaremos sem dificuldade. A cafeína ajudará com isso. Tapioquinhas e conversas inacabadas terão a nossa atenção de imediato. Na rua, terei orgulhosa o teu silêncio, pois tudo saíra como planejei. Nem risinhos nem admoestações, apenas o som do motor e o ressonar calmo da pequena no banco de trás.

- (...)

- Cidades com nomes de coronéis e promessas não cumpridas passarão sem serem notadas de dentro da cabine. Estaremos absolutamente apartados do mundo. O enviesado das frases semi-esquecidas se desembuletará com o mudar das marchas. Planos. Novidades do mundo diáfano que habitas quando não estás comigo. A tua mão na minha coxa e mais uma declaração de amor. Estás me ouvindo?

- Sim

- Casaremos três vezes pelo caminho. Na religião brâmane, debaixo de uma árvore e num terreiro de umbanda. Perderás o medo de Deus ao veres que ele também dança, ri e diz coisas que não se pretendem lições. Desejaremos mudar de vez pra Belém, pra que nosso amor seja certo como a chuva. Talvez em Mosqueiro. No Marahu, onde o rio faz o mar sentir-se pequeno. Vens comigo?

- Contigo irei a qualquer lugar, se preciso for. E se não for também.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Na Natureza Selvagem

 

 

 

 

 

Queria começar parafraseando Mário Quintana: Os filmes não mundam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os filmes só mudam as pessoas. E no caso de Into the Wild (Na Natureza Selvagem), como mudam.

Não é possível assistir ao filme escrito e dirigido por Sean Penn e sair incólume. Não é possível, ademais, assistí-lo e deixar de pensar que a indústria cinematográfica tem muito mais a oferecer do que os blockbusters, engraçadinhos, mas vazios.

A história verídica de um jovem americano chamado Christopher McCandless, toca-nos de maneiras divresas. O tema principal gira em torno da liberdade e da desvinculação social, da construção de uma utopia pessoal de desvencilhar-se do sistema e viver apenas daquilo que a natureza nos oferece.

A belíssima fotografia de Eric Gautier e uma trilha sonora emocionante feita por ninguém menos que Eddie Veder e Kaki King, Na natureza selvagem é daqueles, cada vez mais raros, momentos do cinema, em que o expectador é envolto por uma atmosfera de sensações e despertar de sentidos que nos leva à uma ligação lírica com o enredo, mas, principalmente, com o jovem protagonista.

A força das idéias de Chris e o foco de sua jornada - morar sozinho no Alasca por, pelo menos, 100 dias - atinge aos demais personagens de maneiras profundas e intensas gerando situações maravilhosamente humanas e ternas, por vezes duras, mas sempre permeadas de paixão.

É realmente desnecessário falar da qualidade técnica e do lirismo do filme, quando a melhor coisa que se pode dizer é: ASSISTAM! Em qualquer dia ou hora, mas assistam acompanhados, pois como o próprio Christopher escreveu: a felicidade só existe quando compartilhada.

Excertos terapêuticos IV

"O que nunca pensei é que pudesser ser assim tão vazia uma casa sem um anjo. Dentro de mim há uma coisa que espera sua volta, de repente, não sei se pela janela ou se aparecerá novamente no mesmo lugar. Para prevenir surpresas tenho deixado sempre abertas todas as janelas e todas as portas de todos os guarda-roupas. Enquanto não chega, preparo duas coroas de flores: uma para o túmulo de minha mãe, outra para o guarda-roupa que ele habitava."

Alfa, O ovo apunhalado - Caio Fernando Abreu, p. 23

De pai para filho

Chega o acontecimento teve circunstância de euforia. Entrou no carro sem saber o que viria de lá. Na cabeça a frase do pai:  hoje de noite precisamos conversar. Andou com pensamentos e incertezas e fez de conta que seu temor era pelas provas bimestrais. Na matemática fez conta que nem segurava. Nas ciências, água e terra eram suas imbecilidades. No beijo escondido com Helô teve como um gosto de aparecimento e uma imagem se formou diante de si, enquanto a boca abandonava o gosto no ar. Largou a menina na esquina do colégio e correu para sua casa. Comeu lanche feito desmemoriado e sentiu maracujá, no lugar de caju. Quando a noite chegou e o ritual de alimentação acabou-se para o pai, enfim, ele desenvolveu o cacoete de escutar os passos dentro do quarto. A porta se abriu e seu pai mandou entrar. Hoje lembrando disso faz conta de que foi uma eternidade e o prêmio pela espera angustiada parece bem menor do que naquele dia – ganhou a chave de casa… não perde senão nunca mais. Tinha um gosto de purgatório aquela frase. Mal ele sabia que aquela alforria disfarçada seria mesmo sua grande chance de existir. E saiu de lá direto à porta, como se houvesse cruzado aquele limite anteriormente.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Agenda

O mesmo compromisso; marco com a caneta vermelha. Apontamentos em volta, todos de preto. Coisas assim que eu escrevia dentro da notícia antiga: por que será que demora tanto?; preciso do terno azul marinho; isto nunca mais acontecerá este ano. E por fora, ao redor daquelas palavras acetinadas que davam gosto de cheirar e tocar, acabavam as melhores frases: eu cuido disso, tua pele; ainda bem que abandonos passam rápido no teu relógio; o jantar está pronto - peixes do mar lunar. Acaba que os dias vão passando. Rumores vêm de longe a anunciam páginas repletas de coisas a fazer: cortar cabelo; presente do irmão; lavanderia; transplante de coração (mas só metade). E um dia chega o aniversário. Presente morto sobre a cômoda, comprado na loja que mais gostávamos. Um guiso dentro de uma bola. As lembranças agora têm seus próprios sons. As festas continuam. E o ano acaba: noite feliz é a pior música de sempre!!!; assassinatos planejados: fulano A, fulano B, fulano C (esse talvez eu perdoe... talvez). E outro chega: este ano farei tudo diferente, sabe aquelas coisas que costumava escrever sobre você? Ficaram para trás, mortas como um ano encadernado. Novinho em folha o ano branco se apresenta vulgar e triste, volto antigamente e à minha primeira reunião acrescento sem titubear: idem. Recurso que sinaliza o estar das coisas em mim.

Excertos terapêuticos III

"Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo."

Memórias inventadas, A Infância - Manoel de Barros, escrito XII

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

No turno da noite

Agora que o álcool é apenas água e a noite trepida entre a euforia do encontro amigo e o desespero de te ver passar sem dar conta de minha existência, apetece-me vir aqui e escrever as memórias daquele pequeno resto de vida. Uma hora incandescente onde todos os espectros de minha alma estiveram a serviço de minhas sinapses nervosas e estas, como costuma acontecer quando estamos prestes a nascer ou morrer, evocaram estampidos coloridos como os fogos de artifício de nossa primeira noite inteira juntos - os fogos do Círio.

E quando se imagina viver novamente e se tem a impressão de que tudo acaba antes mesmo de começar?

Violinos solando tristes nos palcos que nem frequentamos. Eu imaginando tuas novas proporções femininas e algumas de tuas novas manias antes do sono. Nossa caixa vermelha em teu guarda-roupas. Meus segredos nunca antes imaginados.

À beira do lago, encantei-me com as marrecas que chegam ao outro lado sujas de lama, como Lygia. Queria que chegasses até mim suja e maltrapilha para que eu te pudesse cuidar, como se viesses de um fundo qualquer.

Ainda tem espaço para poemas? Quem cantará a música que te levava tranquila para o outro lado dos dias mais difíceis?

Agora que tudo passou, posso me encontrar com quem habita minha face, sem vergonha ou medo do impossível. Agora que as melodias tomam conta de mim e Marílias e Betânias embalam esta noite de trabalho solitário, posso finalmente pousar meus olhos no silêncio de tuas lembranças. É nessa hora que conto ao meu fiel amigo como deixaria tudo novamente para escutar as tais palavras e encotrar-me preso nos teus artefatos de nada.

Nada há que não retome as nossas conversas na varanda. O cheiro do óleo disel, a fuligem do meio dia, as janelas a espreitar nossas aventuras noturnas. Está tudo aqui. Presente. Como em um filme recém lançado. E estamos eu e tu presentes. Na mesma varanda. Mãos dadas. A perguntar se podemos nos gostar mais, se podemos viver mais um para o outro. Como se não houvesse a realidade de nossa derrota, como se fosse possível nunca ter deixado aquele adeus.

Excertos terapêuticos II

"Têm sido assim meus dias. Sou mais feliz que 97,6% da humanidade, nas contas do professor Schianberg. Faço parte de uma ínfima minoria, integrada por monges trapistas, alguns matemáticos, noviças abobadas e uns poucos artistas, gente conservada na calda da mansidão à custa de poesia ou barbitúricos. Um clube de dementes de categorias variadas, malucos de diversos calibres. Gente esquista, que vive alheia nas frestas da realidade. Só assim conseguem entregar-se por inteiro àquilo que consagraram como objeto de culto e devoção. Para viver num estado de excitação constante, confinados num território particular, incandescente, vedado aos demais. Uma reserva de sonho contra tudo que não é doce, sutil ou sereno. É o mais próximo da felicidade que podemos experimentar, sustenta Schianberg.
Não sei que nome você daria a isso.
Bem, não importa muito, chame do que quiser.
Eu chamo de amor."

Eu recebria as piores notícias dos seus lindos lábios - Marçal Aquino, p. 229

Excertos terapêuticos I

"As almas existem. Quanto mais nos enterram no corpo, quanto mais nos imaginaram no pensamento, mais no nosso nome, mas só o nome, se tornou uma palavra corrente, cada vez mais evocada, sempre que a vida se mostra incompleta.

Não há nada debaixo do comportamento, excepto as razões que se vão arranjando para fazer as coisas. A ansiedade, natural, é combatida ferozmente, como se a esperança fosse uma doença."

A Vida Inteira - Miguel Esteves Cardoso, p.189