segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Micro-romance XV (ou “não se retornam os heróis”)


O tiro veio não se sabe de onde, mas lhe acabou a vida no mesmo instante em que o estampido embaralhou a gente que lhe arremedava os gritos de ordem no centro da praça. Fim. A cara da revolução estava morta. As pessoas ao redor corriam sem paradeiro, entretanto, estranhamente, em silêncio depois de uns breves minutos. Tudo cheirava a pólvora e desespero. E, quem sabe, a certezas. A revolução de tenra idade acabou às vinte e duas horas de um dia chuvoso, com a morte por assassinato de Cardinas Alverde, o romântico que inspirado por canções, panfletos e pelo manual do guerrilheiro urbano de Marighela, sacudiu o pequeníssimo município do Grão, anos atrás. Eu era apenas uma criança. Certamente não o vi cair, não estava nos protestos que ele comandou e não conheço a cidade inflamada e vicejante que era transitada por artistas, intelectuais e pessoas de aqui e acolá que adoravam vir ao Grão ver o rio e as mangueiras, assim como saber as novidades da vanguarda revolucionária multiplicadas no coração da floresta. Cresci com essa história contada às vezes com glórias, às vezes com ódio, mas sempre com boas doses de lirismo e até saudade. O que ficou de Alverde? Um misto de sentimento de liberdade e coragem – entrementes a sensação de que a coragem sem um plano cheira mais à inconsequência, um viço de anos bons e vida farta além da certeza estranha de que nada dura e a relatividade é mesmo um conceito muito mais próximo de nós do que sequer supomos. Hoje as coisas andam por si mesmas. Não há mais estado de exceção, apesar de achar que as exceções que o estado abriu, tornaram-no mesmo o monstro do iluminismo e mais o palhaço dos programas infantis de uma infância já quase esquecida. A liberdade é proclamada em camisas estampadas com frases feitas e ícones do agora mercantilismo revolucionário. Nenhuma rima sobre Cardinas e seus seguidores, nenhuma música de protesto sobre seu suposto legado. Ninguém fala mais de sua morte. Ao pó voltou. Aliás, ninguém fala nada as mortes diárias de inocentes na guerra não declarada de uma cidade no fim do mundo, no limite de seu tempo. E todas as vezes que eu passo pela Praça da República, lugar da revolução e da morte do herói me vem potente o sopro da sabedoria dos tempos... O herói foi aquele que não teve tempo de correr. O que mais teria feito aquele revolucionário se tivesse corrido? E morto, de que nos serve a figura do herói? J.M.N.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Notas sobre um certo tipo de amor I

O amor me beijou e teve desde muito cedo. Não ficou em tantas ocasiões. Não me deixou em tantas outras. Como um suor, uma carcaça, acomodou-se sobre a pele e ora regula e tempera, ora me pesa e impede os passos. Olho-o como fosse o ponto fino no fundo de binóculo ao contrário. Que de tão perto, mais parece um ponto cardinal na distância do horizonte. O amor sabe a gerânios. E sabe igualmente a espinhos sobre minha pele. Perfaz minhas saudades, atina minhas faltas. Encobre minhas distâncias e ao mesmo tempo as denuncia. O amor tem a chave para minha tristeza e a ama com a febre de um primeiro. Deixa marcas, mete facas e transmuta felicidade em espera, beleza em traste. O amor que me acolhe é completo. Como os deuses pagãos de antigamente. Cuja bondade tanto ampliava quanto mordia. E aos mortais, feridos, esperando ir, só restava amar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Sem o mundo inteiro

Hoje agradeço ao tempo, agradeço às quedas, às pontes sobre as quais andei e que ataram os lugares de onde vinha e para onde eu ia, mesmo sem destino certo. Hoje eu agradeço ao menor reconhecimento de minha existência, como a deslumbrante história do amanhecer em meus braços. A pele arrastada na aurora, expandindo, movendo-se e me dando um dia a mais.

Hoje é a simplicidade de começar e acabar as coisas o que me comove. Me engulha e enriquece. A simples fechadura trancada e a porta envernizada com minhas próprias mãos são os troféus. Finalmente minha parede azul para acalmar o sono e a forma de pão caseiro para que eu cozinhe trigo em casa e possa, como o poeta antes de mim, ofertar meu pão ao vizinho.
Hoje o que é dourado apenas brilha, o que é de Marte é menos espantoso e as novidades cabem dentro dos cinquenta centavos, no troco do ônibus. A menina que me pede a quantia para me dar um sorriso e corre num abraço que vale mais que mil palavras. Uma heroína imperdível na esquina dura da cidade. Essas coisas de vida sem sentido e que estão por todo o canto. Talvez, justamente, por serem simples, andam tão esquecidas.

Hoje, portanto, eu acho que sei quem sou. Dormito depois de amar. Acordo sem abrir os olhos e chego aos lugares entre os últimos e os primeiros. Apenas mais um. Apenas chegado. Cada marca de ferida é uma corda. Cada parte de mim um instrumento. Toco meus rasgos e componho a melodia do meu tempo. Sem mais querer adotá-lo como único. Sem mais querer engolir o mundo inteiro. J.M.N.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

à criança que me foi

"A criança compreende intuitivamente que,
embora essas histórias sejam irreais,
elas não são falsas ..."
Bruno Bettelheim – Os usos do encantamento
 

Sinto muito não estar ai para um monte de coisas. Sinto muito mesmo. Disseram-me que não se começa um agradecimento com desculpas. Mas sou assim, começo por onde é o contrário e isso me apraz. Igualzinho como te aprazia mil dias atrás dizer que amavas o que era impossível de amar – como a vontade dos outros de crescer e mudar. E isso que passo a alinhar, realmente é a gratidão que sinto e pura certeza de que me entendes. Eu que te se sou depois de nossas infâncias agradeço imensamente tua vinda antecipada para andar meus passos, para chorar de tristeza quando acabava o natal ou quando nós partimos para viver vidas distantes um ao lado do outro. Agradeço que não me abandones agora, pois mais do que sempre preciso saber, com certeza fulminante, que não estou sozinho no mundo que não estou sozinho em mim mesmo. A ti que me foste dedico meus beijos mais emotivos, minha lágrima mais demorada e as respostas de tudo quanto não me deram. Peço-te: fica! Fica para sempre. Fica nesse ir e vir de anos e aparências com os quais me renovas e feres às vezes, pois nem sempre estás pronta para ser afável ou quietinha e denuncias minha imaturidade cruciante com bater de pernas e vícios sem fim. Chora comigo essa manhã que ainda descende das manhãs pertencidas, no quintal da Alcindo, nos braços de Dadá. Devora como ao pão rasgado da merenda esse meu medo de morrer só e não saber se inventei direito a minha máquina de defender o peito contra o mundo. Sou eu pedindo. Como rezando ao santo anjo do senhor. Que aprendi para enfeitar o sorriso dela e permitir que eu fosse menos estranho, menos por fora do que se acreditava naquela casa. Estás sempre comigo. Calçando as plumas da felicidade ou o vidro estilhaçado da tristeza. Foste por ai, ao dobro de lugares que te permitiram e soubeste sempre voltar e contar como foi, mesmo quando ninguém queria ouvir. Essa tua liberdade me enleva e fulmina ao mesmo tempo. E agora que a Terra parece ter parado um instante, depois das estações invernais da desistência, eu te preciso mais uma vez e talvez mais do que nunca. Importa saberes que não desisti, mas quase esqueço o rumo por causa do peso desmedido sobre meus ombros. A bagagem crua que arrasto desde sempre. Mais uma vez: perdoa-me por não estar ai em tantas ocasiões. A verdade é que crescer é mais inútil do que eu já sabia, mas não posso voltar. Então, por causa dessa tua compaixão infinita, abre a janela da tua casa e me espera. Salto pra dentro do teu esconderijo e serei o que quiseres. Mesmo que seja o bandido dos teus jogos, o prisioneiro de tuas sentenças, mesmo que queiras um irmão com quem crescer e dialogar. Parece que agora é que finalmente estou pronto. Que as palavras soaram para além de seus enigmas. E eu espero sinceramente. Espero não ser tarde demais. J.M.N.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Cartas a ninguém (22.09.15 – 03:51 a.m.)

Querida,

Hoje acordei às duas. No meio da noite. No meio do nada que sabes vir com a solidão noturna. Acordei com a sensação de que tinha ido embora. Não morrido, simplesmente ido. E estava numa cama vazia, num hotel barato talvez. Longe, muito longe do que hoje é a minha vida. E lá, nesse tempo-espaço alhures te encontrei. Queria conversar. Saber se estavas bem antes mesmo de te contar que eu não estou. Queria começar as nossas falas, ao menos uma vez. A luz da lua saboreava meu peito. Via meus batimentos sob o lençol, peito desmedido. Não podia me mexer. Essa sensação de distância e quase segurança esfumou-se de pronto com os tiques do relógio soando cíclicos ao meu redor. O tempo medido me apavora. O medo aumentou quando pensei em tudo o que teria de fazer pela manhã, no trabalho. Já não sei como são os dias sem metas, planos e organogramas. Trabalho numa fábrica no fim do meu próprio mundo. Ontem ouvi uma amiga muito querida dizer que eu era um talento perdido fora da academia e isso doeu muito mais do que o pré-infarto de janeiro. Freud, Poulantzas, Pound, Marx e todos os grandes me dão uma saudade imensa. Veja só! Saudade dos mortos... Não é bem isso. Saudade de substâncias que não acabem numa máquina extrusora qualquer (aliás, extrusão é o processo de saída forçada, expulsão que um produto sofre na linha de produção). Ridículos esses termos átonos e suas definições de engenharia, métricas e modelos cuja estética encarcera a mente, os dias, o resultado de qualquer trabalho. E ai me deu vontade de chorar. Digo chorar mesmo, como quem foi abandonado no mar. Isso tudo no meio da noite, quando tudo é pior e mais medonho. Quando toda a esperança seca entre o desejo de dormir e o possível esquecimento que virá com amarelo do sol. E não dormi mais. Pelo menos consegui me mexer. Tomei água e esperei o despertador fazer seu trabalho repetitivo. Às cinco e vinte da manhã levantei e o peso de não me ter parece que ganhou coragem. Subiu-me até as faces e quando me olhei para os cuidados matinais tive um pouco de vergonha. Quem sou não sei mais. Talvez o Chaplin de tempos modernos apertando parafusos alheios, talvez o boi na fila do abate. Um urro, uma lágrima tardia numa manhã em que a vontade de correr o mundo domina até mesmo a simples decisão de vestir minhas calças. E tinha esse sentimento de que não estava mais aqui, como te disse no início, entrementes preso ao fato de estar. E coloquei as roupas, triste e envergonhado por constatar que estava indo no mesmo rumo. Fazendo a mesma estúpida coisa de todas as últimas novecentas e tantas manhãs. Pensando em voltar a dormir por puro enfado ou atirar nos transeuntes que perguntam se ando feliz. Ponho a chave no tambor da fechadura. O clique é como uma arma engatilhando e quando saio de casa uma luz me cega. Nenhum corredor à frente. Não enxergo os elevadores de todo dia em frente à minha porta. O chão some e eu caio num vazio sem fim. De novo o susto. Minha apneia noturna me chama à vida. Estranho isso de reviver justamente quando o ar me falta. Meu susto é que tudo ao redor era tal e qual acabava de ocorrer. Foi tudo um sonho. Os próximos minutos me renderam o mesmo pânico de antes de pensar em você e na rotina estéril que logo me alcançaria. Levantei-me o mais rápido possível e comecei a escrever essas linhas. Queria que soubesses que o final ainda não ocorreu ou eu ainda não tenho suficientes palavras para terminar. Então... Mais uma carta. Foi isso o que aconteceu esta madrugada. E no fim, queria mesmo que estivesses lá para dizer calma! Foi só um sonho ruim, talvez assim a rotina fosse menos fictícia e meus sonhos, quem sabe, pudessem enfim me levar embora.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Despertar-me

Para Rita

Hoje acordei com a nudez perfumada dela. Zanzava pelo quarto com seus pés de pluma. Chamou-me atenção aquele cheiro, aquela presença silenciosa e intensa dentro e em torno de mim. Eu que tive a primeira noite de sono completa desde muito tempo, acordei com a invasão daquele ser. Os móveis, os lençóis, a nova cor de nossas paredes – tudo vivo e cintilante. Resposta ao cinza que sempre tenho comigo. Ela ia e vinha por todos os lados. Fluida e acolhedora como feita pelos deuses de sua ilha. Era mais que o corpo e o cheiro. Era como se toda uma cidade estivesse sendo parida na minha manhã. Por dentro. Por todos os cantos – espaço e tempo desprevenidos, recebendo-a inteiramente. De tão viva e movimentada, com suas características infinitamente femininas e potentes. Revirou-me. Minhas veias, meus sistemas, minhas memórias e requisitos. Tudo posto nela. A seu serviço. Sem sono, desperto, com muitas coisas que fazer no dia de trabalho e mesmo assim, cinco minutos eternos sentindo-a num calor de manhã recém-nascida, cujo centro pulsante estava em meu peito, mas não me pertencia. Bombeava meu sangue e me aquecia deixando vestígios intensos e famintos. A presença dela. Toda sua anatomia e espírito dançando silentes em tarefas do despertar. Pentear o cabelo, espalhar o creme dos pés à cabeça, pintar-se, estar perfeita e me deixar esta ferida muito vermelha e funda que é amá-la. Sempre ela. A conclusão desta breve eternidade celebrada: não me tenho mais. Não preciso ter. Ela me acordou e elevou-me ao domo do mundo como se seus movimentos e tiques fossem uma sinfonia de antigamente que só é reproduzida por meu desejo. Só por estar ela me imensa. E eu sou dela sem nenhuma razão. Apenas sou. J.M.N.

domingo, 19 de julho de 2015

O homem que se achava Napoleão – Laure Murat


“Se os doentes às vezes falaram, não se registrou suficientemente o que eles disseram”. Em 1845, o psiquiatra francês Moreau de Tours, discípulo de Esquirol, fazia a confissão de um silêncio imposto aos doentes mentais dos hospícios franceses. Imposição que, ao longo da história da loucura, se renova e espalha às mais distantes paisagens a se interpor insistentemente entre o médico e o paciente. Laure Murat, se apropriando do ferramental de Foucault, adentrou e se deixou invadir pelos arquivos de quatro hospitais franceses: Bicêtre, Salpêtriére, Sainte-Anne e Charenton. Locais onde loucos e inimigos do estado eram trancafiados e silenciados. Locais onde os murmúrios e os gemidos dos doentes esperaram por uma decodificação.

Lá, em meio à frieza e ao laconismo do registro médico, Murat revela que o talento de escritora parece concorrer em pé de igualdade com a competência de historiadora. Nas páginas frágeis e abundantes descobre pérolas que só a loucura seria capaz de nos presentear. “Ela viu o sol cair aos seus pés”, registra o alienista. “Pergunto-lhe se está doente, ele me responde: ‘De amor’”. Mas o livro fala de como as vozes que vem de fora dos muros dos hospícios influenciam os fantasmas que vagam lá dentro. A autora faz um recorte do período compreendido entre 1789 e 1871, ou melhor, entre a revolução francesa e a comuna de Paris. A pergunta que guia a pesquisa é: como se delira a história?
Sim, é possível contar a história da humanidade pelos delírios dos loucos, assim como é possível flagrar a loucura mudando os rumos da história. Esse livro encontra não só a história na loucura, mas também a loucura na história.

A caricatura do homem que se achava napoleão como a mais potente imagem do louco com manias de grandeza – ou de monomania orgulhosa, como definiam os alienistas – começou a ser forjada em 1840 quando chegaram a França as cinzas do imperador que, não tendo a realeza no sangue, tomou o trono para si, tornando-se a encarnação do poder absoluto e acessível a qualquer sonhador mais ambicioso. Mas o que diferencia Napoleão desses seres que pensam ser ele? Apenas a originalidade? Talvez. É certo que o próprio Napoleão tinha visões de uma estrela que guiava suas conquistas e sua ambição poderia ser considerada desmedida pela maior parte os franceses. Enfim, o psiquiatra é também um sujeito atravessado pelo seu tempo.

E por causa e consequência desse atravessamento, a psiquiatria, desde os seus princípios até hoje, serviu como instrumento de controle do poder vigente. A doença amiúde faz do médico um agente da ordem pública. Drapetomania foi o nome dado pelo Dr. Samuel A. Cartwright à doença cujo único sintoma era o desejo incontrolável de ganhar a liberdade, muito comum entre os escravos negros do Sul dos Estados Unidos. O que dizer das mães de desaparecidos pela ditadura argentina que foram chamadas de “Loucas” da praça de Maio? Lembro que a Associação Americana de Psiquiatria incluiu, em 1952, a homossexualidade no rol dos transtornos mentais do seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) retirando-a apenas em 1973 após inúmeras pesquisas que provaram o óbvio, que a classificação refletia apenas normas estabelecidas socialmente. Temos ainda o caso da maconha, incluída na lista de drogas mais perigosas do mundo, sem nunca ter matado ninguém. Os exemplos surgem todos os dias e vindo de todos os lugares.

O fato é que história e loucura se afetam em entrelaçamentos que quase nunca se mostram favoráveis aos loucos. E não é preciso ir muito longe para confirmar a tese de O Homem que Achava Napoleão. Nos locais de reunião de moradores de rua da cidade onde moro, Parauapebas, frequentemente sou abordado por um senhor que tece uma intrincada biografia pessoal que prova que ele recebeu a serra dos Carajás como herança e que a Vale, através do seu poder financeiro e político, lhe tomou para explorar o minério de ferro escondido em seu subsolo. Ao passo que os loucos remanescentes em Serra Pelada deliram pepitas de ouro de tamanhos colossais.  Os delírios paranoicos dos moradores da zona rural do sudeste do estado do Pará estão quase todos relacionados à luta de terras. Todos eles são submetidos às novas formas de silenciamento da loucura.


Se no século XVIII o tratamento moral de Pinel fez os cadeados saltarem para dentro do louco em forma de disciplina e normatização, na contemporaneidade esse controle rígido e implacável, ainda confundido com tratamento, fez dos remédios seus veículos preferidos, e muitas vezes os únicos. Quatro séculos nos separam de Pinel e Esquirol. Nesse tempo apenas as formas de não ouvir mudaram. As histórias singulares ainda encontram trincheiras na psicanálise e em outras formas de escuta do desejo. Lamentavelmente, estas são forças de resistência a um movimento de pressa e uniformização. O livro de Murat torna-se assim um aviso dados por vozes distantes no tempo e no espaço, porém tão atuais. WDC

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Quando vier

Um dia quando quiseres vem e me toma. Não por apenas uns momentos como tem sido até aqui. Toma-me definitivamente. Leva tudo quanto eu tiver no momento. As roupas, as páginas, as letrinhas perdidas entre meu choro. Quando vieres não faça barulho para não assustar os brincantes. Não, não será uma festa. Será o mundo ele mesmo girando. Será esse rebotalho de guerras e farsas gritando de medo por tudo que todos fazem uns com os outros. Chega como uma pluma para que só o vento da tarde te denuncie e vejamos eu e os demais estúpidos tua chegada leve, teu flutuar tão fino. Quando tomares a decisão de vir passe na borda mundo e cura a tensão do tempo com uma antiga canção sem refrãos. Uma que diga várias verdades e não prometa nada além dos acordes cadentes e íntimos que mudam a ira para o amor e deixam insensatos todos os dedos. Desalinhados. Incorruptíveis. Buscando nada mais que o toque e a sensação de pele nascendo, tornando táctil todo o corpo de uma só vez. Faz esse minuto universal de sentidos. Tirando-me do mundo na mesma proporção em que o mundo se retira e fica em toda a gente. Faz isso por mim. Traz uma guirlanda e os bolinhos de tudo que só minha avó sabia fazer. Pensando bem, vem mais rápido que a luz e a conta dos meus pecados. Já devo a eternidade pra tanta gente que nem compensa descontar as bondades miúdas que eu tenha feito por ai. Vem para que eu possa contar como é existir desde antes de pisar no mundo. Desde que o tema da noite era a escuridão confusa sem leste ou oeste. Eu que juro ter visto a estrela primeira apontar o rumo de tanta gente, que afirmo sem restrições ter criado a felicidade e a ternura. Vem e me leva para contar que de tudo o mais bem vivido, de todas as comidas e cheiros e visões que eu tive nesta e em outras tantas vidas, nenhuma supera em verdade ou emoção a figura de um homem sozinho, fitando as rugas e o sorriso cansado diante do espelho. Sabendo ou não sabendo quem é esse homem fala consigo mesmo e só escuta que está sozinho e internado em si mesmo. Como se o corpo fosse uma cela e o pensamento um mero visitante da razão. Quando vieres quero te contar em primeiro lugar como é ver dentro da gente e descobrir que mesmo não tendo estado em todos os lugares, todos os lugares cabem na gente e que, afinal, o infinito pode ser cada manhã. J.M.N.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Esse tempo que é depois

Hoje é depois de nós. Quem sabe o que vai ser? Uma benesse, uma desgraça. Polainas e memórias espalhadas pelos porta-retratos. Tudo fora de ordem, porque hoje é depois do que fomos. E a bagunça oriunda desse simples fato é como uma guerra recém-acabada no meu coração. Nem presente nem passado. Apenas derrota e sangue em todo lugar. Estamos dentro da garrafa? Ou sou apenas eu me endereçando errado mais uma vez? Tiro por mim o que eu queria que sentisses e nessa, vais conseguindo ser mais tu. Do que eu. O certo é que o dia raia, a morte se achega, as coisas são como são e eu quero tudo de volta. No rastilho do que acendemos. A náusea, a fedentina de nossas brigas. O gozo. O Cuspe. O choro. Por tudo e todos com quem acabamos eu quero a honra de poder dizer mais uma vez o teu poema em voz alta. E acabar cansado e tonto em meio às rimas. Quero a tralha toda que juntamos. Especialmente nós dois. Hoje é mais um dia do que não cometemos. Estamos ilesos? Vai ver que passa. A hora passa. A ferida passa. A passa (uva) é comida e adoça um pouco minha boca com saudades. Mas isso não. É tudo teu. E foste minha. Foi tudo nosso. Confusões. E digo isso passando a escritura do que não tenho. Meu destesouro. Minha arrogância em achar que somaria muito mais pontos se te tornasse o centro do meu universo. Rodavas sobre um eixo que eu não compreendia. E não podia compreender, pois minha astronomia desajeitada te entendia unicamente como estrela. Um corpo celeste, cheio de luz, entrementes desabitado. Mas acontece que uma imensidão de espécies morava em ti. Fui dos últimos, o primeiro. Antes de entrar em colapso. Hoje é depois de nós, eu aviso. Que mesmo deselegante, mesmo tosquiado, depois que me soltarem pelas infrações acumuladas, eu volto. Para te tocar primeiro os seios em manga, as mais rosadas coxas, a densidade macia de teu vértice castanho e ralo. Volto bandido e indigente procurando a cura pro que restou. Depois de nós é o catso! Tudo ainda me acomete. A perfeição da dança naquela chuva de dois dias. Tua rosa tatuada. Andar sob o céu de quatro cidades com teus braços me guiando. Anda tudo muito tramado, diminuto. Quieto feito um quarto sem pessoas ou som. Anda tudo ardendo como as questões que não respondemos e no meio de tudo, meus anos se passando e as linhas acumulando na mesma página. Porque não sou desses de querer de menos e pedir permissão. Vou-me aproximando com essas confissões e cartas. Fincadas na palidez de um dia sem nós dois. Iníquo, anestesiado. Sem nervos fervilhantes ou retesados. Inferno mesmo é não sentir mais dor alguma. J.M.N.

Para ler escutando...

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Lugar

Isso tudo me dói imenso. Primeiro a falta que fazes. Segundo a noite que não acabou mais. Ando escuro. Vestido em pijamas e indiferença. Outro dia vi um velho juntando cacos na rua. Podiam ser eu – digo, os cacos. Nunca mais Paulo Cesar Pinheiro soou igual. O costume é a pedra no caminho. Esses dias têm cara de não vividos. A casa ainda banca a valente. Ninguém vendeu. Ninguém quis morar. Desabitados nós dois. Paredes e órgãos abarrotados de ausência. No jornal só notícias violentas. Não costumávamos assistir aos canais grotescos. Como não fazíamos festa para quem não tinha ímpeto, um quê de loucura que fosse. Não tínhamos a obrigação de dizer, simplesmente. Na família vai tudo bem. Meu pai emagreceu. Vi teu pai dia desses. Fino e austero como sempre. Comprando pães. E me perguntei: como não toquei na mão desse homem? Como o evitei? Prelúdio do que fomos no fim? Debaixo dos livros mudados tantas vezes de lugar, a mesma poeira que combatias vivamente. O indicador de que estou ficando pior é a quantidade. Os romances, os livros de poesia, as biografias extensas de tantos personagens ilustres e destrutivos. Um dia escrevo a tua. Passearei na desmesura de sentir mais uma vez. A onda titânica do que nos acontecia em presença um do outro. O testemunho de fé sobre em coisas corpóreas. A ira. A saliva. A ferida. A torção na espinha. Tatuado no meu corpo o solitário que sou. Nas minhas páginas fingidas, a manhã em que não voltaste. O relógio despertando, maldita cinco da matina. Não sei mais fazer versos. Não sei mais entender álgebra e astronomia. Tudo me enfada. Tudo me desgasta. Não fossem meus exames de sangue, radiografias, punções lombares, não me sabia vivo. Não me sabia. Nem o porquê dessas palavras. Assim, dessabido. Corro o risco de viver mais para mim. E mesmo lembrando, não tenho saudades. Penso em nós aprendendo. Ídolos agora só os enterrados e o velho catador de cacos lá rua. Lúcio Cardoso certamente me influencia. E, esquecidas, quaisquer possibilidades de comparação também eu assassino casas. Não preciso de alpendres ou canteiros. Meus olhos estão em outro lugar. Onde não estás. E por isso mesmo, por esta única razão, posso falar em ti como um detalhe, usar tua pessoa inominável para escrever algumas linhas. Como fosse um lugar onde se formam os destinos de alguns ditos. E só. Esvaziar-me de um dia duro e mecânico. Percebo, enfim, que sou inteiramente meu. Que sou eu mesmo o meu lugar. J.M.N.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Demasiado

Tenho essa tendência ao desperdício e ando com uma urna de saudades debaixo do braço. Incineradas as cenas e casos de passados recentes e remotos. Vou-me instruindo em minha própria história, uma certa autonomia. Saí de uma depressão quando comecei a bancar minha autocrítica. Não que tenha sido um paraíso. Reconheci que sou indevido e simples. Indivíduo. Não sei reinar ou governar quem quer que seja. Não me seriam dados castelos ou riquezas, pois não sou feito da coisa torta que faz os que muito têm. Mas desperdiço. A demasia é o traço das conquistas, a semente dos muitos baixos que vivi. E minha falta é esta. Deixar sobras e sorrisos. Deixar mapas, apelos e a guarnição da refeição devolvida todos os dias. Tenho mais do que mereço e não por humildade. Mas pela irrefletida conquista desde sempre. O que quero tenho. Afinal, um homem do meu tempo, senhorzinho solitário de infância reprimida. Tudo me davam, tudo quanto mais, queria. Vou deixando marcas. As marcas ficam bem em meus resíduos. Arranhões aos imprudentes, nacos de minha carne aos mais ousados. E corro em volta da casa adormecida. Da virtude que nuca quis, daquela que usaram para me enganar. Por segurança ou pertinácia. Quero estar perto dos meus, mas com muros entre nós que a proximidade nos causa efeitos demasiado deletérios. Trocamos notas por sobre o muro, que nem no romance do poema. Mas é só. Meus antepassados são meus órfãos, abandono às avessas. Deixei de buscar de onde vim e certamente não quero saber para onde vou. Esse é mais um dos meus excessos. E assim, no presente, estou sempre no meio de justificativas e benefícios. Algo feito de marcas e pronto para novidades. Sempre. J.M.N.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Definição

Aparece-me no sono. Um vulto, uma presença. Enquanto a obrigatoriedade da vida transita e apenas a respiração é certa, ou quase. Flutua no argento da lua, nas camadas do tempo. Com algumas doses de insônia e desrazão. Essa fibra que faz meu pai decorar muitas páginas e se corresponder com a gente declarando seu amor. É uma coisa, latente. Um fungo, quem sabe, uma erupção de pele. Essa marca tão funda me fica nos olhos, transbordados de alguma forma quando eu a digo. Estou no carro dirigindo preocupações quando ela chega e me faz ri. É fêmea, frutífera, uma lança quando em vez. Alcança o pátio da antiga casa e farfalha indiscernível, um garimpo de vozes dentro da saudade. Aparece-me na estrada. No meio do rio. Quando sigo sem destino, fugindo dela e de minhas responsabilidades. Quando sou mais eu e menos mundo. Mais próximo do eco das galáxias e das desimportâncias dos sapos, das corujas e sua literatura de ave. Liga-me ao que é mais real. O corte pelo acidente, a árvore que foi decepada, a história com mais versões que vencedores. Mete-me em curto com a energia que me trespassa e anima. A poesia me funde com tudo de uma vez. Povoa, projeta, vitupera e escarra. Põe palavras em minha boca que é sua função. Fá-las escorrer para o branco da página, que é seu vício insuperável e me corrige das insuficiências, dos desesperos por que passo em ser apenas um homem diante de um mundo de homens trocando-se por patacas ou minerais. Mas, sobretudo, não me deixa no desalento do quarto, surrado com dor de cabeça pelo que não se pode voltar. A poesia me viola. Fecunda. Abre as juntas e os alicerces e refaz o imponderável. É do seu impossível que me alimento. Torna-se qualquer coisa. Qualquer idade. É esse vento que sinto agora perto do mar. É o beijo desesperado da partida. São meus avós sozinhos no natal de 92. São as pernas em falsetes de quem se esforça às muletas. É o lítio, a venlafaxina, os benzodiazepínicos dos quais saltei. Promove litígios. Fez-me perder a mulher certa. Deu-me outra possível. Posso fatiá-la, tê-la em redondilhas ou canções. É a língua que me opera e induz. Lida, corpo, demência. É tudo de exceção no que não tenho. Tudo quanto posso quando a dor é demais. J.M.N.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Repetido


Finalmente a noite chega e quero dizer tudo de novo. Fazer tudo de novo. Encontrá-la ao pé da escada de seu edifício, leva-la às compras, encontrar coisas em comum nas nossas falas. Mas ela não está. Não há sinal de que esteve. A não ser tudo o que me vem em golfadas de um lugar qualquer da memória. E é como um velho disco arranhado que na melhor faixa, estanca as vozes gravadas e repete infinitamente sílabas sem sentido. Pensar nisso me causa ao mesmo tempo satisfação e incompletude. Escrevo sobre essas coisas. Com a mesma tristeza das descobertas perto do fim. As pequenas mentiras, a negação de carinho, seu estojo de maquiagem perdendo itens dia após dia. Era mais do que a beleza indo embora. Era a ausência acontecendo e se encarregando de me ensinar a ser só de uma vez por todas. Um espaço vago, sendo preenchido pelo que não havia mais e meu sistema nervoso cumprindo a saga de criar memórias e distorções sobre o que fomos. Solidão tornando-se solidão. Até que eu mesmo me despedisse da saudade e não restasse mais nada. A não ser as palavras que vêm e formam frases e as frases que juntas contam histórias e o sentido das histórias que vem, mas se despede antes se cumprir. J.M.N.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Em voz baixa

Enquanto acordo e as coisas ao redor ainda repousam e a pluma do quase dia flutua, nascem as melhores memórias. Vão preenchendo os pequenos vazios. Alvorada acontece e o degelo da ansiedade ocorre. Liquefaz-se a presunção de existir sempre demais, sempre ao extremo. O que resta do gelo absorvido pela lentidão do despertar é esse fóssil tristíssimo de forma indefinida, em cujas estrias e sulcos esta certificada a saudade por tudo o que fomos. Uma espécie de dulcíssima bebida apodera-se dos lábios. Volto a sentir os gostos, a tatear a pena, a ouvir quem suspira ainda manso ao meu lado. As coisas tomam forma. E finalmente vejo o dia. É como um grande espelho limpíssimo que me encima. Sou, do grego arcaico, ídolo. Reflexo sem circunferência. Sou o que sou de manhã bem cedo. Parto para o dia cheio dos sons internos. As melodias dos clássicos, as odes de Homero, ancestrais reinando ensandecidos seus infernos e, claro, a paixão natural pelo que não é definido, nem puro, nem pouco sofrido. A cadência das notas vai se formando. Ao fundo o som do que vivo é algo entre indie e Rachmaninov, pouco sentido, muita paixão. Fica de tudo esse rastro de bonomia e vinho tinto. As pernas morenas que me procuram para proteção. Fica na carne a véspera do que não foi dito e trêmula, a posição de nascer acontece entre linhas. De manhã, bem cedo, quando todos dormem e ninguém se importou com meus erros no trânsito ou meus e-mails e telefonemas, converso calmamente com minha história, que dança vestida de vermelho, num alpendre perto do sonho, com as mãos na cintura, envolvente. Sabendo a antiguidade, palavras e pouca vergonha do que viveu. J.M.N.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Em voz alta

Tirante o amargo na língua, em minhas lembranças, a hora na qual morremos sabe ao azul dos dias sem nuvens, às costas ibéricas se aproximando quando fugimos do destino. A liberdade, o gozo, a futilidade necessária de pequenas compras no mercado e o cetim do leito emprestado ao descanso. No lugar em que me encontro festejo, entre as curvas novas de amor tranquilo, a sensação de estar mais livre de mim. Mais que noutros tempos, ampliado. Há na heresia de certas palavras, na descompostura de certos avanços, a força espantosa das descobertas. E as novidades em casa antiga cheiram a varandas recém-decoradas com móveis de vime estalando sob nós. Há vida em tudo que toco. Na teia de aranha no canto do quarto, na ínfima destreza das mariposas atiçando o vento e as causalidades pelo mundo. Há nascimentos por toda parte. Musgos nas paredes da cabana, rios no vidro das janelas e eu atravessando mais uma vez a sebe, embebido pelas qualidades dos meus amigos, melhores que eu em tudo, inclusive em me amar e manter. Dá essa vontade de seguir riscando, de aventar redondilhas e discernir prosa e poesia pelas manhãs cuidando de delegar-me carinhos e até cuidar do corpo, usar cremes e sentir boas venturas. Acordo assombrado pelo que tenho dentro. Pelo que voltou e pelo que surgiu. Após a chuva de tantos anos e a couraça em torno da pena. Enquanto desenho meu mundo na página sem traços, lembro já ter sido um menino. Agora, enquanto o que escrevo me significa mais uma vez, tenho no tato desses ditos o entendimento nascido na infância – tudo o que quero, posso, desde que eu diga em voz alta. J.M.N.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Quarta de cinzas

A gente sambando passa
Sob a janela de casa
Dá na boca o sal dos anos
Lembranças de festa e milagre
Eu vi no cordão lá de fora
O corpo sangrado da história
Cantada, invertida ou nenhuma
 
Uma negra lindíssima e nua
Nos ombros de homens mascarados
Nada fazendo a muda-la
Nas redes prendendo-a, destino
Deixando suas marcas na pele
Trazendo de volta os suplícios
 
A gente que passa sambando
Sob a janela de casa
Me dá a ilusão da esperança
A alegria do povo de África
Sou parte dos homens nadando
Na corrente da história contada
Quero, entretanto, o silêncio

A história secreta da farra
Quero as cinzas de quarta
A benção da manhã liquefeita
Quero a nua e negra memória
Do que fomos e esquecemos
 
A gente que passou sambando
Trazendo minha história nas veias
Peço as bênçãos aos tais mascarados
Perdoem-me, não os sigo há tempos
Eles que do longe da estrada
Deixaram à porta de casa
O samba de tantas saudades

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Mulher parada mirando o mar (da série “nomes de pinturas”)

Quando viu o braço de mar enchendo fechou os olhos e imaginou que aquela era uma enchente de coisas boas que chegaria até ela. Mais uma vez.

O vento ajudava com a impressão de estar recebendo algo, vindo de um lugar qualquer e que, ainda por cima, mexia com os mínimos lugares de sua pele branca.

Assim, aquela manhã de setembro se lambia de um mar enchendo, escondendo a areia e as dores dela. Deixando a calma de estar em si, e apenas.

De onde ela estava o olhar alcançava três países. Horizontes que habitavam os sonhos de quem a mirava, muito mais que os dela.

Sentiu o domo da noite inflando sobre si. E na mesma posição recebeu a dádiva da tranquilidade noturna, do som das ondas dormentes.

Seu brilho era menor, mas sua presença estava agora acompanhada de pessoas se amando. Todos ao pé de seu corpo, espreitando a vida emocionante dos beijos.

Aliás, muito de seus dias eram assim. Ventosos, de mares se abrindo e fechando e noites nascendo e morrendo sob a eternidade de sua presença e as bocas aliciantes dos amados.

A estatua da mulher desconhecida, em mármore talhada e perfeita, no topo de uma serra d’água, no continente onde tudo começou é essa mansidão de história e significados que pertence ao tempo todos os dias. J.M.N.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Cheiros do tempo I

Nas passagens de ano Virgínia costumava dançar, desligada de si e dos presentes. Girava pela sala cheia, anterior à verdade das coisas. Era quase uma entidade. Sua dança cheirava. Jasmins da noite, rosas e garrafadas. Seus passos dados como pequenos esquemas de conexão com a Terra. Fincavam no chão suas certezas e dores. Ia-se deixando também. Firme, rija em seu transe, ela acertava as contas com o destino. E sonhava. Ela benzia de longe os netos e em especial o primeiro deles, que tinha o nome de seu marido. Ela o benzia com silêncio e dança e essências sutis. Cheiros que se fixaram no centro dele, em suas linhas, nas suas dores, certamente. A lembrança dela, em seus dias de solidão, cheira às festas de fim de ano dentro dele. Então quando ele sente sua falta, volta pelo cheiro do tempo à benção que ela lhe dava em silêncio, em meio à multidão de parentes, vizinhos e agregados. Quem cantava ao fundo era Clara Nunes. É feito uma reza, um ritual [...] parece, a maravilha de aquarela que surgiu. A procissão da memória se arrasta e a proteção acontece só de lembrar. Embebida numa santidade humana e sensorial que cheira como um relicário de sentidos. A presença de Virgínia dançando lhe dá calma. E um cheiro de finais felizes, em pratos de fim de ano, em rezas pela dor do mundo e de todas as pessoas amadas, esperando viver tudo de novo, no ano seguinte. J.M.N.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Para conhecer: Víctor Jara

Víctor Jara era um escritor, professor, poeta e compositor chileno que morreu sob o regime de Pinochet. É dele a letra da belíssima canção Te recuerdo Amanda, libelo da geração de cantantes como Violeta Parra e Mercedes Sosa que a gravou lindamente. Sua produção poética que buscava resistir ao terrível regime ditatorial do Chile alcançou muitas terras distantes. Até o U2, em sua bela One Tree Hill, fala de Jara e sua canção de fogo. Vale à pena conhecer o bardo deste poeta incrível... Com vocês El último poema...
 
El último poema, de Victor Jara
 
(Victor Jara, Estadio Chile, Septiembre 1973)
 
Somos cinco mil
en esta pequeña parte de la ciudad.
Somos cinco mil
¿ Cuántos seremos en total
en las ciudades y en todo el país ?
Solo aqui
diez mil manos siembran
y hacen andar las fabricas.

¡ Cuánta humanidad
con hambre, frio, pánico, dolor,
presión moral, terror y locura !

Seis de los nuestros se perdieron
en el espacio de las estrellas.

Un muerto, un golpeado como jamas creí
se podria golpear a un ser humano.
Los otros cuatro quisieron quitarse todos los temores
uno saltó al vacio,
otro golpeandose la cabeza contra el muro,
pero todos con la mirada fija de la muerte.

¡ Qué espanto causa el rostro del fascismo !
Llevan a cabo sus planes con precisión artera
Sin importarles nada.
La sangre para ellos son medallas.
La matanza es acto de heroismo
¿ Es este el mundo que creaste, dios mio ?
¿Para esto tus siete dias de asombro y trabajo ?
en estas cuatro murallas solo existe un numero
que no progresa,
que lentamente querrá más muerte.

Pero de pronto me golpea la conciencia
y veo esta marea sin latido,
pero con el pulso de las máquinas
y los militares mostrando su rostro de matrona
llena de dulzura.
¿ Y Mexico, Cuba y el mundo ?
¡ Que griten esta ignominia !
Somos diez mil manos menos
que no producen.

¿Cuántos somos en toda la Patria?
La sangre del companero Presidente
golpea más fuerte que bombas y metrallas
Asi golpeará nuestro puño nuevamente

¡Canto que mal me sales
Cuando tengo que cantar espanto!
Espanto como el que vivo
como el que muero, espanto.
De verme entre tanto y tantos
momentos del infinito
en que el silencio y el grito
son las metas de este canto.
Lo que veo nunca vi,
lo que he sentido y que siento
hara brotar el momento...

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Salvação

Na culpa, todas as fomes
Granjeiam frutos e fatalidades
E informam meu corpo
Da iminência da morte
Antecipo o final, em tempo
Escrevo um novo poema
Em suas formas e versos
A poesia me anima, revive
Afasta o sono de para sempre
Mas se abraça com as culpas
E se me salvo é por conta
Do que dói nestas linhas

J.Mattos

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Cartas a ninguém (s/d - tempo qualquer)

Querida,

Escrevo para falar da cidade, quem sabe. Faltam-me as ruas em que andei contigo. Mais que os caminhos, a caminhada. A lua em sua raridade nos amando por sobre. Iluminava. Sinto falta de proteções assim – compartilhamentos – das parcerias noturnas quando éramos infinitos. Escrevo para falar de nós dois, mas sem nos querer ou aniquilar.
 
Apenas lembrando enquanto escrevo. Desenhando os passos dados, tornado distante o desejo e presente a saudade. Transcrevo importâncias mínimas como tua palma tentando fazer nascer um adeus. Depois de tudo. Depois dos gritos e da vergonha. Tento contar as tuas risadas no tempo em que quebra-cabeças e gerânios eram igualmente montados e cultivados como fossem naturais entre tantas coisas artificiais que nos rondavam.

Fazíamos mapas, lembra?

Coletâneas de música em fitas cassete como mais antigamente que nós, fazíamos as orações ao pé da cama imaginando encontrar pessoas boas para nos dar um abraço, acalentar e fazer dormir bem. Por isso eu escrevo também. Para dizer que eu mesmo abandonei a ideia antes do fim. Não por maldade, preguiça ou coisas assim, mas pela vida evocativa das coisas que escrevo.

Essa pulsação que me compele ao fim do mundo. Ao fim de todas as coisas que busquei. Esse defeito íntimo que me enferruja aos poucos e deixa sem saída. Enquanto escrevo essas linhas sobre nosso passado, passo adiante minha história e ao mesmo tempo em que termino as coisas que acabaram definitivamente, componho amanhãs.

E desejo que tudo ocorra de novo. Sempre buscando.

Algumas vezes acontece de não haver perdão, mas estou pronto para viver com isso. O que não suporto, o que realmente tem tirado meu sono e feito as fotografias serem mais afiadas que de costume é isso: não poder sequer te dar um bom dia! Não posso e acho que jamais poderei passar por ti e oferecer um café, pois talvez seja deselegante ou muito ousado. Ou, talvez, porque as coisas que nos fizeram abandonar as mãos um do outro sejam definitivas. Como um tempo passado e o perdão que sou incapaz de pedir.
Sinceramente,
J.Mattos

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Poemas para Lembrar


Figueira da Foz

O mar lambe as lembranças
É a foz da minha saudade
Tenho a imensidão da tua costa
Acenando o que me falta

Coimbra IV

A pedra da vigília se liquefaz
O tempo passa, mas tu não
Estadia que me transforma
Por muitos anos, senão sempre
Estarás em minhas pálpebras

Jerônimos
 
Pessoa – estátua e verbo – jaz
Em sua santidade monumental
Vejo o paço, a pia, rezo no altar
O teu sagrado elucida meu silêncio
Já nem sou um homem que chora
Em minha benção, tua palavra

Santa Clara

De cima do monte
Vigias a cidade
Tuas lágrimas negras
Formulam o Mondego
Por ele descem barcos
Memórias e fados
Santificados

Sintra

Pelas mãos de Margarida fui guiado
Pelas colinas rodopiantes da cidade
No alto, um castelo nos esperava
Vi meu futuro em verde e vermelho
E soube de pronto que para lá voltava
Sem delongas ou medos, entre abraços
À pátria que amei desde aquel’dia

(J.Mattos)

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A densidade do abraço

Dentro de mim congelado o ato irrequieto de estada, pertencimento. Quando farsa, a mola da repulsa se ativa e a coisa agarrada se distancia, dentro da gente acalma tudo quanto maldade. O abraço antigamente tinha sintomas que perduravam.

O tom quente e vermelho do enlace, o arco suave do bater de dedos na espinha de quem estava e a semente plantada pela recolha sensível dentro dos braços. Abraço era unir-se a si mesmo pelo outro, ato purinho de criação da gente. A comunhão perfeita de aceitar-se para se dar integralmente.
Oriundo de um tempo em que o quadrado das águas era sem mapa e na lousa se escrevia a lição de casa, a casa era a antessala do sossego e este último a única inspiração, a entidade nascida no molde dos corpos, transitava nua sob a linha umedecida do afago, da espera, da entrega e das coisas tenras.

De ossos perfurados, estrutura difusa, arquitetado agora em redes virtuais, o abraço definha e se beija noutro espaço. Naquele em que eu e você não somos nós nem somos nossos, despertencidos. Somos de todos e esperamos mais nada. Dentro do abraço de hoje eu curto o que me enjoa, o que se publica, a mostra satírica da liberdade sem dose ou terrenos. O que se expõe, mas não se tem. Liberdade erma.
O abraço foi perdendo os dentes e a loucura boa de dar em qualquer lugar, de ser verde e fundido, agarrado e demorado, quase infinito. Muitas vezes em vazios imensos, muitas vezes sem uma palavra que explique. Porque qualquer lugar agora inexiste e abraço é só uma palavra que ata os membros superiores de pessoas cada vez mais desconhecidas. J.M.N.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Outras coisas sobre o lugar

Coimbra II

A pena torna-se agulha
Fura a veia, e, viciante
Entre palavras me inscreve
No sangue, teu nome

Cabo da Roca

A ponta do mundo, a Roca
Donde partiram meus antigos
Vizinhos de tempo e muda
Patrícios, irmãos pelo mundo
Porto que ainda me chama

Joaquim Matos

Ganhei-te, herói no totem
Máximo ancestral desconhecido
Em casa de minha lembrança
Ileso, permanece aceso
Fábula e ente dentro do nome

Coimbra III

Tua noite em prantos, percorro
Ao som das guitarras tristes
Canto entre as capas pretas
Tudo em mim é antigamente
Como o passado das tuas paredes
Como o cheiro do meu presente

Josés
(publicado originalmente em 2009)

Sou dentre eles o quarto.
Herdeiro inaudito das tramas,
das mansas, das duras. Andanças.
Daquelas em cuja esperança
dobrou-se o acorde dos sins.
Sou, dentre os mesmos, estranho.
Dentre os mortos o enfim.
Nomeado em alcunha extremada
e como versos, rimando as espécies,
repito um nome entrementes findo
e presente,
pois se os corpos extinguiram-se
quase santos,
o nome perdura semente. J.M.N.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Dez Encontros (VII)



Meu Senhor,
         Uma recusa em te concluir nasce e cresce em mim, como as daninhas vidas que rastejam nos nossos confins. Cheguei até aqui com as provisões nas últimas. Cheguei maltrapilho, maltratado pela tua letra. Outro. Agora te miro sem reagir enquanto enfeixas meus medos, meus escuros de dentro, a dizeres de mim no umbigo das tuas mineirizes.
Arranchado nas noites de chuvas madrugosas, te adivinhava chegando carregado dos verdes dos buritizais. Eu que te procurava, sempre. Caçava esse jeito doce de saber que cada palavra é um ouriço, e que são as castanhas de dentro é que fazem as sustanças da gente. Bilé eu me encontrava, frouxo da razão, com juízo desatado, a mente desencostada da lógica – desse jeito eu cria que concederias tudo assim: de beijadas mãos. Me querias pactário; convertido e fanático àquela igrejinha que levantastes com a exatidão da tua mão de jagunço atirador: a mão que nunca forou o coração de um outro jagunço.  
É dificultoso achar as veredas nesse teu sertão. Até os carcarás lá de cima precisam apertar bem os olhinhos de rapina pra medirem a grandeza desses campos. Cheguei aí na tua terra dia desses. Vi Otacílias que se recusam à espera, mas de uma boniteza de roubar todo o ar da gente, e capazes de, só com um olhar lançado, plantar um Saara dentro da nossa boca. Confesso, meu senhor, que, por vontade própria minha, tornei-me teu refém. O meu cárcere são as paisagens dessa guerra alinhavada com bem-quereres e saudades entre jagunços, travessias, resistências contra as seduções do diabo e a procura do Deus que está em tudo, mesmo onde não há.
O meu sangue coalhou nesse desvendar-se nos teus vieses. Foi esse modo de querer fortemente algo que teima em não se dar que se instalou, em mim, como um sesto. Agora sei, dolorosamente, que percorrer tuas páginas é viagem sem volta, sem retrovisores, apenas o vento a alisar os cabelos e engambelar as bússolas. O sertão são as ruas, os prédios, os rios e os campos com castanheiras esturricadas a sustentar tempestades. A guerra é o amar e desamar, fiar e desfiar, abeirar e se jogar quando o medo por fim esbarra nas fustigações do desejo. Eu me lancei na tua maré, a água veio e fez um carinho no meu espinhaço. Encrespou todo o meu dentro. wdc


Além do que não disse

Então será assim – de quando em quando. Conhecidos que se esbarraram nas mesmas ansiedades e amores, sem dizê-los, que fique claro. Amigos com dias marcados. Nossos aniversários, as compras do mês na quitanda próxima de casa. Enquanto fazes as tuas contas no trabalho, eu ando pela nostalgia infinda daquelas conversas. Atrasado, sempre atrasado. Esperando que o rumo do fim do dia me leve ao teu sorriso. Nada mais. Esse é um dos tantos desejos inexplicáveis que floresceram. Não é, a bem dizer, uma espera. Não é a lascívia falando. Mas a confiança de que o destino foi generoso o bastante para juntar nossas expectativas em silêncio. Beleza em suspensão, como as métricas sinfônicas de antigamente. Enquanto eu canto, ficas em silêncio. Enquanto encontro os afazeres diários, tenho sempre na memória o dia em que tiraste minhas dúvidas e provaste por “a” mais “b” que não somos seres intermináveis. Mesmo perdido, amargo, cheio de medos e insatisfações, o riso nos pegava certeiro. Encorpado das muitas coisas que amamos juntos. Eu com minha família, tu com a tua. Criando filhos para o mundo dos outros. Tentando não ser demais com os meninos. E ainda assim, ocupando-nos dos erros mais estúpidos, bem afinados com o que somos – dois mentecaptos taciturnos e esquecidos. Carregados de amores e desolação. Feitos um para o outro nos tantos bancos de praça que não frequentamos. Afinal, temos a certeza de que o abraço, a fraternidade e a quietude de não consumarmos mais do que o olhar é o que deve ser feito. Tuas formas, o canto da tua boca, aquilo que vi e aquilo que fingi ver serão sempre mais do que podíamos e mesmo assim, muito menos do que a matéria que me faz traduzir nos meus diários noturnos o que nunca disse. De vez em quando, ao sabor das horas, esqueço-me. Nesses momentos dá um prazer danado dizer em voz baixa o teu nome. O nome feminino do teu batismo, de um poema que conheci menino. Nome das coisas que não se diz e mesmo assim, as coisas que valem mais que qualquer valor, que qualquer presunção de entrega. J.M.N.

Para ler escutando...

Misread - Kings of Convenience

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Quatro coisas sobre o lugar

Coimbra

Ilha de coisas a me perder
Mirantes, Mondego, milhas
À noite teu canto ainda evoca
Dentro em mim permanecida

Mondego

Nas tuas costas pisei
De pés além e corpo úmido
Rio de curvas quase nulas
Minha casa em Vera Cruz

Chamusca

Viva as amoras em flor
O gosto sumo em sua presença
Escorre dos lábios permanente
A imagem do amor que não veio

Lisboa

Vasta e curva sob meu sonho
Que se arrasta e reedita as cores
Ainda não vim, não deixei Pessoa
Nem dos Jerônimos me despedi

(J.Mattos)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Cegos na plateia

Deram-me o papel principal
Como nos cem atos
Dessa tragédia me deram
As falas, as roupas, os costumes
Tudo me deram para representar
Estou no centro da cena
Um homem entediado e solene
Esperando que morte ou mistério
Me levem para dentro das pedras
Serei um ator mineral
Sem fala, roupas ou credos
Existindo apenas porque o tempo
Concentrou suas contas em mim
Não haverá debulha de medos
Já não conto com a claque gritando
Sou esse imóvel deserto
No centro do palco dançando
Quem verá minhas pernas dormentes?
Quem será a plateia que espera?
Do que já soube um dia,
Dos horários e matinês concorridas
Nada sobrou, nada se diz
E mesmo sozinho, interpretando
A mesma peça, anos a fio
Não deixo a cena nem a fala
Pois, há os cegos me aplaudindo
Que compraram todas as entradas
O homem que interpreto
Não precisa mais ser visto

(J.Mattos)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Lume

O silêncio enciumado grita
Diante do branco anúncio
Tua presença encima escuridões
Atraí os prismas
Refaz a última rima triste
Transforma cor em detalhe
Labareda de uma explosão
A própria descoberta do dia
Dá-me o lume que deslinda
Minha natureza pequena
Minhas horas esquivas
Esteja como pulso ou onda
Em todos os cantos de mim

(J.Mattos)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

LIVRO: Mata! – O Major Curió e as Guerrilhas do Araguaia



Acabo de ler o livro do jornalista Leonencio Nossa, “Mata! – O Major Curió e as Guerrilhas do Araguaia”, editado por Companhia das Letras em 2012. Devo dizer: um livro necessário, bem escrito e com detalhes interessantes sobre os ciclos econômicos do estado, sobretudo, a partir da intervenção militar que culminaria com o extermínio dos guerrilheiros do Araguaia, entre 1972 e 1975. Entretanto, em minha opinião, ainda não é “O” livro sobre o terrível personagem que reinou no sul e sudeste do Pará desde a época da ditadura até recentemente. 
 
Mesmo com imensas qualidades como descrições detalhadas das incríveis, e por vezes surreais, relações entre personagens históricos de todo Brasil e muitas das pessoas que fizeram a história recente do Pará, em especial na região de Curionópolis, El Dourado dos Carajás, Marabá e Parauapebas, senti falta de demonstração e esclarecimento mais firmes sobre os feitos de Sebastião Moura, o terrível Major Curió, enquanto comandante das tropas que dizimaram guerrilheiros, torturaram moradores, obrigaram pessoas a trabalhar como delatores e guias do exército, além de ter comandado com a mesma intransigência espartana da caserna, o garimpo de Serra Pelada, a criação de Curionópolis (uma das muitas excrescências do Brasil contemporâneo) e os levantes que culminaram na criação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
 
O trabalho de Leonencio, que visitou diversas vezes o Pará, seguiu pelos rincões do Brasil muitas pistas sobre a vida de Curió e ainda usa e cita referências de peso da historiografia paraense como o livro Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos Políticos na Província do Pará, de Domingos Raiol, sem dúvida tem o mérito de escrutinar eventos de pouco conhecimento dos paraenses, como a vida dos “formigas” em Serra Pelada, seu sistema social e econômico, o trabalho escravo promovido por famílias tidas como baluartes de nossa sociedade e que enriqueceram às custas da pobreza de muitos imigrantes e colonos na exploração da castanha. No livro, essas figuras tornam-se, muitas vezes, personagens secundários, mas servem de alerta para o fato de não conhecermos nossa história e colocam em perspectiva a história de enriquecimento da elite paraense, cujas origens históricas nada têm de nobre ou lícito.
 
Mata! deve ser lido e estudado e deve servir de base para outros trabalhos, quem sabe da próxima vez, realizados por paraenses, pois isso também salta aos olhos... Assim como o livro de Taís Moraes e Eumano Silva – Operação Araguaia, trata-se de obra de um estrangeiro. Precisamos dedicar mais tempo à nossa própria história, senão, as visões sobre o que é o Pará e a Amazônia serão sempre crônicas de quem passa e não documentos e historiografia local. Faz-se necessário, por tal, relembrar que as pessoas que podem contar e certificar os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia e das diversas insurgências que se seguiram na região do Bico do Papagaio e outros lugares do Norte podem não estar entre nós dentro em breve e, portanto, é urgente adensar os registros e pesquisas sobre o tema.
 
Por fim, mesmo sendo um bom trabalho, o livro de Nossa registra que há muitos arquivos pessoais de Curió ainda não conhecidos e que, como parte do mito, o próprio Curió se reserva o direito de manter informações vitais que esclareceriam inclusive os casos averiguados pela Comissão Nacional da Verdade, tratando-se, pois, de material essencial ao trabalho de recuperação histórica e reparação às famílias dos desaparecidos não havendo mais tempo ou desculpas para serem acessados e analisados com a profundidade que merecem. J.M.N.